Fontes para o estudo da ditadura militar brasileira (1964‑1985)
Sources pour l’histoire de la dictature militaire au Brésil (1964‑1985)
Sources for the Study of the Brazilian Military Dictatorship (1964‑1985)
p. 621-626
Résumés
A presente entrada tem por objetivo apresentar os principais conjuntos documentais referentes ao período da ditadura militar brasileira (1964‑1985). Para tanto, busca caracterizar esse período repressivo no Brasil a partir de seus fundamentos internos e geopolíticos, com destaque para a montagem do sistema de inteligência e de polícia política. No que se refere aos arquivos, traça um quadro dos principais acervos federais e estaduais brasileiros, bem como acervos internacionais, trazendo, ainda, informações sobre os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (2012‑2014), criada para examinar e esclarecer “graves violações de direitos humanos”.
Cette entrée a pour objectif de présenter les principaux fonds documentaires se référant à la période de la dictature militaire brésilienne (1964‑1985). Pour cela, il s’agit de caractériser cette période de répression au Brésil à partir de ses fondements internes et géopolitiques, en mettant l’accent sur le montage de systèmes d’intelligence et de police politique. En ce qui concerne les archives, l’article cerne les principaux fonds fédéraux et des États fédérés, ainsi que les fonds internationaux, et enfin signale les travaux de la Commission Nationale de la Vérité (2012‑2014), créée pour examiner et clarifier les « grandes violations des droits de l’homme ».
This entry aims to present the main documentary collections from the period of the Brazilian military dictatorship (1964‑1985). To this end it seeks to characterise the Brazilian repressive regime from its internal and geopolitical fundamentals, highlighting the use of an intelligence system and a political police. It presents an overview of the major federal and State level archival holdings, as well as international collections. It also brings information on the work of the Brazilian National Truth Commission (2012‑2014), created to examine and clarify "gross violations of human rights".
Entrées d’index
Mots-clés : Amérique latine, Brésil, XXe siècle, Dictature militaire brésilienne, fonds d’archives, Commission Nationale de la Vérité du Brésil
Keywords : Latin America, Brasil, 20th century, Brazilian Military Dictatorship, Archives, Brazilian National Truth Commission
Palavras chaves : America Latina, Brasil, século XX, Ditadura militar brasileira, Arquivos, Comissão Nacional da Verdade do Brasil
Texte intégral
1A ditadura brasileira de 1964‑1985 conformou uma das mais longas experiências autoritárias da história sul-americana da segunda metade do século xx, com duração total de 21 anos. Foi estabelecida por meio de um golpe de Estado iniciado entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964.
2O golpe foi o ponto culminante da instabilidade econômica, política e militar que marcou a Quarta República Brasileira (1946‑1964), efetivamente substituindo-a por uma ditadura militar. Parte dos estudiosos, contudo, prefere a expressão “ditadura civil-militar”1 ou, ainda, “empresarial-militar” de maneira a qualificar a participação de setores civis na administração da política e da economia do regime2. As causas do golpe e do longo período de duração da ditadura são variadas e complexas, destacando-se a oposição radical da elite econômica brasileira a políticas reformistas que pretendessem a diminuição da desigualdade social3 e os interesses hegemônicos dos Estados Unidos na região4.
3Durante o período ditatorial, o país foi comandado brevemente por duas juntas militares, mas, na maior parte do tempo, a direção coube a generais “eleitos indiretamente” por parlamentos com maioria governista artificialmente construída: Humberto Castelo Branco (1964‑1967), Artur da Costa e Silva (1967‑1969), Emílio Garrastazu Médici (1969‑1974), Ernesto Beckmann Geisel (1974‑1979) e João Baptista Figueiredo (1979‑1985).
4Traço marcante da ditadura brasileira de 1964 foi o apego a simulacros de legalidade e a relativa complacência do Judiciário5. A Constituição de 1946 não foi revogada até 1967, optando a ditadura por editar os chamados “atos institucionais” (AI). O AI‑1, de 9 de abril de 1964, foi o primeiro de dezessete normativas que buscavam institucionalizar o regime, promovendo sua fundamentação legal e continuidade política. Com apenas onze artigos, o AI‑1 deu ao executivo federal o poder de alterar a constituição e cassar mandatos legislativos e direitos políticos, além da faculdade de demitir, colocar em disponibilidade ou aposentar compulsoriamente qualquer adversário do regime sem “apreciação judicial desses casos”. Da mesma forma, estabeleceu eleições indiretas para a presidência da República.
5Com o AI‑5 (13 de dezembro de 1968), a ditadura determinou o fechamento do Congresso Nacional, inaugurando o período mais brutal da repressão política, caracterizado pelos “desaparecimentos” forçados, assassinatos e tortura generalizada ocorridos nos aparelhos policiais, oficiais e extraoficiais do Estado brasileiro.
6A política repressiva do Estado era operada pelas polícias civis, polícias militares e pelas próprias Forças Armadas, bem como por grupos e operativos paramilitares extraoficiais, normalmente compostos por policiais civis, agentes de inteligência e militares6. Dentre os órgãos oficiais, destacam-se o Centro de Inteligência do Exército (CIE), o Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) e o Centro de Informações da Marinha (Cenimar) que operavam centros clandestinos de tortura. Também foi destacada a formação, desde 1964, de sistemas de inteligência de âmbitos nacional e estadual, coordenados pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), e voltados para a vigilância do inimigo interno7.
7A ditadura chegou ao fim após um lento processo de transição política, iniciado no final da década de 1970, e que durou até 1985, quando assumiu o poder, o civil José Sarney, ex‑membro do partido governista da ditadura militar. Em 1988, foi aprovada uma nova Constituição, de cunho democrático, que restabeleceu eleições presidenciais diretas, definiu a tortura como crime inafiançável e, no chamado Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), garantiu anistia a todos os perseguidos por razões políticas (art. 8º do ADCT).
8Ainda durante o período ditatorial, entre os anos de 1979 e 1985, foi destacada a atuação de advogados e religiosos na execução do projeto “Brasil: Nunca Mais”8. O projeto, que utilizou como fontes principais processos em tramitação no Superior Tribunal Militar brasileiro, representou um dos primeiros esforços consistentes de pesquisa sobre a responsabilidade de agentes estatais na tortura, assassinato e desaparecimento forçado de adversários políticos durante a ditadura.
9Os primeiros mecanismos oficiais de justiça de transição foram criados entre os anos de 1995 e 2005, após permanente pressão de grupos de vítimas e familiares de vítimas da ditadura. São exemplos desses mecanismos a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, prevista pela lei n. 9.140, de 4 de dezembro de 1995 e instituída pelo decreto sem número de 18 de dezembro de 1995, e a Comissão de Anistia, estabelecida pela lei n. 10.559, de 13 de novembro de 2002.
10Mais tardiamente ainda, somente entre os anos 2009 e 2012 o Estado brasileiro estabeleceu mecanismos especificamente desenhados para abordar a questão da massa documental produzida pelos órgãos de inteligência e/ou repressão política, com a criação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964‑1985) – Memórias Reveladas (portaria n. 204, de 13 de maio de 2009, da ministra chefe da Casa Civil) e a aprovação das leis n. 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação), e n. 12.528, de mesma data, que instituiu a Comissão Nacional da Verdade.
11No Brasil, a maior parte dos acervos da ditadura, hoje disponíveis para consulta pública, foi recolhida a instituições arquivísticas entre os anos de 1990 e 2005. Fundamentalmente, podem ser divididos em acervos estaduais e federais.
12No caso dos acervos federais, eles compreendem, aproximadamente, 13 milhões de páginas de documentos textuais atualmente recolhidos ao Arquivo Nacional do Brasil. Em número de páginas, os cinco maiores acervos federais são os do Serviço Nacional de Informações (3.499.974), da Comissão Geral de Investigações (1.502.000), da Divisão de Censura e Diversões Públicas (aproximadamente 1.000.000), do Estado-Maior das Forças Armadas (837.493), da Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Relações Exteriores (634.565), do Conselho de Segurança Nacional (561.758) e da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça (300.300).
13Com exceção do acervo da Divisão de Censura e Diversões Públicas, todos os acervos federais do período da ditadura estão hoje integralmente digitalizados com reconhecimento óptico de caracteres (OCR). O Arquivo Nacional possui, também, um bom número de acervos de origem privada relativos a pessoas e organizações‑chave do período, como, por exemplo, os acervos do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e do presidente João Goulart. É possível ter acesso a qualquer documento desses acervos mediante assinatura de “termo de responsabilidade pelo uso da informação” emitido pelo Arquivo Nacional brasileiro, que disponibiliza os acervos digitalizados em bancos de dados para acesso presencial e pela Internet.
14Já no que se refere aos acervos estaduais, estima‑se que os arquivos públicos estaduais custodiem aproximadamente 10 milhões de páginas de documentos textuais, a maior parte referente a acervos das extintas Delegacias de Ordem Política e Social (Dops), órgãos repressivos de âmbito estadual, criados a partir dos anos 1920, mas reorganizados durante a ditadura. Atualmente, foram localizados acervos Dops em treze estados brasileiros: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás, Sergipe, Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão e Paraíba. De forma geral, todos os estados regulamentaram a Lei de Acesso à Informação ou possuem normativas similares, de maneira que os documentos são de livre acesso mediante assinatura de termo de responsabilidade. Poucos estados, contudo, digitalizaram seus acervos. Com 6,5 milhões de páginas de documentos textuais, o acervo da Dops/SP é o maior do gênero no Brasil, seguido do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco.
15Os acervos estaduais e federal foram reconhecidos, em 2010, como patrimônio mundial da humanidade no âmbito do Programa Memória do Mundo/Memory of the World (MoW), da Unesco. A despeito do gigantismo desses acervos e de sua inegável importância para a pesquisa histórica e comprovação de direitos, registre-se que muitos acervos públicos do período permanecem, ainda hoje, desaparecidos como, por exemplo, os acervos relacionados aos centros de inteligência das Forças Armadas do Brasil9.
16Além dos acervos federais e estaduais relacionados a órgãos do executivo, é de se destacar a existência de acervos judiciais e legislativos, cujas regras e condições de acesso devem seguir, em linhas gerais, o estabelecido na Lei de Acesso à Informação. Adicionalmente, existe um número ainda não definitivamente contabilizado de acervos sob a guarda de universidades, sindicatos e organizações de ex‑militantes políticos, como os acervos da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), e de organizações de vítimas e familiares de vítimas da ditadura, como os Grupos Tortura Nunca Mais. Parte desses grupos mantém formas de contato pela Internet, seja em redes sociais ou sites.
17Parte da documentação de interesse para o estudo da ditadura encontra-se fora do Brasil. Cite‑se, por exemplo, o projeto Opening the Archives, da Brown University (EUA), que reúne documentos coletados em acervos oficiais norte‑americanos sobre a ditadura brasileira; os acervos do National Record Administration (também dos EUA), que possui documentos sobre a cooperação da ditadura brasileira no âmbito da chamada “Operação Condor” e, na Inglaterra, arquivos diplomáticos que atestam a colaboração daquele país com as atividades repressivas no Brasil10.
18Em 2011, o governo federal criou formalmente a Comissão Nacional da Verdade (CNV), com o objetivo de examinar e esclarecer as “graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do ADCT” (1946‑1988), embora tenha concentrado suas investigações no período da ditadura militar (1964‑1985). A CNV entrou em funcionamento em maio de 2012, desenvolvendo suas atividades até dezembro de 2014, com a entrega de seu Relatório Final. A CNV não tinha atribuições judiciais, não podendo processar ou encaminhar denúncias aos tribunais.
19Ao final de seus trabalhos, a Comissão identificou que, por motivos políticos, 434 pessoas foram assassinadas ou sofreram desaparecimentos forçados (“desaparecidos políticos”) e que aproximadamente 1,8 mil pessoas foram torturadas. A CNV apontou, ainda, que cerca de 8,3 mil indígenas morreram em decorrência direta ou indireta dos projetos de expansão econômica da ditadura na região amazônica. Em relação a responsabilidades pessoais por mortes e desaparecimentos, a CNV apontou, em seu Relatório Final, a responsabilidade direta de agentes públicos bem como indireta (cadeia de comando). O Supremo Tribunal Federal brasileiro, contudo, firmou entendimento, em 2010, quanto à impossibilidade de responsabilizar penalmente agentes públicos envolvidos em graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar.
20A CNV utilizou largamente os acervos públicos depositados no Arquivo Nacional e em arquivos estaduais articulados no Centro de Referência Memórias Reveladas, bem como o trabalho de pesquisa da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, da Comissão de Anistia. No que se refere às estruturas que sustentavam o regime e, mais particularmente, o aparelho repressivo responsável por mortes e desaparecimentos, a CNV apontou a colaboração de empresas nacionais e transnacionais de diferentes áreas, inclusive grande grupos de comunicação brasileiros. O Acervo da CNV encontra-se depositado no Arquivo Nacional do Brasil.
Bibliographie
Livros
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Silva Francisco Carlos Teixeira da, 2003, “Crise da ditadura militar e o processo de abertura política”, in Ferreira Jorge & Delgado Lucilia de Almedia N. (org.) O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século xx. O Brasil republicano, vol. 4., Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 432 p.
Capitulo do livro
Silva Francisco Carlos Teixeira da, 2003, “Crise da ditadura militar e o processo de abertura política”, in Ferreira Jorge & Delgado Lucilia de Almedia N. (org.) O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século xx. O Brasil republicano, vol. 4., Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 432 p.
Notes de bas de page
Auteurs
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC‑Rio). Membro do Conselho Consultivo do projeto Opening the Archives (Brown University‑EUA)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Membro do Conselho Consultivo do projeto Opening the Archives (Brown University‑EUA)
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