O contexto

1O sensoriamento remoto revolucionou nossa compreensão do ciclo da água nos continentes em poucas décadas. Do espaço, agora é possível obter uma grande quantidade de informações sobre o funcionamento de rios, lagos e pântanos que antes não conhecíamos.

Calibração das medições via satélite com medições in situ por GPS: campanha Rio Negro, maio de 2005.

2A hidrologia espacial e os modelos digitais que ela alimenta estão agora trabalhando para desenvolver aplicações valiosas para a gestão e conservação dos recursos hídricos.

3No início dos anos 1990, o sucesso dos satélites dedicados ao estudo do oceano e da atmosfera deu ideias aos hidrólogos. Os especialistas da água continental utilizaram as missões e instrumentos desenvolvidos para explorar os oceanos. Isto abrirá um novo campo para estudar os rios e suas bacias, para melhor caracterizar o ciclo da água como um todo. O objetivo de desenvolver ferramentas eficazes baseadas em medições do espaço para o gerenciamento sustentável dos recursos hídricos torna-se viável.

4Com seu gigantesco escoamento, sua imensa extensão, seus grandes rios e fenômenos naturais de magnitude inigualável, o rio Amazonas e suas vastas bacias proporcionaram um laboratório ideal para o desenvolvimento dessas novas técnicas de observação do ciclo da água por satélite. O IRD e seus parceiros científicos no Brasil e em outros países sul-americanos vêm colaborando há mais de vinte anos neste assunto, dando uma grande contribuição para o novo boom da hidrologia espacial.

Modis imagens em coloridas falsas do rio Amazonas.

Que métodos foram utilizados?

5Devido a sua importância e ao forte investimento histórico dos países da bacia, a Amazônia se beneficia de uma rede relativamente densa de observações in situ que proporcionam registros em longo prazo. Essas redes são essenciais para que os cientistas entendam os processos hidrológicos, porém em uma bacia tão vasta elas são limitadas e não cobrem toda a variabilidade espacial e temporal dos processos que ali ocorrem. Alguns fenômenos, como a extensão da enchente anual, são quase impossíveis de serem avaliados por medidas convencionais.

6O sensoriamento remoto é, portanto, uma ferramenta chave para superar estas limitações, pois oferece uma perspectiva de observação mais abrengente e permite que as observações sejam ampliadas, tanto no tempo quanto no espaço, para obter uma visão muito mais completa dos fenômenos em ação. Assim, a cobertura das áreas de interesse torna-se generalizada e regular: Os satélites de observação da Terra varrem toda a superfície continental, passando frequentemente sobre as bacias estudadas. Muito mais dados são assim adquiridos e muito mais frequentemente, melhorando consideravelmente nossa compreensão do ciclo da água nos continentes.

7Graças a metodologias específicas de análise, os hidrólogos exploram dados adquiridos por inúmeros satélites.

8São utilizados todos os tipos de técnicas e sensores: satélites orbitais que navegam a uma altitude de algumas centenas ou milhares de quilômetros, satélites geoestacionários que seguem a rotação da Terra a 36.500 km de sua superfície, técnicas de observação que cobrem o espectro eletromagnético, da ótica às micro-ondas, mas também sensores passivos que registram os sinais emitidos pela Terra e instrumentos ativos que emitem um sinal em direção ao nosso planeta e registram sua reflexão.

9Informações que são impossíveis de determinar em grande escala a partir do solo tornam-se acessíveis, tais como a medição da precipitação, a extensão da inundação, estoques de água ou variáveis muito importantes como evapotranspiração ou qualidade da água. Graças aos instrumentos capazes de detectar mudanças locais na gravidade da Terra (transportados pelos satélites gêmeos das missões Grace e Grace-FO), é possível medir variações temporais e espaciais na quantidade total de água presente em um dado momento e em uma bacia tão grande quanto a Amazônia. A extensão da água é estimada pela combinação de emissões de micro-ondas passivas e ativas (radiômetros) com recepção de ondas infravermelhas e visíveis (satélites LandSat, Sentinel-2).

10Além de monitorar as mudanças no nível do mar, os altímetros também podem medir as mudanças no nível da água continental. O processamento de dados de Topex-Poseidon, ERS1/2, Envisat, Jason 1/2/3/CS e Sentinel 3-A/B permite agora determinar o aumento do nível da água em rios, reservatórios, lagos e áreas úmidas de dimensões cada vez menores e suas variações em longo prazo. Especialistas estão agora trabalhando no desenvolvimento de satélites especificamente dedicados à hidrologia de superfície, como a missão Franco-Americana de Água Superficial e Topografia Oceânica (SWOT), com lançamento programado para Dezembro de 2022. Desenvolvida em cooperação entre a NASA e o CNES, SWOT, no qual o IRD e seus parceiros são uns dos principais atores, é uma missão de altimetria de ampla área que, devido à sua cobertura espaço-temporal, fornecerá pela primeira vez informações espaciais precisas sobre a dinâmica das cotas e extensão das águas de superfície continental com muito boa resolução espacial (100 m). Assim, será possível ter acesso, pela primeira vez e em escala global, a informações detalhadas sobre a dinâmica dos estoques de água de superfície, fluxos e hidrodinâmica das bacias com uma resolução espacial e temporal sem precedentes.

Vista do artista do satélite SWOT (Galeria AVISO, imagens e filmes de Observação da Terra)

11Entretanto, o uso de satélites não desqualifica de forma alguma a observação in situ e deve, portanto, ser considerado como complementar: as variáveis registradas no campo permanecem indispensáveis para validar e calibrar os dados espaciais.

12Entretanto, há limitações ao uso de dados de satélite para hidrologia, muitas vezes relacionadas à resolução espacial e temporal, duração e precisão das medições. Por exemplo, no rio Amazonas, o uso de observações visíveis/óticas, que são ferramentas muito poderosas, é limitado pela cobertura de nuvens e pela vegetação densa. Também há frequentemente um trade-off entre revisita (quantas vezes o satélite passa sobre o mesmo ponto) e cobertura espacial (tamanho da área). Algumas técnicas como o radar de abertura sintética (RAS) mostram capacidades muito altas para medir a extensão das águas superficiais em alta resolução (10 a 100 m), mas sofrem de um baixo tempo de revisão temporal, o que as torna inadequadas para o monitoramento de processos hidrológicos rápidos. Além disso, apesar da quantidade crescente de dados de satélite, ainda há a necessidade de garantir séries temporais suficientemente longas para compreender e estudar as mudanças ambientais, especialmente em grandes bacias como a Amazônia.

13Graças aos modelos de computador que se alimentam dos milhares de terabytes adquiridos e processados diariamente pelos satélites, e que visam reproduzir processos hidrológicos naturais, podemos agora prever eventos futuros no espaço e no tempo. Ao alimentá-los com as variáveis registradas na bacia - precipitação, evapotranspiração, níveis e estoque total de água na região, etc. - podemos agora alertar sobre eventos extremos, como inundações e secas com boa precisão espacial e temporal. Além de seu interesse científico, as previsões feitas pelos hidrólogos têm aplicações valiosas para a sociedade e o meio ambiente: otimização da captação de água, descarga de barragens, pesca e navegação fluvial para usuários e gestores de recursos, planejamento de desenvolvimento para tomadores de decisão e, de modo mais geral, preservação dos ambientes naturais e do clima.

O que podemos dizer sobre os principais resultados?

14As observações por satélite têm sido uma mudança de jogo para a ciência na Amazônia, proporcionando uma visão da maior bacia do mundo. A hidrologia da Amazônia tem um impacto considerável sobre o clima regional e global. Por exemplo, a bacia amazônica fornece umidade para as partes do sul da América do Sul. Como uma importante fonte de calor nos trópicos e fortes processos convectivos, também tem um impacto significativo na circulação atmosférica global. Além disso, as águas de superfície do rio Amazonas são uma importante fonte e sumidouro de dióxido de carbono e a maior fonte geográfica natural de metano nos trópicos. Com seus altos índices de precipitação, evaporação e fluxo fluvial, a bacia amazônica é, portanto, o local de fortes sinais hidrológicos, com fortes variações sazonais e interanuais resultantes de grandes eventos climáticos.

15Resultados importantes incluem a caracterização da precipitação dependente do relevo na região andina, a caracterização da extensão da inundação na bacia, a estimativa da quantidade de água armazenada anualmente nas várzeas amazônicas e nas águas subterrâneas.

16Um dos principais resultados do uso de observações por satélite na Amazônia é a estimativa dos níveis de água a partir da altimetria de radar, que foi realizada pela primeira vez nos grandes rios da bacia amazônica. Isto tornou possível caracterizar a evolução sazonal dos níveis da água durante a onda de cheia dentro da bacia, ou investigar o impacto de secas, como a de 2005, sobre os recursos hídricos.

17Combinada com as imagens, a altimetria também forneceu as primeiras estimativas de variações no armazenamento de águas superficiais na bacia. Em sinergia com as estimativas do estoque total de água nos continentes feitas pelo satélite Grace, isto forneceu aos cientistas informações sobre as variações das águas subterrâneas na Amazônia. As observações espaciais também destacam a variabilidade espacial da precipitação devido ao efeito de brisa em grandes massas de água na bacia; revelaram a variação espaço-temporal da concentração de sedimentos em rios e lagos, a caracterização da complexa topografia das planícies de inundação e as massas de água trocadas entre o rio e a planície de inundação.

18As observações espaciais de longo prazo também fornecem informações valiosas sobre as tendências das variáveis hidrológicas que refletem as recentes mudanças na bacia. Por exemplo, os satélites têm mostrado uma tendência de aumento da precipitação na parte norte da bacia, aumento das descargas e aumento das áreas de inundação, o que contribui para aumentar o risco de inundação, com fortes implicações para as pessoas, tornando-as mais vulneráveis. Em contraste, a parte sul da bacia está experimentando uma redução na precipitação, levando a um período seco mais longo nos últimos anos, causando estresse hídrico nas florestas tropicais com fortes consequências para a biodiversidade. Além disso, influências antropogênicas como o desmatamento e a mineração causaram um aumento nas concentrações de sedimentos e nutrientes nos rios.

Imagem Modis da boca da Amazônia.

Quais são os desafios desta pesquisa?

19A água, um elemento chave da vida, representa um grande desafio global. Portanto, ela está no centro da política de pesquisa do IRD e de seus parceiros. De fato, como vimos, o armazenamento e o fluxo de água doce nos continentes e sua variabilidade permanecem em grande parte desconhecidos em muitas regiões do mundo. Este contexto deixa em aberto grandes questões relativas à disponibilidade de água na terra e sua evolução futura em relação ao sistema climático (“grande ciclo da água”) e aos usos antrópicos do recurso (“pequeno ciclo da água” e irrigação).

20Os cientistas estão procurando quantificar as interações entre os ciclos da água, a mudança climática e as sociedades, a fim de fornecer conhecimentos sólidos para projetar soluções de desenvolvimento sustentável e adaptação. A hidrologia espacial é agora um pilar desta abordagem.

21Neste esforço global, a Amazônia sempre foi um local pioneiro para o desenvolvimento da pesquisa em abordagens interdisciplinares, fornecendo uma base científica sólida para a implementação de soluções de adaptação sustentáveis no Sul.

22Por natureza, os satélites geralmente não conhecem fronteiras territoriais, por isso, muitas das técnicas de sensoriamento remoto desenvolvidas e testadas na Amazônia foram posteriormente utilizadas em todo o mundo.

23Um novo boom na hidrologia espacial é esperado com os próximos lançamentos de plataformas de satélite dedicadas à hidrologia. Como aconteceu há algumas décadas no campo da pesquisa oceânica com o lançamento dos primeiros altímetros, a exploração destas novas técnicas de sensoriamento remoto representará uma verdadeira “revolução” no campo da hidrologia continental e o estudo do ciclo da água.

24Este novo contexto permitirá uma nova etapa no monitoramento das águas amazônicas a partir do espaço. Novas pesquisas poderão emergir, visando discriminar entre os componentes climáticos e antropogênicos na origem da variabilidade dos recursos hídricos, um fator essencial para fornecer elementos objetivos para a tomada de decisões no campo da gestão de recursos.

25Num esforço global para compreender melhor a lógica social do uso da água e a forma como as informações climáticas e hidrológicas são integradas na gestão deste recurso em diferentes atividades (agricultura, energia), a hidrologia espacial tem seu papel a desempenhar em colaboração com as ciências sociais e humanas em projetos interdisciplinares e intersetoriais. Estes novos conjuntos de dados e a análise das práticas sociais também oferecem um meio único de analisar o impacto das mudanças climáticas e da pressão antrópica no ciclo da água e nos ecossistemas, que por sua vez afetam o ciclo e os recursos hídricos mais amplos. Estes resultados complementam as percepções das pessoas e fornecem informações essenciais para analisar e apoiar os processos de adaptação.

Em conclusão

26De um ponto de vista técnico, novas tecnologias e metodologias de observação da Terra estão sendo continuamente desenvolvidas para monitorar o meio ambiente. Os programas de nanossatélites ainda são subexplorados para a hidrologia, embora ofereçam um grande potencial de monitoramento de eventos como inundações, a custos mais baixos do que seus similares maiores. Além do conceito de missões via satélite, o advento de novas medições espaciais, tais como vídeo de alta definição em tempo real para o monitoramento ambiental, ou medições a partir de veículos aéreos não tripulados ou pequenos drones, oferecem grandes oportunidades. Num futuro próximo, isto provavelmente fará recuar as atuais restrições de espaço-tempo. No entanto, a disponibilidade maciça de informações, com a possível produção de petabytes de dados, irá desafiar as capacidades atuais de armazenamento e análise. Isto exigirá novas abordagens e capacidades analíticas para interpretar volumes tão grandes de dados.

27Assim, um melhor acoplamento dos conjuntos de dados de observação da Terra com modelos hidrológicos/hidráulicos e de superfície terrestre (como a assimilação de dados) é um passo necessário na modelagem do sistema Terra, considerando o aspecto dinâmico da hidrologia amazônica.

28Serão necessárias novas ferramentas ou técnicas de fusão baseadas em inteligência artificial e maior poder de computação. Essas novas possibilidades exigem um esforço conjunto das agências espaciais, do setor comercial e das startups.

29Além disso, do ponto de vista científico, ainda há muitas questões não resolvidas para a bacia amazônica, onde são necessárias mais pesquisas, desenvolvimento de dados ou modelagem. Sob múltiplas pressões naturais e antropogênicas, incluindo barragens, mineração, queimadas, secas/chuvas e desmatamento, há uma necessidade urgente de entender como o ciclo hidrológico da Amazônia é afetado. Apesar dos progressos recentes, poucos estudos abordam estas questões de forma integrada.

30O sensoriamento remoto tem assim o potencial de democratizar ferramentas essenciais para os tomadores de decisão e de fornecer novos meios de monitoramento do meio ambiente. Mas este progresso ainda não se traduziu em um verdadeiro apoio à governança da água e do meio ambiente. A comunidade de sensoriamento remoto, portanto, enfrenta desafios reais para promover este novo conhecimento e inovação de uma forma que seja mais útil para as sociedades. Isto inclui a promoção de abordagens interdisciplinares através de sistemas de gerenciamento de água mais inclusivos e o treinamento de tomadores de decisão nos avanços atuais na observação da Terra

31Além de proporcionar estas grandes oportunidades de monitoramento operacional dos sistemas hidrológicos, estas observações também poderiam informar os gestores sobre o potencial dos recursos hídricos para usinas hidrelétricas, sistemas de irrigação, transporte fluvial e frete.

32Embora a observação da Terra por satélite tenha levado a avanços científicos decisivos na compreensão do ciclo da água na Amazônia nas últimas décadas, ainda será preciso enfrentar muitos desafios para garantir um futuro mais sustentável para a maior bacia do mundo.