O sistema costeiro da Amazônia: uma linha costeira sob a influência do grande rio

1A Amazônia é reconhecida internacionalmente pela complexidade, riqueza e diversidade de seu sistema hidrológico e de suas florestas, que são objeto de numerosos programas internacionais de pesquisa e monitoramento ambiental. Por outro lado, o litoral e o sistema costeiro amazônico são menos estudados, mesmo hospedando um mosaico de ecossistemas de grande valor ecológico e patrimonial, com vastas florestas de mangue, numerosos zonas úmidas, pântanos e savanas inundáveis, e os estuários dos rios que drenam ao norte o maciço do Planalto das Guianas e ao sul a baixa planície amazônica do Pará.

2Dois sistemas costeiros notáveis se desdobram em ambos os lados da foz do rio Amazonas: ao norte, uma linha costeira sujeita às marés de pequena amplitude, dominada pelo peso da água e dos sedimentos argilo-limosos do grande rio, empurrados contra a costa por a corrente muito poderosa do Atlântico Sul que corre até o Caribe; ao sul, uma linha costeira recortada por numerosos estuários, sujeita a macro marés atlânticas e alimentada por areias finas formando praias enquadradas por dunas e lagoas.

3Para entender como esses ambientes costeiros funcionam e evoluem, uma grande quantidade de pesquisa tem sido realizada pelo IRD e seus parceiros desde os anos 1990. As questões científicas dizem respeito à natureza, intensidade e tendências das forças motrizes que moldam estes sistemas em escala regional; as dinâmicas que atuam localmente e sua possível evolução ou transformação; e a modelagem de seu funcionamento, a fim de estabelecer diagnósticos, cenários ou recomendações diante das mudanças climáticas e ambientais.

Erosão ondulatória dos manguezais, Guiana Francesa.

4Ao mesmo tempo, muitas pesquisas estão sendo realizadas sobre a grande riqueza e diversidade biológica desses ecossistemas costeiros, bem como sobre sua vulnerabilidade ou resiliência aos impactos das atividades humanas. Na Amazônia, como em outros lugares, esses ecossistemas estão sujeitos a perturbações causadas pelo homem, ou seja, a alteração ou destruição do meio ambiente (crescimento urbano, agricultura, turismo, e atividades portuárias), a pesca artesanal e industrial, a remoção de recursos naturais, a poluição e as consequências potenciais do desenvolvimento da indústria petrolífera após a descoberta de depósitos na foz do rio Amazonas e no Escudo das Guianas. Enquanto a população costeira é predominantemente urbana em termos de número (centros urbanos, cidades e metrópoles), um grande número de comunidades locais ao longo da costa depende de seus recursos naturais para seu sustento e desenvolvimento.

5Os desafios científicos associados às áreas costeiras amazônicas são, portanto, grandes, tanto do ponto de vista da modelagem da dinâmica da interface continente/oceano quanto do conhecimento dos ecossistemas e dos determinantes da co-viabilidade entre a dinâmica natural e as atividades humanas.

Espaço, um lugar privilegiado para observar linha costeira

6Nas últimas décadas, o IRD conduziu programas internacionais de pesquisa para compreender melhor o sistema costeiro amazônico, combinando a exploração científica de dados ou medições de/por satélite com observações ou inquéritos no campo.

7O uso de dados de satélite de observação da Terra é muito bem adaptado ao estudo da Amazônia devido ao seu tamanho, à extensão geográfica do sistema costeiro, à dificuldade geral de acesso e ao baixo relevo que facilita a análise das pegadas deixadas na paisagem. Após complexo processamento matemático, as imagens de satélite reproduzem certas propriedades físicas das superfícies terrestres registradas nos diferentes comprimentos de onda da luz solar que elas refletem (satélites ópticos). Alguns satélites (radar) enviam suas próprias ondas à Terra para medir outras propriedades quando estas ondas refletidas nas superfícies são registradas pelo sensor.

Estuário da Amazônia Norte.

Estuário da Amazônia Sul

8Em primeiro lugar, estas propriedades permitem formular hipóteses e abrir caminhos de trabalho. Em seguida, eles levam à produção de novos conhecimentos através da extração de informações úteis (classificação, distribuição espacial e evolução no tempo dos ecossistemas; modelagem 3D; indicadores do estado da superfície). Em áreas onde a imagem espacial não permite que os objetos ou processos procurados sejam discernidos diretamente, o trabalho metodológico produz indicadores indiretos ao ligar o objeto procurado a um objeto identificável na imagem.

9Que seja em complemento, em combinação ou independentemente do uso de dados de satélite, a coleta de dados de campo alimenta a maior parte do trabalho de pesquisa.

10Quanto à preparação e organização das campanhas de campo, os pesquisadores contam novamente com imagens de satélite para a visualização e pré-mapeamento das áreas de estudo, para a estratificação da amostragem no espaço e para as rotas e caminhos dos levantamentos. Alguns deles são selecionados para serem utilizados por sua vez para conduzir cálculos complexos aplicados a dados de satélites, ou, em muitas situações, para calibrar modelos, validar ou invalidar hipóteses iniciais, documentar tendências ou fazer recomendações. Na maioria dos programas científicos, as missões de campo permitem acoplar as informações obtidas por satélite com amostras ou inventários (fauna, flora, sedimentos, águas de mangue ou na costa) ou com medições de dispositivos de monitoramento (parâmetros meteorológicos, componentes ou movimentos de bancos de lama). Para alguns estudos, como os relacionados às atividades de pesca, são realizadas registros de captura nos pontos de desembarque, assim como inquéritos com os próprios pescadores (rotas de pesca, rotas de migração dos pescadores, ou práticas de pesca).

Diferenças entre sensores óticos e de radar.

Visão geral de 30 anos de programas de cooperação científica

11A posição do litoral amazônico na interface continente/oceano é essencial para compreender o funcionamento dos biomas amazônicos, tanto na escala global e regional, quanto local.

12Em escala global, a foz do rio combinado com as forças regionais impostas a ele provoca uma dispersão em larga escala das águas e sedimentos do rio Amazonas ao longo de toda a costa atlântica, desde a ponta leste do Brasil até o Golfo do Caribe. Entre Macapá e Belém, a boca do rio de 300 km de largura traz para o oceano uma carga de sedimentos estimada em 40 t.s-1, que, dependendo da estação do ano e das estimativas, representa de 2 a 6 bilhões de toneladas por ano (ver Capítulo 8). Parte deste fino sedimento é depositado na plataforma continental até 200 km ao largo, e outra parte dele migra ao longo da costa norte brasileira, do Escudo das Guianas para a Venezuela, sob o efeito combinado de correntes oceânicas e meteorológicas (Corrente do Atlântico Sul e Frente Intertropical de Convergência). O estuário é formado por um conjunto de inúmeras ilhas (arquipélago de Marajó) e quase todos os sedimentos que se elevam ao norte alimentam vastas planícies fluviais e de marés, que favorecem as zonas úmidas e pantanosas. Esta massa de sedimentos ofusca em grande parte as entradas de outros rios no sistema costeiro e condiciona um mosaico de ecossistemas como o manguezal, que se desenvolve sobre áreas muito grandes da zona intertidal. A alta precipitação e a riqueza de nutrientes levam a uma abundância de biodiversidade e uma grande riqueza de flora e fauna, tanto em ambientes terrestres como aquáticos ou oceânicos.

13A influência do rio Amazonas cria assim três blocos distintos: a parte sul do estuário (Pará/Maranhão); ao norte, a margem equatorial representada pelo estado do Amapá; e, em sua sucessão, o Planalto das Guianas. Cada um desses blocos funciona de maneira diferente e tem suas próprias características. O bloco Pará/Maranhão é formado por inúmeros rios cujos estuários cortam a plataforma continental, formando reentrâncias, com a formação de sistemas dunares notáveis (por exemplo, Salinas) na frente do oceano. Estas morfologias são perpetuamente modificadas por macro-marés, que moldam imensas praias intercaladas com florestas mistas de manguezais que ocupam os flancos estuários na borda do planalto baixo. O litoral do Amapá forma uma vasta planície de lama com marés de grande amplitude, poucos rios, mas com lagos e pântanos e ao longo da linha costeira uma orla continua de floresta de manguezais, que também pode ocupar promontórios lamacentos, bordas de lagos, canais de maré ou barras de maré. Ela delimita a plataforma continental, que é particularmente extensa (162.000 km²), larga e plana, com águas turvas, ricas em argila e areias muito finas. Além do Cabo Orange, o terceiro bloco, o Escudo das Guianas, tem uma morfologia costeira mais estreita, consistindo de uma recente franja Holocênica de mangues, zona úmidas e pântanos, seguida por uma planície Pleistocênica mais antiga que é o domínio das savanas ou pri-pri. A área costeira está sob a influência de dinâmicas hidrossedimentares muito intensas, que remodelam permanentemente os bancos de depósitos lamacentos (até 60 km de comprimento, 15 km de transecto e 7 m de espessura) que se movimentam ao longo da costa e nos quais se desenvolvem os manguezais. Durante os períodos entre a formação dos bancos, a linha costeira desobstruída dos manguezais está sujeita a forte erosão, que leva à destruição dos habitats naturais e dos assentamentos humanos. Aqui, a variação na extensão dos manguezais estaria ligada a macro modificações de baixa frequência no oceano, impulsionada pela oscilação do Atlântico Norte (fenômeno de variação no regime de oceano-atmosfera em função das pressões atmosféricas, ONA). Outras hipóteses de pesquisa apontam a influência na ondulação do ciclo lunar de Saros (período de 18 anos e 11 dias correspondente ao tempo decorrido entre duas aparições idênticas da lua no céu), o que poderia explicar um ciclo na dinâmica espaço-temporal dos bancos de lama e dos manguezais que os colonizam.

Mangues ao longo da costa da Guiana Francesa.

14Neste contexto, o comportamento geomorfológico das costas amazonenses, a vulnerabilidade e a capacidade de adaptação às mudanças costeiras das zonas úmidas em sentido amplo e dos manguezais em particular, estão se tornando uma questão importante para os gestores e os atores do desenvolvimento nas próximas décadas. Estes ecossistemas costeiros estão fortemente ameaçados pelo homem, como mostra a extensão dos manguezais, que foi reduzida em 25% em escala global, quando elas atenuam os efeitos costeiros. Como resultado, estes últimos repercutam com maior intensidade, amplitude e regularidade na costa. Além disso, estes ecossistemas estão expostos aos efeitos das mudanças globais com a elevação do nível do mar, a modificação da temperatura da superfície oceânica, o aumento da erosão da linha costeira, o agravamento das tempestades oceânicas. Se a hipótese atualmente adotada é que o litoral do rio Amazonas apresentaria um grau de vulnerabilidade a estes efeitos menor do que outras regiões do mundo, o fato é que a tomada de medidas de preservação e conservação surge como questão de primordial importância.

Interdisciplinaridade, palavra-chave dos estudos costeiros amazônicos

15A interdependência entre sistemas continentais, costeiros e oceânicos requer abordagens interdisciplinares para estudos de ecossistemas costeiros, incluindo hidrologia, sedimentologia, geologia e geografia. A heterogeneidade das populações e sua ocupação destes espaços - densidades e tecidos urbanos, culturas e relações com o meio ambiente, tendências e práticas de desenvolvimento - leva as comunidades científicas a incluir as dimensões sociológicas, antropológicas ou econômicas nos estudos costeiros.

16Os programas realizados por ou com o IRD nos últimos trinta anos, alguns dos quais com resultados chave que relatamos no parágrafo anterior, abordaram geralmente todos esses aspectos. A pesquisa costeira amazônica mobilizou amplas parcerias, reunindo vários atores do IRD, mas também inúmeras instituições de pesquisa ou de ensino superior no Brasil.

17Os programas Ecolab, Proclam e Guyamapa, ligados aos projetos científicos dirigidos por estas organizações, reuniram uma densa rede de pesquisadores cobrindo todos os temas de interesse para estudos costeiros, desde o Venezuela até o Nordeste brasileiro. Numerosas teses de doutorado e cursos universitários voltados para questões costeiras consolidaram e enriqueceram a rede em todos os compartimentos científicos de interesse: dinâmica hidro-sedimentar e geomorfologia costeira, paleoclimas e mudanças climáticas, ecologia, ecobotânica e biodiversidade, recursos costeiros, práticas e usos. Em conexão com estes programas federadores, as numerosas equipes envolvidas lideraram uma pesquisa transversal aberta à sociedade, associando pesquisadores, atores das políticas públicas e organizações de gestão ambiental.

Vendedor de caranguejos de mangue, mercado de Bragança ao sul da foz do Amazonas (Pará, Brasil).

18Atualmente, esta rede continua no âmbito de programas de cooperação científica dedicados a outros campos de pesquisa, como o projeto internacional Progysat atualmente em andamento, que, embora não contenha um componente especificamente dedicado ao sistema costeiro, se mobiliza em torno do tema dos manguezais na costa da Guiana Francesa. Um dos objetivos do Progysat, liderado pelo IRD da Guiana Francesa até o final de 2023, é remobilizar a rede histórica de pesquisadores envolvidos em estudos costeiros amazônicos em torno de uma nova proposta para o período 2023- 2026. Esta proposta será articulada com os programas de pesquisa de interesse relacionado realizados pelo IRD no Brasil, e envolverá uma comunidade científica ampliada para assumir o trabalho em uma abordagem interdisciplinar fortalecida, respondendo aos objetivos estabelecidos pelo Instituto de uma ciência da sustentabilidade, envolvida e aberta.

Perspectivas e orientações para um maior desenvolvimento

19Os estudos dedicados ao sistema costeiro e aos rios levam seus autores a identificar e recomendar medidas concretas destinadas a preservar, proteger ou desenvolver o litoral com o objetivo de construir uma co-viabilidade sustentável entre os sistemas naturais e antropizados.

20Este objetivo de pesquisa é fortemente esperado pela sociedade, e responde a uma necessidade urgente no contexto da mudança climática em curso. As ameaças aos recursos naturais, sejam de origem natural ou antropogênica, estão se diversificando e se intensificando, e as noções de vulnerabilidade e resiliência dos ecossistemas costeiros assumem agora uma dimensão particular. Para as sociedades que dependem destes ecossistemas para sua subsistência e desenvolvimento, ou para os habitantes dos centros urbanos ao longo da costa oceânica, estas ameaças comprometem seu modo de vida e, em alguns casos, a possibilidade de ocupação humana de áreas costeiras sensíveis em longo prazo.

21O sistema costeiro da Amazônia não é imune às situações vividas por outras áreas costeiras. Embora sua localização geográfica em ambos os lados do Equador (Macapá, Estado do Amapá) o proteja de furacões, ele ainda está exposto aos distúrbios que afetam um grande número de costas ao redor do mundo. Essas perturbações são materializadas pela erosão da linha costeira e pela retirada de áreas habitáveis, ou por inundações durante eventos meteorológicos violentos. Levam a um esgotamento dos recursos pesqueiros e um aumento da pressão antrópica sobre os ambientes costeiros devido ao crescimento populacional, consumo de terra, aquicultura e agricultura. Para lidar com isso, a pesquisa fundamental deve ser apoiada a fim de melhorar os modelos de previsão e as atividades de pesquisa devem permitir que os decisores e a sociedade experimentem soluções para reduzir o impacto dos distúrbios.

22O objetivo é repensar a pegada humana sobre os recursos e apoiar as populações com soluções que coloquem a co-viabilidade no centro das interações entre sistemas naturais e sociedades, em termos de conservação, proteção e desenvolvimento de serviços ecossistêmicos. Estudos futuros serão baseados na rede de áreas protegidas que existem atualmente na Guiana Francesa (parques nacionais costeiros, parques nacionais ou zonas de proteção marinha, reservas da biosfera, zonas de proteção ambiental, reservas extrativistas, sítios europeus de proteção de áreas úmidas) para experimentar ou identificar formas de adaptação a estes desafios.

23Os questionamentos científicos subjacentes a estes estudos estarão alinhados a trabalhos anteriores, ligando o progresso feito no campo da modelagem da pressão hidrológica, oceanográfica e climática em escalas regionais com o progresso feito em escalas locais, ligando a dinâmica dos ecossistemas e a dinâmica das relações recurso/uso. Para atingir esses objetivos, novas abordagens metodológicas terão de reforçar as ferramentas e práticas atuais das comunidades científicas.

24O progresso no campo da observação da Terra é constante, com muitas novas missões de satélite oferecendo conjuntos de dados cada vez mais diversos e massivos, em particular a melhoria das resoluções espaciais e frequências de revisita, novas bandas espectrais fornecendo informações sobre o estado das superfícies naturais, missões dedicadas à radiação térmica e novos radares permitindo uma aproximação mais fina da biomassa ou umidade do solo. Estes avanços na observação espacial são agora complementados pela democratização do uso de métodos de observação aerotransportada, como os drones.

25Ao mesmo tempo, os avanços da engenharia informática e da ciência dos dados permitem agora mobilizar ou experimentar métodos de inteligência artificial e mineração de enormes conjuntos de dados heterogêneos particularmente promissores e atualmente em pleno andamento. Aplicadas às questões costeiras, estas novas capacidades devem permitir o aprimoramento da qualidade dos modelos e imaginar novas análises e combinações de dados coletados do espaço e no campo.

26Finalmente, o forte crescimento das ferramentas colaborativas e participativas observado nos últimos anos com o amplo uso da internet e das redes sociais abre caminhos para reflexão e trabalho para imaginar novas formas de interação entre a pesquisa e as populações preocupadas com os sistemas costeiros.