Introdução

1A infância é uma etapa vital para o desenvolvimento humano, sendo que a privação de recursos nessa fase impactará o restante do curso de vida do indivíduo. As interações sociais, culturais, ambientais e espaciais serão partes constitutivas do processo de produção das condições da existência e da concretização das relações da criança no mundo.

2Nesse contexto, a literatura aponta que as desigualdades reduzem as chances de crianças mais vulneráveis alcançarem melhores condições de existência e oportunidades para uma vida produtiva e feliz, com a reprodução de um ciclo vicioso de pobreza e exclusão social (ENGLE et al., 2007). No caso das cidades e metrópoles, tais desigualdades seriam explicadas pela produção social de espaços segregadores, e pela oferta limitada de oportunidades às crianças residentes em locais empobrecidos.

3A transferência da capital do país, a política de preservação do centro urbano planejado e idealizado por Lucio Costa, as políticas habitacionais, fundiárias e de ocupação do DF e dos municípios goianos adjacentes,74 assim como a dinâmica demográfica brasileira, nas décadas de 1960 a 1990, explicam o processo de ocupação da Área Metropolitana de Brasília (AMB) e a produção do espaço metropolitano (FERREIRA, 2010; VASCONCELOS, 2006). Como salientam Vasconcelos e Gomes (2015, p. 7) :

(...) com a consolidação da cidade e valorização do solo no DF, os locais de moradia mais baratos são cada vez mais distantes do centro e avançam pelos municípios goianos adjacentes. Contrariamente ao idealizado por Lúcio Costa como cidade que evitaria “uma indesejável e indevida estratificação social”, a metrópole se expandiu na lógica perversa da segregação socioespacial de sua população.

4É nesse espaço segregado e de territórios de socialibilidade fragmentada que as famílias se constituem, estabelecem suas relações sociais e se reproduzem. As dinâmicas demográficas que caracterizam cada porção do território da AMB estão associadas às suas condições socioeconômicas, tendo em vista a estreita relação entre determinantes culturais, sociais, econômicos e as variáveis demográficas: natalidade/fecundidade, mortalidade e migração.

5Desta maneira, os sentidos das trajetórias das infâncias se constroem conforme os modos pelos quais suas famílias se territorializam e se inserem nas estruturas de oportunidade no tecido urbano. Para Lefebvre (2004, p. 111) a cidade:

cria uma situação, a situação urbana, onde as coisas diferentes advêm umas das outras e não existem separadamente, mas segundo as diferenças. [...] o urbano não é indiferente a todas as diferenças, pois ele precisamente as reúne. Nesse sentido, a cidade constrói, destaca, liberta a essência das relações sociais: a existência recíproca e a manifestação das diferenças procedentes dos conflitos, ou levando a conflitos.

6Para a análise das desigualdades intraurbanas e periurbanas ao nascer e crescer na AMB, será privilegiado o enfoque de ativos, vulnerabilidade e estrutura de oportunidades (Aveo), proposto por Kaztman e Filgueira (2006). Essa abordagem retoma o conceito de vulnerabilidade apresentado originalmente por Moser (1996) nos seus estudos sobre pobreza. Além do conceito de ativos trazido por Moser, que podem ser individuais, familiares ou comunitários,75 Kaztman e Filgueira acrescentam o conceito de estrutura de oportunidades para melhor caracterizar a situação de vulnerabilidade. Desta maneira, amplia-se a compreensão da vulnerabilidade, não como uma situação estática do indivíduo, família ou comunidade, mas como um processo dinâmico que interage com a estrutura macroeconômica, social, política e cultural (KAZTMAN; FILGUEIRA, 2006). Nesta perspectiva teórica, os ativos das crianças e suas famílias impactam o grau de vulnerabilidade e as capacidades materiais e simbólica de articulação dos fatores internos e externos às suas vidas.

7Seguindo essa abordagem, este capítulo discute as diferentes condições de nascimento e de vida na infância e adolescência, para, em seguida, apresentar as estruturas de oportunidade nas diferentes porções do território da AMB. Para essa divisão do território, considerou-se a delimitação apresentada pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) para o DF, que agrupa as Regiões Administrativas (RAs) em quatro grupos de renda. A quinta porção do território da AMB é formada pela Periferia Metropolitana de Brasília (PMB) composta pelos municípios goianos próximos, conforme Mapa 8 no Caderno de Mapas nesta obra.

8Neste capítulo, a infância e a adolescência são entendidas como um período único que vai do nascimento até a possibilidade de entrada formal no mercado de trabalho (14 anos de idade), como estabelecido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).76

As desigualdades no nascer

9Nascer na AMB é vivenciar múltiplas realidades. Embora o DF apresente indicadores que apontem para uma transição demográfica avançada, comparado às de países desenvolvidos, são vários os padrões de fecundidade e as condições de nascimento na AMB que corroboram suas desigualdades socioespaciais (VASCONCELOS; GOMES, 2015).

10Entre 2000 e 2016, nasceram na AMB cerca de 1,1 milhão de crianças, uma média de 61,8 mil nascimentos por ano. Considerando a residência das mães, têmse que 72,8% dos nascimentos ocorridos na AMB são de mães residentes no DF, e 27,2% de mães residentes na periferia metropolitana (BRASIL, 2018b). No DF, cerca de 60% das mães são residentes em RAs classificadas como de média-baixa e baixa renda. Ao considerar a taxa bruta de natalidade - razão entre o número de nascimentos e a população residente nessas localidades - observa-se que esse indicador variou, em 2015, entre 10,5 e 20,3 nascidos vivos por mil habitantes, valores correspondentes às localidades de mais alta e mais baixa renda no DF (Tabela 4 no ANEXO). Vê-se, portanto, que os nascimentos não estão igualmente distribuídos no território. As taxas de natalidade mais elevadas, assim como o maior volume de nascimentos,77 ocorrem nas localidades que apresentam as menores rendas domiciliares. Fica evidente a importância de políticas públicas voltadas para o apoio ao desenvolvimento infantil, em um contexto de necessidade de proteção social e “cidadania vulnerabilizada” (HOPENHAYN, 2012).

11Desde a gestação, historicamente, a mulher tem sido a principal responsável pelos cuidados e, logo, culturalmente identificada como vital para o desenvolvimento infantil. Nesse sentido, diferentes situações de vulnerabilidade e exposição a riscos ao nascimento e durante a primeira infância estão estreitamente associadas às características sociodemográficas das mães. A idade e a escolaridade da mãe no momento do parto expressam as desigualdades socioeconômicas vivenciadas pela população da AMB, ou seja, podem ser consideradas como marcadores de desigualdades que determinam diferentes trajetórias de vida a partir do nascimento.78

12Com relação à idade, a maternidade precoce é considerada como um marcador de desigualdade, já que ela não é homogênea entre grupos sociais, atingindo mais as mulheres em situação de vulnerabilidade (DIAS, 2013; FINLAY et al., 2011; LEAL et al., 2018; VASCONCELOS et al., 2016).

13Na AMB, assim como no resto do país, a redução da fecundidade tem sido acompanhada, nos anos mais recentes, por um aumento da idade da mãe no momento do parto, ou seja, observa-se, cada vez mais, a postergação do início do período reprodutivo com o consequente envelhecimento da estrutura etária à maternidade (BERQUO; CAVENAGHI, 2014; VASCONCELOS et al., 2015). Esse processo, no entanto, não é homogêneo no território: as chances de ser mãe jovem são maiores quanto menor o nível de renda da localidade. Enquanto a idade média ao ter filhos é de 25,7 anos na periferia metropolitana e nas localidades de mais baixa renda do DF, ela se eleva a 31,6 anos nas localidades de mais alta renda (Tabela 4 no ANEXO).

14Verifica-se, por outro lado, que 87% dos nascimentos de mães adolescentes em2015 aconteceram nas localidades de mais baixa renda no DF ou na periferia metropolitana. Dessa forma, como aponta Dias (2013), a maternidade na adolescência ocorre “no território segregado da cidade, presente nas classes pobres e na vida de meninas e mulheres com pouca escolaridade, precariamente inseridas no mercado de trabalho”.

15Além da idade precoce da mãe, associam-se maiores riscos de sobrevivência do recém-nascido à baixa escolaridade materna. Novamente, é na porção mais vulnerável do território, onde se concentram as mães de mais baixa escolaridade. Entre 2015, na periferia metropolitana e nas localidades de mais baixa renda do DF, uma entre quatro mães declararam não ter concluído o ensino fundamental (menos de 8 anos de estudos), e não mais que 14% declararam ter ao menos 12 anos de estudos (equivalente a superior incompleto). Essas proporções são extremamente diferentes nas localidades de mais alta renda: apenas 3,4% declararam não ter concluído o ensino fundamental, e mais de 80% tinham ao menos 12 anos de estudos.

16A idade e escolaridade maternas traduzem os ativos individuais e familiares que as crianças possuem no momento de seu nascimento. Observam-se diferentes condições socioeconômicas e demográficas que expressam maiores riscos de sobrevivência nas localidades de média-baixa e baixa rendas e na periferia metropolitana.

17De fato, ao analisar a taxa de mortalidade infantil (TMI), ou seja, o risco de morte do recém-nascido em seu primeiro ano de vida, ainda que todas as localidades da AMB apresentem tendência de queda entre os anos de 2000 e 2016, os níveis são muito diferentes. Os valores da TMI variaram, em 2015, de cerca de 7,5 óbitos infantis por mil nascidos vivos na área central da AMB, região de mais alta renda, a 9,5 na região de renda média-alta, 11,2 na região de renda média-baixa, 12,6 na de baixa renda, e 12,8 na periferia metropolitana.79

18No entanto, não somente os riscos apontam trajetórias de vulnerabilidade. É importante considerar a estrutura de oportunidades de amparo à mãe e ao recém-nascido nas diferentes porções do território da AMB, para determinar o quão elas são, de fato, promotoras ou redutoras das desigualdades. Para isso, recorreremos, principalmente, ao acesso à saúde e à assistência social, já que essas instituições são os principais apoios antes, durante e após a gestação, nascimento e primeira infância. Vale reafirmar que o curso de vida de uma criança inicia nos percursos de vida dos seus pais, muito antes da gestação e parturição. Assim, a vulnerabilidade passa a ser delimitada por processos sociais dinâmicos e multigeracionais (ALVES; CAVENAGHI, 2009; SCHUMANN; MOURA, 2015; VASCONCELOS; GOMES, 2015).

19A maior parte de serviços de saúde realizados antes, durante e após o nascimento - tais como o pré-natal, a vacinação e o acompanhamento do recém-nascido, são oferecidos pela Atenção Primária à Saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS). Dessa maneira, olhar a cobertura da Atenção APS na AMB é uma maneira de identificar as estruturas de saúde dispostas pelo Estado para atenuar as desigualdades. No DF, a APS apresentou cobertura de, aproximadamente, 48% em setembro de 2018, enquanto que o mesmo indicador variou entre 31,7% e 100,0% nos municípios da periferia metropolitana. Os municípios com maior população, Águas Lindas de Goiás (31,7%), Luziânia (32,8%), Formosa (62,6%) não conseguiram atingir 70% de cobertura de atenção primária em setembro de 2018 (BRASIL, 2018).

20Mas no que se refere à atenção à parturição, os dados sobre o local de ocorrência do nascimento revelam a deficiente estrutura de atenção à saúde da periferia metropolitana e a consequente sobrecarga dos equipamentos de saúde no DF. Entre 2000 e 2016, mais de 60% dos nascimentos de mães residentes na periferia metropolitana ocorreram no DF. Esse elevado percentual evidencia a busca por recursos de atenção ao parto fora do município de residência, o que aumenta a situação de vulnerabilidade dessas mães.

21No interior do DF, os recursos disponíveis não são distribuídos proporcionalmente ao tamanho da população. Há uma concentração de recursos médico-hospitalares nas regiões de alta e média-alta rendas, onde o número de nascimentos é muito menor. Na região central da AMB, além de hospitais da rede pública, há uma concentração da oferta dos recursos médico-hospitalares privados. Em contrapartida, as regiões de rendas média-baixa e baixa no DF têm infraestrutura de serviços de saúde insuficiente, majoritariamente da rede pública, e atendem demanda da periferia metropolitana (VASCONCELOS, 2016).

22No que tange à rede de Assistência Social, ela está implantada de forma a priorizar sua instalação nos territórios mais vulneráveis. É nas unidades desta rede que os cidadãos terão acesso a benefícios sociais, serviços de acompanhamento e convivência familiar e comunitário. Mesmo estando presente em todos os municípios da PMB e com 27 unidades no DF, os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) têm capacidade limitada de referenciar famílias em situação de vulnerabilidade, não atendendo à demanda necessária nesses territórios. Essa capacidade, muito aquém da demanda necessária, impacta na qualidade de atendimento e acompanhamentos das famílias vulneráveis com presença de crianças e fere o exercício dos direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à dignidade humana da criança (VASCONCELOS, 2016).

As desigualdades no crescer

23Os dados sobre nascimentos e de pesquisas domiciliares corroboram que há uma maior concentração de crianças e de adolescentes nas regiões de mais baixa renda e periféricas da AMB. As diferentes condições de vida em família, na comunidade e as oportunidades oferecidas no território onde essas crianças crescem, se socializam e se preparam para integrar a juventude são determinantes para suas trajetórias de vida presente e futura.

24Como marcador de desigualdade para o crescer na AMB tem-se a composição familiar, fator relevante na análise de estruturas que influenciam a qualidade de vida das crianças. Segundo Scott (2005), o empobrecimento da população e sua inserção no mundo do trabalho tornaram o olhar sobre as famílias mais atento a modos de produção, a estratégias de sobrevivência, à informalidade nas relações de trabalho, bem como a composições e padrões de natalidade. Para ele, analisar famílias é uma maneira de lidar com a sua inserção nas múltiplas facetas da pobreza, de produção e de reprodução dos contextos vivenciados:

Pensar os arranjos domiciliares vulneráveis envolve desvelar as desigualdades estruturais que permeiam a vida das crianças na AMB e considerar as estruturas espaciais como fenômenos e processos sociais regionais e globais que afetam os domicílios, bem como sua vizinhança (VASCONCELOS et al., 2015, p. 185).

25Ao analisar os arranjos domiciliares na AMB, Vasconcelos et al., (2015) constataram que os domicílios com presença de crianças com menos de seis anos encontravam-se majoritariamente nos estratos de mais baixa renda:

Os arranjos com crianças menores de 6 anos são majoritariamente pobres: em 60% desses arranjos, a renda domiciliar mensal per capita é inferior a 1 salário mínimo contra 30% nos demais arranjos na AMB. A situação é ainda mais extrema entre os arranjos monoparentais nucleares, nos quais essa proporção se eleva a 75% (VASCONCELOS et al., 2015, p. 197).

26Mont’Alvão (2011) em seu estudo abordando a estratificação educacional no Brasil apresentou um quadro de profundas desigualdades nas chances de se completar as transições educacionais. Ele identificou que na composição dos domicílios brasileiros, as famílias monoparentais e com maior número de filhos apresentam associações negativas com desempenho escolar dos filhos, diminuem as chances de se concluir o ensino secundário e alcançam as crianças e adolescentes na transição para a juventude, consolidando as trajetórias de continuidade de desigualdades educacionais.

27Sobre a concentração dos empregos nas áreas centrais da metrópole, tem-se que o tempo de deslocamento entre a residência e o trabalho dos responsáveis dos domicílios com crianças e adolescentes residentes nas regiões de mais baixa renda é, para cerca de 60% deles, superior a meia hora, e para 27% superior a uma hora. Já para os responsáveis que residem nas áreas centrais da metrópole, regiões de alta e média-alta rendas, o tempo de deslocamento é, para 70%, menos que meia hora por dia (VASCONCELOS et al., 2015). O tempo de deslocamento na metrópole reduz o tempo dedicado à família e ao convívio com os filhos.80 Assim, crianças e adolescentes residentes nas regiões de mais baixa renda e periféricas das metrópoles têm menos tempo cotidiano para o convívio com seus pais, o que se constitui em fator de risco para a construção de vínculos familiares importantes para o seu desenvolvimento (BRAZELTON; GREENSPAN, 2002).

28O tempo de deslocamento entre a residência e o trabalho é ainda mais importante no caso de arranjos domiciliares monoparentais, majoritariamente com responsabilidade feminina. De acordo com os dados da PDAD 2015, em domicílios com presença de crianças e adolescentes, a proporção desse tipo de arranjo era maior nas localidades de mais baixa renda, agravando ainda mais a situação de risco.

29Assim como a distribuição de crianças e adolescentes e dos arranjos domiciliares se dão de forma diversa no território, o mesmo é observado para a oferta de serviços públicos e oportunidades. Em territórios com deficiência de ativos é possível que a tendência de perpetuação do ciclo da pobreza seja maior e a relação direta entre a cidade dual e a sociedade meritocrática fiquem mais evidentes.

30Vasconcelos et al. (2016) demonstram como a oferta de serviços públicos e oportunidades ocorre de maneira desigual no território da AMB ao apresentarem as informações sobre a rede de assistência social, número de leitos de internação, cobertura do programa estratégia da família e o resultado do Índice de Bem-Estar Urbano.

31Garantir o acesso a serviços e equipamentos públicos seria uma das formas de reduzir a desigualdade entre indivíduos com distintos padrões de renda, principalmente ao priorizar territórios com maior concentração de crianças e adolescentes, pois o acesso a serviços é uma dimensão que garante o bem-estar sem comprometer parte da renda e pode contribuir para a superação da pobreza e redução de desigualdades.

32Em relação à infância, na garantia do acesso a serviços e equipamentos públicos destaca-se a importância da promoção do acesso à educação e à saúde, pois estas são políticas aceleradoras, garantidoras da qualidade de vida e indutoras da diminuição das desigualdades sociais. Neri (2010), em seu estudo intitulado “Desigualdades nas Favelas Cariocas”, aponta o impacto da educação na primeira infância e ressalta as diferenças das taxas de acesso a creche e pré-escola entre as regiões ricas do Rio de Janeiro e os Aglomerados Urbanos. Segundo ele, estudos recentes comprovam a relação entre a frequência das crianças em creches e pré-escolas e o aumento da possibilidade de o indivíduo alcançar, no futuro, melhores rendimentos e reduzir sua probabilidade de prisão, gravidez precoce e dependência de programas de transferência de renda. Deste modo, a educação nesta etapa da vida se constitui uma oportunidade social com alta possibilidade de retorno positivo.

33A partir da constatação da importância e dos impactos futuros que o acesso a creches e pré-escolas pode gerar, o Brasil pactuou como meta 1 do Plano Nacional da Educação (PNE) a universalização da educação infantil para crianças de 4 e 5 anos, e a ampliação, até 2024, para um atendimento mínimo de 50% das crianças de até três anos em creches. Como meta 2, pactuou-se a universalização do atendimento de crianças de 6 a 14 anos no ensino fundamental. Mas, para além da ampliação, a redução das desigualdades de acesso à creche e à educação infantil, e a permanência e o desempenho no ensino fundamental apresentam-se como importantes desafios.

34Os dados do relatório do 2^o. ciclo de monitoramento das metas do PNE de 2018 elaborado pelo INEP (BRASIL, 2018) mostraram que ainda são relativamente baixos os percentuais de frequência à creche e pré-escola para as crianças residentes no DF, entre 0 e 3 anos e 4 e 5 anos, respectivamente, quando comparados com outras Unidades da Federação. Em 2016, 25% das crianças de 0 a 3 anos frequentavam creche, e 81,7% de 4 e 5 anos frequentavam a pré-escola. No país, esses percentuais chegaram a 46% de frequência em creche e a 99% na pré-escola (Santa Catarina e Piauí, respectivamente).

35Ao considerar a frequência à creche e pré-escola por RA, observa-se a acentuada desigualdade de acesso à educação infantil no DF (VASCONCELOS et al., 2017). Justamente nas RAs com maior concentração de crianças observam-se os menores percentuais de frequência em creches e pré-escola. Dados de pesquisa domiciliar revelam a baixa frequência à creche e pré-escola na periferia metropolitana (CODEPLAN, 2016). O acesso à educação infantil constitui-se, portanto, em outro marcador das desigualdades no território, colocando em maior ou menor risco o futuro dessas crianças.

36Quanto ao ensino fundamental, a universalização do acesso a essa etapa de ensino por crianças entre 6 e 14 anos foi praticamente alcançada em todo o país (BRASIL, 2018), e em todo o território da AMB (CODEPLAN, 2015, 2018). Observam-se, no entanto, desigualdades no desempenho e nas trajetórias escolares. No ensino fundamental, trajetórias escolares interrompidas ou com repetências são mais frequentes entre estudantes de escolas públicas do que entre aqueles de escolas privadas. Por outro lado, tem-se que o desempenho escolar no ensino fundamental também é inferior em escolas públicas quando comparado a escolas privadas. Como a frequência a escolas públicas é acima de 70% entre as crianças que residem nas localidades de baixa renda e periferia metropolitana, e, nas áreas centrais da metrópole, a frequência a escolas privadas é acima de 50%, as desigualdades educacionais são evidentes na AMB (SOUSA, 2017; VASCONCELOS et al., 2017).

37Para além do uso do paradigma Aveo elaborado por Kaztman e Filgueira (2006) para auxiliar na compreensão das estruturas sociais do território, pode-se utilizar a teoria de habitus, de Bourdieu (1997) para subsidiar reflexões sobre a vida e o futuro das crianças e adolescentes que residem neste território da AMB marcado pelas desigualdades. Segundo Bourdieu (1997), o habitus está internalizado nos corpos e o capital simbólico e cultural vai construindo condições de existência nos espaços desiguais. Neste sentido, Mont’alvão (2011, p. 423) problematiza ainda mais a questão das desigualdades de partidas quando aborda as desigualdades de capital cultural:

o capital cultural é decisivo no processo de alcance, de forma que indivíduos oriundos de famílias com maior volume desse capital tendem a conquistar maior alcance educacional. Nesse sentido, mostra-se improvável que o efeito das origens socioeconômicas sobre o alcance educacional diminua mesmo em termos de alto desenvolvimento econômico, já que a desigualdade de capital é crucial para o processo de estratificação educacional.

38Em uma mútua interação, o habitus influencia o território e o território influencia o habitus, podendo reproduzir as desigualdades e dar continuidade ao ciclo perverso da pobreza e da desigualdade. Em seu estudo, Salata (2007), demonstra como crianças que residem em áreas com poucas oportunidades e com deficiências de recursos podem ser impossibilitadas de alcançar outros ativos nas demais fases de vida, culminando na reprodução das desigualdades sociais. Entretanto, Dias e Esteves Junior (2017, p. 645) relembram:

é função dos espaços públicos promover a igualdade de oferta e de oportunidades a todas as crianças, sem distinção socioeconômica: espaços de qualidade que possibilitem o brincar livre, em segurança, em contato com o urbano e a natureza, para a vivência do coletivo, da urbanidade e da cidadania.

39A análise das condições de nascimento, da composição familiar, do acesso à educação infantil, permanência e desempenho no ensino fundamental e da estrutura de oportunidades da AMB evidencia que as desigualdades se reproduzem no território e nas novas gerações.

Considerações finais

40Brasília e sua periferia metropolitana apresentam as contradições das metrópoles brasileiras e suas formas de produção de espaço urbano desigual. Essas contradições revelam ainda processos de infâncias marcadas por diversidade de trajetórias socioespaciais desiguais, sendo a periferia mais impactada pela pobreza e por seus impactos nos ativos individuais, nos arranjos domiciliares e nas experiências de ocupação dos territórios.

41Como se dará a melhoria da qualidade de vida na infância e ao longo do curso da vida dos cidadãos se não ocorrer as transformações na estrutura do modo de vida capitalista contemporâneo e nas relações sociais que se estabelecem na cidade? Caso não ocorra a diminuição das desigualdades de oportunidades educacionais, a mobilidade social das crianças em outras fases do curso da vida estará comprometida e persistirá o padrão de desigualdades intergeracionais.

42Os interesses econômicos e geopolíticos diversificados produzem tensionamento no exercício do “direito à cidade” da criança. A precariedade da regulação socioassistencial estatal efetiva configurada pela negação de direito a serviços urbanos de qualidade, tanto no espaço central quanto nos periféricos, vai continuar a influenciar o nascer e o crescer das próximas gerações de crianças. A lógica da metropolização é produtora de significados cultural, econômico, social, relacional, geracional e simbólico diferenciados, que tendem a produzir desigualdades que não começam e nem terminam na infância. A heterogeneidade das situações periféricas e central urbana produzem modos de viver a infância que afetam a pluridimensionalidade da capacidade de criação e recriação da agência das crianças e suas famílias.

43É tempo de esperançar novas espacialidades para uma metrópole humana, que proteja o estatuto de sujeito e de dignidade da criança, que articule políticas transformadoras de qualidade de vida urbana para as atuais e novas gerações de cidadão.