Apresentação

1A Constituição brasileira, em seu artigo 23, inciso V, define que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “proporcionar os meios de acesso à cultura (...)”. Mas é no artigo 215 que a Carta Magna estabelece a responsabilidade do Estado em garantir “a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional e apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais.” (BRASIL, 1988). Além de inscrever os direitos culturais no texto da Constituição Federal (CF), dáse o caminho de como eles devem se realizar. Ou seja, inscrevem-se as ações que o Estado deve colocar em curso para que esses direitos se realizem (VARELLA, 2014, p. 62-63).

2Há um debate entre a força da inscrição desse direito em uma escala de positivação que a CF acabou por criar, considerando o art. 6º e os direitos sociais ali arrolados. Para Varella (2014), não há necessidade da citação literal da cultura, uma vez que os direitos culturais são parte indivisível da educação (VARELLA, 2014 apud SILVA, 2003, p. 313) e, assim, é desnecessário ser levado a cabo a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 36, de 2008, que incluiria a cultura na lista de direitos sociais no referido artigo. No campo da argumentação jurídica a sustentação faz sentido. Porém, na arena política, a inscrição da cultura entre os setores da vida social ali arrolados, daria, ao menos, mais força argumentativa aos que defendem a priorização das políticas culturais nas agendas dos governos. Assim, talvez, ficasse mais complexo e constrangedor extinguir órgãos da administração direta responsáveis pelas políticas culturais.

3Segue-se, contudo, o desafio de definir e delimitar o conceito de cultura no qual as políticas públicas são capazes de intervir. Abre-se um amplo campo de debate sobre o termo cultura e a busca por suas objetivações. Sua aplicação se transforma ao longo dos períodos históricos e das ideologias, se partimos do entendimento de que cultura é aquilo que não é natureza. Por outro lado, a palavra “cultura” possui sua raiz etimológica exatamente no termo natureza (EAGLETON, 2000, p. 11), somente para citar um dos seus exemplos dialógicos.

4Discorrer sobre as possibilidades de entendimentos do termo cultura nos levaria por longos caminhos, o que não é o objetivo deste texto. Por isso, vamos ancorar o conceito de cultura onde as políticas culturais são capazes de operar ou no conceito de cultura que as políticas culturais, construídas por operadores do setor, acabaram por moldar e limitar sua ação.

5Foi nesse sentido que Isaura Botelho (2001), a partir da análise das dimensões antropológicas e sociológicas de cultura, buscou definir qual seria a cultura que as políticas têm alcance efetivo. Segundo a autora, resumidamente, o conceito antropológico de cultura se realiza no resultado das interações entre os indivíduos, seus modos de viver, valores e as estruturas simbólicas. Já no conceito sociológico, a cultura teria aspectos mais objetivos de materialização pelo fazer instrumental em que operam técnicas, profissionais e instituições políticas e econômicas. A ação das políticas culturais, no sentido sociológico, se realiza de forma viável no espaço da “expressão artística em sentido estrito” e, finalmente, onde “existe todo o aparato que visa propiciar o acesso às diversas linguagens, mesmo como prática descompromissada, mas que colabora para a formação de um público consumidor de bens culturais.” (BOTELHO, 2001, p. 74).

6Isaura Botelho argumenta que para operar uma ação política na cultura no sentido antropológico seria necessário um elevado grau de articulação entre os indivíduos e uma mobilização de instituições, muito mais amplas do que as políticas culturais são capazes de orquestrar, uma vez que essa dimensão se realiza em diversas camadas da vida social.

7Ocorre que esse entendimento da ação das políticas culturais sob um conceito stricto sensu de cultura acabou por gerar uma política excessivamente centrada no artista como único capaz de produzi-la, deixando ao público apenas o papel de consumidor.

Pode-se dizer, portanto, que ao longo dos séculos XIX e XX o Estado brasileiro definiu para a sociedade o que reconhece como cultura, instituiu-a legalmente e organizou em torno dela uma complexa e variada máquina administrativa. Nesse processo, criou uma burocracia interessada na reprodução desse aparato e, por várias políticas, solidarizou artistas e intelectuais com os parâmetros que adotou para essa atividade pública. Burocratas e intelectuais gravitando em redor dos recursos públicos constituíram o “povo da cultura” (por oposição à “cultura do povo” – essa só existente nos tratados de folclore ou no remoto sertão, onde o Estado ainda hoje pouco chega) (DÓRIA, 2001, p. 87).

8Além da exclusão do público do acesso aos recursos e do apoio à sua produção cultural e artística autônoma, há uma exclusão das possibilidades da transversalidade da cultura com outras dimensões da vida social e da diversidade cultural. Em geral, os mecanismos de fomento disponíveis só estão aptos a financiar a produção cultural estabelecida na tradição das artes, numa perspectiva de mercado: produção e consumo. As culturas indígena, negra e cigana, por exemplo, não se adequam às linhas de apoio normalmente oferecidas pelos editais públicos ou leis de incentivo à cultura. Serão, no máximo, tratadas como cultura popular ou tradicional o que, por certo, não é capaz de abranger a natureza dessas culturas. A lógica é sempre a do espetáculo, da produção de conteúdos para serem consumidos como bens ou serviços. As políticas culturais têm grande dificuldade de lidar com a cultura que acontece como experiência, vivência ou ritual e necessitam, muitas vezes, de políticas de apoio não necessariamente financeiras.

9Não se trata de uma característica apenas das políticas culturais, mas, sim, da função do Estado no jogo da criação e manutenção de um sistema econômico por meio da burocracia weberiana da impessoalidade e da racionalidade.

10Como veremos adiante, os mecanismos de fomento à cultura do DF reproduzem desigualdades e a concentração de capital nas regiões onde há maior renda, escolaridade e equipamentos culturais. Assim, o Estado cumpre o papel da manutenção da lógica hegemônica dominante, econômica e simbolicamente, e não do bem comum universal (BOURDIEU, 2015, p. 38).

A cultura na política de financiamento do Distrito Federal

11O financiamento para a cultura no DF passa, em grande parte, pelo Estado. Mecanismos de investimento a fundo perdido são o grande exemplo, em sua maior parte instrumentalizados por meio de editais. Embora o DF tenha acesso a todos e quaisquer mecanismos nacionais de financiamento, os mais utilizados são locais, geralmente oriundos de alguma seção do Governo do Distrito Federal (GDF), especialmente da Secretaria de Estado de Cultura do DF.

12Existe um mecanismo de renúncia fiscal distrital instituído, o Programa de Incentivo Fiscal, que garante abatimento no ISS ou ICMS das empresas patrocinadoras. O montante anualmente autorizado à renúncia é determinado pelo próprio GDF, através da Secretaria de Estado de Planejamento, Orçamento e Gestão do DF (SEPLAG), e aprovado pela Câmara Legislativa do DF (CLDF) no início do exercício fiscal, através de Lei Orçamentária Anual (LOA). Não há uma obrigação mínima legal para tal montante, mas há um limite máximo de 1% da parte estadual do ICMS arrecadado no exercício anterior pelo GDF61.

13O mecanismo foi instituído pela Lei nº 5.021, de 22 de janeiro de 2013, ficando popularmente conhecido como Lei de Incentivo à Cultura (LIC). Posteriormente, foi alterado pela Lei Complementar nº 934, de 7 de dezembro de 2017, a Lei Orgânica de Cultura do DF (LOC), que reorganizou todos os normativos referentes às políticas culturais no DF, inclusive os mecanismos de fomento; e regulamentado pelo Decreto nº 38.933, de 15 de março de 2018.

14As empresas incentivadoras, isto é, as empresas que patrocinam os projetos em troca de abatimento fiscal, podem solicitar, no máximo, abatimento anual de até 3% no ISS ou 2% no ICMS. Analisando o conjunto normativo da renúncia, fica estipulado que uma pessoa física pode captar até 200 mil reais por projeto para um mesmo exercício fiscal.62 Fazendo um exercício hipotético simples, ao se dividir 200 mil por 3% e 2%, para que uma só empresa patrocine um projeto de 200 mil reais e tenha abatimento fiscal integral, ela precisaria pagar anualmente 6,7 milhões em ISS ou 10 milhões de reais em ICMS.

15Em outras palavras, a renúncia fiscal só é uma possibilidade real para empresas de porte gigantesco, deixando a essas empresas a total escolha do que será patrocinado. Essas empresas dão prioridade a projetos que já são de grande porte, com grande visibilidade de público e marca; eximindo o Estado das responsabilidades de orientador do fomento, podendo as empresas incentivadoras, inclusive, apresentar absoluta desconformidade com quaisquer políticas culturais vigentes (CARMO, 2016, p. 28-30).

16As empresas e os projetos de menor porte, especialmente aqueles que trariam benefícios comunitários locais aos pequenos incentivadores, são deixados quase que completamente de lado. Há, apenas, uma obrigação instituída pela LOC, segundo a qual as empresas incentivadoras devem aportar pelo menos 10% do montante patrocinado num mesmo exercício para projetos de pequeno porte, mas não há sanções em caso de descumprimento.63

17O maior mecanismo de fomento à cultura local é o FAC, o Fundo de Apoio à Cultura do DF. O fundo destina-se ao fomento da criação cultural, interpretando como cultura apenas linguagens artísticas e suas cadeias produtivas, sendo vedado seu acesso aos órgãos governamentais. A Secretaria de Cultura detém a maior parte do poder de escolha nas comissões julgadoras dos editais, geralmente com algum compartilhamento com o Conselho de Cultura do Distrito Federal (CCDF), um órgão eletivo misto com representantes de linguagens artísticas da sociedade civil e representantes do governo.

18As ações fomentadas pelo FAC, em sua extensa maioria, ocorrem no território do DF, geralmente não havendo vedação quanto ao território em que devam ocorrer. Um dos mecanismos de mensuração sobre ações executadas no território é a plataforma georreferenciada destinada a sanar tal problema, o Mapa nas Nuvens64, ainda em fase de implementação. Há, ainda, um programa permanente destinado à difusão, capacitação e pesquisa culturais fora do DF, o Conexão Cultura DF65, e editais sazonais de premiação e reconhecimento de projetos, plataformas, empresas, grupos e indivíduos com valores socioculturais distintos.

19Criado em 1991 pela Lei nº 158 como Fundo de Apoio à Arte e à Cultura - FAAC, surgiu no esteio da estruturação do fomento à cultura no Brasil. Na mesma época, na esfera federal, foi criada a Lei nº 8.313, conhecida como Lei Rouanet. Junto com o FAAC também foi criado um mecanismo de incentivo fiscal que nunca chegou a ser operacionalizado.

20O fundo, por sua vez, só foi efetivamente colocado em funcionamento em 1999, por meio da Lei Complementar nº 267, com o nome de Fundo de Arte e Cultura-FAC e administrado pela Secretaria de Cultura. Em 2008, a Lei Complementar nº 782 alterou seu nome para o atual, sendo que, ainda neste ano, foi aprovada uma emenda à Lei Orgânica do DF que estabeleceu uma vinculação orçamentária de 0,3% da receita corrente líquida do GDF ao FAC, proporcionando um aumento de 1000% dos recursos disponíveis. Essa vinculação só foi possível através da autorização contida no § 6º do art. 216 da Constituição Federal66. Mais recentemente, a LOC alterou significativamente diversos aspectos do funcionamento do FAC, que também passou a ser regulamentado pelo Decreto nº 38.933, mas não mexeu em sua vinculação orçamentária.

21Com os recursos disponibilizados por essa vinculação orçamentária, o DF transformou-se na Unidade da Federação com maior aporte per capita e o segundo maior investimento em números absolutos em fomento estatal direto no país, no período de 2014 a 2015 (RUBIM, 2007).67 Em 2018, o FAC contou com R$ 67.996.282,0067, em comparação com os R$ 14,6 milhões previstos para a LIC para o mesmo exercício.68 Isso significa que o FAC dispõe, aproximadamente, de 4,65 vezes mais recursos do que a renúncia fiscal para a cultura no DF. Um absoluto contraponto à esfera federal que é fomentada majoritariamente através de renúncia fiscal, assim como outras Unidades da Federação; fazendo com que o fomento estatal à cultura no DF seja muito mais diretamente direcionado pelo Estado do que pelo mercado privado.68

Instrumentos de políticas públicas: uma proposta de abordagem teórico-analítica do cadastro de entes e agentes culturais do df (CEAC)

22Neste capítulo, analisamos a política pública de financiamento à cultura do DF a partir de sua instrumentação. Portanto, nosso objetivo será o de compreender como a escolha e o uso de instrumentos operam e materializam essa política. Tal abordagem teórico-metodológica justifica-se pelo fato de que essas ferramentas não são neutras, elas portam valores, interpretações sociais e concepções de mundo como demonstrado em estudo anterior sobre os editais do FAC (CARMO, 2016; VILELA; MAKIUCHI, 2015, 2016).

23Utilizando o esquema analítico proposto por Lascoumes e Les Galès (2012), podemos definir o financiamento da cultura como instrumento da política pública, a legislação que trata do FAC ou da LIC como a técnica e o CEAC como uma ferramenta. Buscamos compreender como o Cadastro de Entes e Agentes Culturais do DF (CEAC), pré-requisito para acessar a política pública de financiamento à cultura no DF, opera, já que é impossível analisar os locais onde são executados os projetos fomentados e que populações usufruem deles, uma vez que a própria Secretaria de Cultura não dispõe desses dados.

24O CEAC opera delimitando quem são os cidadãos e pessoas jurídicas aptos a participar da política de financiamento como um proponente, de maneira a usufruir de seu direito de fazer cultura, tal como previsto na Constituição. Dessa maneira, ele possui a capacidade de “organizar as relações sociais específicas entre o poder público e seus destinatários em função das representações e das significações das quais é portador” (LASCOUMES; LES GALÈS, 2012a, p. 21).

25Para poder participar de tal política, faz-se necessário morar ou ter sede no DF há pelo menos dois anos e produzir bens culturais ou fornecer serviços relacionados à cadeia produtiva da cultura. A inscrição é outorgada pelo Conselho de Cultura do Distrito Federal (CCDF) ou comissão composta por servidores designados pelo secretário de cultura, sendo o requerente classificado numa área cultural, de acordo com documentação comprobatória de atividades executadas. Ou seja, apenas pessoas ou empresas que realizaram alguma atividade em alguma dessas áreas culturais conseguem obter a inscrição, e como já abordado anteriormente, o Estado compreende como cultura apenas linguagens artísticas.

26A lógica da comissão que analisa se uma pessoa é apta ou não a participar da política de financiamento por meio do CEAC não deve perder de vista que é composta por pessoas reconhecidas pelo poder oficial e que são capazes de mobilizar o que o grupo deve estar de acordo como sendo um agente cultural (BOURDIEU, 2014, p. 67). É nessa comissão ou no CCDF que o Estado se faz oficial, expressa sua visão parcial de quem pode ser um cidadão capaz de ser um agente cultural, como se fosse universal. O Conselho ou a comissão reconhecem o agente e reforçam um ponto de vista, ao reconhecê-lo.

27Na prática, o CEAC funciona como uma reserva de mercado : garante acesso à política de financiamento cultural do DF apenas para aqueles que já são artistas e conseguem comprová-lo num âmbito oficial. E mesmo que o CEAC fosse extinto, um dos aspectos de análise da vasta maioria de editais do FAC e pré-requisito de habilitação de projetos da LIC é a comprovação do proponente de exercer a função prevista em seu projeto, tornando, na prática, impossível que um não artista, produtor ou pesquisador tenha acesso ao fomento.

28O acesso à política de fomento somado à diretriz de interpretação de cultura apenas como linguagens artísticas e suas cadeias produtivas conduz a um raciocínio claro: a política de fomento não é primariamente direcionada ao público que dela usufruirá, mas aos artistas e produtores culturais. Mais particularmente, privilegiando tipos específicos de artistas e produtores culturais, uma vez que a exigência de documentações comprobatórias e o domínio e o acesso aos mecanismos editalícios privilegiam grupos que têm mais acesso à educação formal e superior, que dispõe de mais recursos financeiros e administrativos e que atuam em linguagens artísticas, áreas geográficas e níveis de formalidade em que a produção dessa documentação comprobatória, englobando, por exemplo, matérias de imprensa, contratos e notas fiscais, é mais fortemente presente.

29A introdução da LOC prevê a extinção do CEAC, assim como de outros cadastros, e de sua substituição por um cadastro único, o ID Cultura. Conforme o art. 31 do Decreto nº 38.933, que regulamento o fomento, o ID Cultura é um “cadastro único mantido pela Secretaria de Estado de Cultura que servirá para o acesso a todas as modalidades de fomento” (DISTRITO FEDERAL, 2018), sendo uma perpetuação da mesma política de acesso ao fomento.

Análise regionalizada através do CEAC

30Para se ter acesso às políticas de fomento da Secretaria de Cultura, há a necessidade de se ter uma inscrição válida no CEAC. Para tal, é necessário que se tenha solicitado inscrição ou renovação no CEAC num período de até 2 anos. Numa lista fornecida pela própria Secretaria, há 7.472 inscrições de entes e agentes culturais no DF. Destas inscrições, 2.974 estavam válidas em abril de 2018, ou seja, menos de 40% do total.

31A região central do DF, formada peloPlano Piloto, Lagos Sul e Norte, Sudoeste/ Octogonal e Cruzeiro, representa 44,9% das inscrições existentes. As outras 10 Regiões Administrativas (RAs) com mais de 100 mil habitantes cada, em 2018, incluindo a Ceilândia, com mais de 430 mil moradores (CODEPLAN, 2018), somam 27,2% das inscrições (Gráfico 1).69

Gráfico 1 –Distribuição de entes e agentes culturais segundo RA. Distrito Federal. 2018

32Dentre as inscrições válidas, 329 são de pessoa jurídica, sendo que destas, 60% estão na região central. Pessoas físicas podem solicitar até 200 mil reais por projeto submetido ao FAC, enquanto pessoas jurídicas têm acesso às linhas de apoio com mais recursos disponibilizados pelos editais do fundo. Em 2017, o edital de fomento ao audiovisual disponibilizou 13,5 milhões de reais para no mínimo 7 projetos de 0,4 a 2,01 milhões de reais para a produção de longas-metragens, linhas completamente inacessíveis a pessoas físicas.

33A concentração de agentes habilitados na RA Plano Piloto é apenas mais um dado das concentrações econômicas e sociais observadas no DF. Fatores determinantes para cumprir as exigências do cadastro e os meios para o acesso e registro junto à Secretaria de Cultura têm aspectos bastante díspares entre as regiões administrativas. Segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD, 2015), nas regiões do Plano Piloto e Sudoeste/Octogonal, a maioria da população possui nível superior, incluindo especialização. Em outras 10 RAs, incluindo a Ceilândia, esse percentual é inferior a 8%. Também na região central, 71,2% da população acessa a internet de casa, enquanto, por exemplo, na Estrutural, esse número é de apenas 24,3%. Os moradores do Lago Sul possuem uma renda média quase 20 vezes superior aos residentes na Estrutural. Em 13 RAs, os moradores ganham, em média, menos que 5 salários mínimos, enquanto na região central, a renda média é superior a 15 salários.

34Outro fator importante é a alta concentração de equipamentos culturais. No Plano Piloto, existem 88 salas de cinema, enquanto várias regiões com mais de 100 mil habitantes, como Gama, Planaltina, Recanto das Emas e Samambaia não possuem nenhuma sala. Quanto aos Centros Culturais Públicos, segundo o já citado Mapa nas Nuvens, a RA do Plano Piloto possui 14 equipamentos, ativos ou não. Todas as demais regiões possuem apenas 3.

35Tendo essas desigualdades em mente, diversas políticas de fomento direcionadas para as RAs fora do centro já foram instituídas. Desde 2016, o principal bloco de editais do FAC, que compreende os editais de fomento de Áreas Culturais, Ocupação, Manutenção de Grupos e Espaços, inclui, também, um edital regionalizado. Esse edital é destinado a proponentes que moram em oito macrorregiões do DF, organizadas pela própria Secretaria de Cultura, para que executem projetos apenas em suas próprias macrorregiões. As RAs Plano Piloto, Lagos Sul e Norte e Sudoeste/Octogonal não têm acesso a esse edital, com exceção de algumas pequenas áreas englobadas por essas RAs que se encontram em situações socioeconômicas mais vulneráveis, como a Vila Telebrasília e a Vila Planalto.

36Em 2017, o edital regionalizado do FAC teve um aporte total de 8,04 milhões de reais contra um total de 38,935 milhões do bloco que o engloba, representando aproximadamente 20,6% do total disponibilizado para o bloco. É um aporte significativo, mas mesmo assim ainda caminha na contramão da proporção populacional do DF. Se adicionarmos o montante de recursos do edital de fomento ao Audiovisual ao montante do bloco principal, teremos 61,7 milhões de reais, deixando o edital com 13% do montante final, o que já é uma parcela significativamente menor.

37O acesso dos proponentes que moram nas regiões contempladas pelo edital regionalizado não se restringe só a este. Nada os impede de propor projetos em outros editais. Contudo, analisando a lista de proponentes aprovados e habilitados, isto é, selecionados e aptos a assinar Termo de Ajuste com a Secretaria para execução do projeto, no edital de Áreas Culturais de 2017, e se cruzando os dados dispostos pelo CEAC, vemos que o Plano Piloto responde por 97 dos 251 proponentes habilitados, 38,6% do total. Se adicionados os Lagos Sul e Norte e o Sudoeste/Octogonal, que também não têm acesso ao edital regionalizado, há um total de 125 projetos, praticamente a exata metade de habilitados, para apenas 11,9% da população do DF.

Considerações finais

38Ao realizar a análise da concentração de recursos do fomento à cultura no DF, instrumentalizado por CEAC, FAC e LIC, nossa pesquisa fica limitada à observação do acesso ao fazer cultural dos agentes. Não há dados disponíveis para analisar a distribuição dos resultados do fomento entre as RAs, o que nos permitiria analisar se a população do DF está tendo o seu direito de acesso à cultura garantido. Pode-se projetar, contudo, que, uma vez concentrados os recursos em agentes culturais nas regiões centrais, os resultados do fomento também estarão concentrados.

39O CEAC acaba por cumprir o papel legitimador da exclusão cultural, econômica e social observada no DF. Seu resultado é a segregação ao acesso aos recursos públicos em camadas múltiplas: só quem reside no DF por dois anos e comprova uma atividade formal de cultura está apto. Assim, priva-se este acesso dos que estão fora dos padrões formais e do mercado cultural e, ainda, impossibilita atores externos, configurando uma reserva de mercado que atende a grupos de interesse.

40A orientação estatal para a criação e ampliação de mercados culturais, em detrimento de outros entendimentos de cultura, já representa, em si, um eixo ideológico, e mercadológico, de ação. A concentração do cadastro de agentes nas regiões centrais do DF é apenas mais um aspecto das concentrações sociais e econômicas existentes, em conformidade com essa orientação mercadológica e em descompasso com uma democracia cultural efetiva.