Contexto

1Os ecossistemas aquáticos da Bacia Amazônica cobrem uma área de mais de 1 milhão de quilômetros quadrados e drenam quase 7 milhões de quilômetros quadrados de floresta tropical ou savana. Estes números impressionantes fazem da bacia amazônica o maior reservatório de água doce do mundo, descarregando 20% do fluxo fluvial mundial anualmente no Oceano Atlântico e suportando uma diversidade espetacular de vida. Isto é particularmente verdadeiro para os peixes, que, com cerca de 2.500 espécies atualmente registradas, representam mais de 15% de todas as espécies de peixes de água doce descritas em todo o mundo. Além disso, com base nas novas espécies descritas anualmente, é mais do que provável que a atual riqueza conhecida seja muito subestimada. A fauna de peixes não só é rica em espécies, mas também mostra uma diversidade excepcional de formas e estratégias ecológicas em comparação com o resto dos cursos d’água do mundo. As razões para esta megabiodiversidade confundiram os naturalistas desde o século XIX e continuam a confundir taxonomistas, ecologistas e paleontólogos contemporâneos.

2A ictiologia no IRD (de 1943 a 1998: ORSC, depois Orstom) desenvolveu-se pela primeira vez na África nos anos 50 através de estudos no Lago Chade, em estreita colaboração com o laboratório de ictiologia e coleções do MNHN em Paris. Os estudos se concentraram no conhecimento da história natural, sistematização e taxonomia dos peixes, e depois no uso dos recursos ictiológicos pela pesca do interior. Na década de 1980, armados com seu know- how e experiência na África, alguns dos pesquisadores de hidrobiologia e ictiologia do Orstom, em colaboração com seus colegas do Muséum National d’Histoire naturelle (MNHN) em Paris, se voltam para o continente sul-americano. Eles são atraídos pela extrema biodiversidade da Amazônia, mas também pelas ameaças representadas pelas pressões de desenvolvimento sobre esses sistemas aquáticos continentais, que são únicos em termos de sua diversidade, funcionamento e tamanho. Já em 1979, foi estabelecida uma colaboração com o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA) em Manaus para um “estudo sobre a gestão dos recursos de água doce na Amazônia”. Os pesquisadores do IRD se estabeleceram com seus colegas brasileiros no INPA e participaram da formação de muitos especialistas brasileiros em pesca até meados da década de 90. Posteriormente, apesar da ausência de pesquisadores franceses no local, as colaborações permaneceram ativas. Ainda permanecem hoje e diversificaram-se para outras instituições de pesquisa brasileiras. As equipes do IRD puderam assim participar do enorme esforço de inventário da fauna amazônica e de criação de coleções e catálogos de espécies que ainda hoje são referências para a pesquisa.

Áreas inundadas na bacia amazónica

3Além da sistemática e taxonomia, estes primeiros estudos também se concentraram na ecologia e distribuição das espécies, a fim de decifrar suas estratégias ecológicas, e na avaliação de impactos das atividades antropogênicas sobre as comunidades de peixes. Estes estudos procuraram compreender as causas e mecanismos que levam à alta produtividade biológica dos sistemas amazônicos. Numerosas atividades foram desenvolvidas, por exemplo em um lago de várzea ligado ao rio Amazonas, o Lago dos Reis, perto de Manaus, graças a um projeto interdisciplinar (parcialmente financiado pela Comunidade Europeia e envolvendo o INPA, Orstom e o Instituto Max-Planck). Estes estudos forneceram assim os conhecimentos biológicos e estatísticos necessários para interpretar o impacto da pesca e dos fatores ambientais sobre os estoques pesqueiros, a fim de produzir elementos para o manejo.

4Em outro campo, foram realizados estudos para entender as mudanças nas comunidades de peixes produzidas pelo comissionamento de grandes barragens hidroelétricas em afluentes da Amazônia, como a barragem de Tucuruí no Tocantins ou a barragem de Balbina no Rio Uatumã. Estes estudos, realizados em cooperação com a Centrais elétricas do Norte do Brasil S.A. (Eletronorte), visavam melhorar os ambientes aquáticos destas regiões e prevenir as consequências destas estruturas sobre a biodiversidade e a pesca.

5Estes estudos seminais foram repetidos em outras regiões da América do Sul: na Amazônia boliviana para o estudo da biodiversidade, do funcionamento dos ecossistemas das planícies de inundação e da pesca; depois na Guiana Francesa para o estudo dos impactos da barragem de Petit Saut. Outros estudos também foram realizados com os mesmos objetivos nos contrafortes andino-amazônicos, particularmente na Bolívia.

Pesca nas corredeiras do Rio Madeira, agora cobertas por água da barragem de Santo-Antônio.

6Estas experiências e os conhecimentos adquiridos têm sido utilizados para alimentar pesquisas mais avançadas sobre o funcionamento ecológico dos sistemas, a evolução filogenética da fauna, a distribuição das espécies em relação aos fatores ambientais e a aquicultura. Por exemplo, entre 1995 e 1999, estudos sobre lagos no noroeste do Brasil demonstraram os processos de cascata trófica em ação em certos casos de eutrofização (ou desequilíbrio de um ecossistema aquático ligado a um suprimento excessivo de nutrientes, levando em particular à proliferação de plantas e ao esgotamento do oxigênio) na presença ou ausência de certas espécies de peixes. Os resultados permitiram assim propor medidas de manejo para estes lagos a fim de controlar a produção de peixe e a eutrofização. Entre 2004 e 2007, no seguimento dos estudos iniciais sobre a contaminação por mercúrio realizados por hidrogeoquímicos, foram realizados estudos interdisciplinares no rio Iténez, na fronteira entre a Bolívia e o Brasil.

7As equipes do IRD estão envolvidas na capacitação e no avanço do conhecimento, contribuindo com sua experiência em novas ferramentas para análise e ecologia de peixes. Genética, datação, ecologia isotópica e análise estatística macroecológica são as disciplinas em que o IRD e o Brasil têm sido mais ativos na última década.

8O projeto AmazonFish, coordenado pelo IRD em colaboração com seus parceiros na América do Sul, e em particular no Brasil, começou em 2016 com objetivos principais de sintetizar inventários da biodiversidade dos peixes amazônicos, avaliar sua distribuição e compreender a história e evolução desta biodiversidade, a fim de definir sua vulnerabilidade e antecipar mudanças. Além de seu grande interesse científico, a importância deste projeto para o IRD é a de interligar diferentes parceiros sul-americanos sobre um tema científico e geográfico comum. Além disso, como uma extensão do AmazonFish, um novo projeto coordenado pelo IRD e financiado pela BiodivERsA (uma parceria europeia que financia pesquisas sobre a biodiversidade e seus impactos nas sociedades e políticas públicas) ha iníciado em 2022. Reúne um consórcio de pesquisadores europeus e brasileiros e se concentra nas espécies de peixes frugívoros da Amazônia. Estas espécies desempenham um papel fundamental na interação animal- planta e na manutenção da diversidade biológica e funcional dos ecossistemas amazônicos, pois ajudam a manter a vegetação ribeirinha, espalhando sementes ao longo dos cursos d’água e também desempenham um papel socioeconômico fundamental para as comunidades humanas tradicionais da Amazônia como suas principais fontes de alimento e renda. O objetivo do projeto é identificar áreas prioritárias para a conservação e restauração das interações entre os peixes da floresta amazônica e os serviços ecossistêmicos associados.

Como fazemos isso?

9Além do censo da biodiversidade, os estudos atuais visam compreender e definir melhor as estratégias ecológicas dos peixes. Em sistemas complexos como o da Amazônia, as migrações de peixes de água doce são essenciais para manter a biodiversidade, administrar os estoques pesqueiros e avaliar o impacto das barragens hidrelétricas. Esses movimentos migratórios permanecem em grande parte desconhecidos porque os métodos convencionais de observação são ineficazes. Eles estão sendo reforçados atualmente por técnicas de monitoramento indireto utilizando marcadores biogeoquímicos. Os otólitos de peixe são pequenas pedras calcárias localizadas perto de seu cérebro. Crescem junto com os peixes e têm estrias de crescimento que se formam regularmente durante toda vida do indivíduo. Graças a estas estrias, é possível determinar a idade dos organismos (este é o chamado método esclerocronológico, por analogia com a determinação da idade das árvores pela dendrocronologia). Sua composição química é uma memória das condições ambientais e fisiológicas do organismo. Na América do Sul, o IRD e seus parceiros franceses e sul-americanos estão realizando análises dos elementos isotópicos de estrôncio presentes na água e nos otólitos para discriminar os estoques pesqueiros, identificar os principais habitats e migrações. As rotas migratórias de grandes peixes-gato entre o estuário amazônico e os contrafortes andinos onde eles se reproduzem foram assim determinadas com precisão.

Peixes da família Loricariidae (Pseudacanthicus sp.).

Quais são os resultados importantes?

10Estudos de genética populacional, realizados no âmbito do LMI Edia (Laboratoire mixte international Évolution et Domestication de l’ichtyofaune amazonienne, 2011-2021), têm sido usados para entender a evolução dos peixes. Estes estudos revelaram mosaicos de espécies nos ciclídeos, sugerindo a intervenção da especiação simpátrica - a especiação simpátrica é quando novas espécies, intimamente relacionadas, emergem de um ancestral comum enquanto habitam a mesma região geográfica - semelhante àquela encontrada no Rift Africano. O LMI Edia também está na origem de novas abordagens da biodiversidade na Amazônia, como a realizada sobre as grandes aves migratórias usando isótopos de estrôncio, como descrito no parágrafo anterior, mas também no estudo do recrutamento de larvas utilizando técnicas de metabarcodificação (identificação molecular de várias espécies na mesma amostra a partir de uma curta sequência de DNA característica da espécie), e, mais recentemente, os primeiros estudos de avaliação da biodiversidade utilizando a abordagem de DNA ambiental (eDNA). O eDNA é um método indireto de avaliar a presença de organismos vivos, bem adaptado aos ambientes aquáticos onde é cada vez mais utilizado. A amostragem consiste na filtragem da água para coletar fragmentos de DNA liberados no ambiente sob diversas formas (fezes, urina, gametas, muco, pele, etc.) e que persistem em ambientes aquáticos por vários dias. Estes fragmentos são extraídos e depois amplificados. Sequências da mesma região de DNA com uma codificação única para cada espécie são isoladas e comparadas com um banco de dados de referência para determinar as espécies. Na ictiologia, a captura de peixes para fins científicos e experimentais continua sendo um desafio. A contribuição do eDNA poderia, portanto, constituir um importante salto tecnológico para completar inventários e melhor monitoramento da biodiversidade em ambientes complexos e de difícil acesso, como os rios andinos e amazônicos.

Microscopia de uma larva de peixe amazônico.

Em conclusão

11O futuro das colaborações continuará a ser baseado nos mesmos objetivos de inventariar espécies e na melhoria do conhecimento da história natural, ecologia e distribuição dos peixes, a fim de encontrar soluções para a proteção da biodiversidade e o manejo sustentável dos recursos. Novas técnicas estão sendo continuamente desenvolvidas para melhor atender a estes objetivos e constituem novos temas de colaboração. Este é o caso, por exemplo, do DNA, que deve se desenvolver rapidamente nos próximos anos. Várias iniciativas envolvendo laboratórios franceses e sul-americanos associados ao IRD estão sendo desenvolvidas nos países amazônicos (Bolívia, Brasil, Peru, Colômbia) e na Guiana Francesa.

12Desde 1980, os pesquisadores do IRD e seus parceiros franceses ganharam uma grande experiência e excelência científica nas ferramentas e conceitos da ecologia aquática em geral, e da ictiologia em particular. Eles estão inclusive prontos, e esta é uma das principais missões do IRD, a participar da formação de pesquisadores amazônicos, do fortalecimento das instituições e da transferência destas tecnologias, ao passo que, infelizmente, a perícia em história natural e sistematização tende a desaparecer. Mantém-se a ligação com museus e coleções (em particular o MNHN em Paris), o que não compensa esta perda de especialização, pois os pesquisadores especializados nestes campos não são substituídos nem no IRD nem no MNHN. Esta é uma tendência preocupante, pois esta expertise e conhecimento formam a base para compreender as mudanças que estão ocorrendo e são fontes de inspiração para a inovação em direção a novas soluções para a proteção da biodiversidade e a gestão sustentável dos recursos e serviços ecossistêmicos fornecidos pelos ambientes aquáticos continentais, e pelos peixes em particular. Esta tendência é menos acentuada entre nossos parceiros brasileiros e sul-americanos, oferecendo um novo caminho de complementaridade em nossas colaborações.