Introdução

1A construção de Brasília foi o elemento central e inicial do processo de desconcentração territorial do desenvolvimento econômico em direção ao interior do país e à abertura da fronteira amazônica. A nova capital, não prevista inicialmente no Plano de Metas do Presidente Juscelino Kubitschek (JK), mas transformada em sua meta-síntese, foi o coroamento de várias ações que se desenvolveram em meados do século XX, onde se destacou a Marcha para o Oeste do governo de Getúlio Vargas, visando à integração do litoral com a região central.

2A estruturação de um processo de planejamento sistemático com vistas à abertura da economia brasileira ao capital internacional inicia-se no governo Kubitschek. O Plano de Metas de JK, que reunia propostas para o período de 1956 a 1961, foi o primeiro plano nacional de caráter desenvolvimentista que norteou os investimentos estatais para a instalação de uma indústria de base e da infraestrutura de suporte à expansão capitalista moderna no Brasil (JATOBÁ, 2006).

3Os investimentos governamentais do Plano de Metas se concentraram em duas grandes linhas de apoio ao processo de industrialização : i) infraestrutura de transportes e energia; e ii) financiamento de máquinas e insumos para o setor secundário, especialmente as indústrias automobilísticas e siderúrgicas. O setor de transportes obteve 30% dos investimentos, construiu 12.600 km de estradas (ampliação de 57% da rede existente em 1955) e financiou a instalação de fábricas de automóveis no país (ALMEIDA, 2004; DIAS, 1996). As rodovias cumpriram um papel fundamental na irradiação do crescimento para os territórios de fronteira a oeste e ao norte do país. Brasília localizou-se no centro da nova malha rodoviária, ligando-se a Belo Horizonte e Rio de Janeiro, pela BR-040, a Goiânia e São Paulo (Sudeste), pela BR-060; a Belém (Norte), por meio da BR-010; a Fortaleza (Nordeste), pela BR-020 e a Cuiabá (Centro-Oeste), pela BR-070, conforme Mapa 1 no Caderno de Mapas.

4A construção de Brasília, além de propiciar a expansão da fronteira, impulsionou enormemente o crescimento da Região Centro-Oeste. Conforme Miragaya (2010), entre 1960 e 2008, a população do Centro-Oeste mais que quintuplicou, atingindo 16,5 milhões de habitantes. Cresceram também, de forma exponencial, a produção de grãos, o rebanho bovino e a produção de leite. O crescimento do setor agrário impulsionou fortemente o setor terciário e apenas a atividade industrial não teve expansão no mesmo nível, embora tenha crescido a atividade agroindustrial.

5A ocupação da zona central do país foi impulsionada pelo avanço do setor agrário e também pelo que o Estudo da Dimensão Territorial para o Planejamento (BRASIL/MPO, 2008, p. 24) chama de “o mais importante movimento concreto da política de desenvolvimento regional brasileira, que foi a instalação da nova capital do país”. E acrescenta: “com sua conexão com a vizinha Goiânia e seus eixos de acesso ao Centro-Sul, em direção ao Triângulo Mineiro e São Paulo e a Belo Horizonte e Rio de Janeiro”, Brasília cumpriu sua vocação de polo irradiador de desenvolvimento.

A utopia modernizante

6Para além dos impactos econômicos e desenvolvimentistas da construção da nova capital, Brasília, enfocada pelo seu urbanismo e arquitetura, cumpriu um papel simbólico na trajetória modernizante do país. E neste caso, pode se dizer que o seu projeto urbanístico pressupunha, além do crescimento econômico deflagrado pela sua implantação, aspectos utópicos quanto à perspectiva de transformação social e cultural que continha.

7O ideal utópico e transformador de Brasília era claro para Lucio Costa quando declarou que a nova capital era:

[...] o coroamento de um grande esforço coletivo em vista ao desenvolvimento nacional – siderurgia, petróleo, barragens, auto-estradas, indústria automobilística, construção naval; corresponde assim à chave de uma abóbada e, pela singularidade da sua concepção urbanística e da sua expressão arquitetônica, testemunha a maturidade intelectual do povo que a concebeu, povo então empenhado na construção de um novo Brasil, voltado para o futuro e já senhor do seu destino (COSTA, 1967).

8A utopia também estava presente no Relatório do plano piloto de Lúcio Costa quando ele a define como:

[...] cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país (COSTA, 1991).

9Passados mais de 60 anos desde que estas palavras foram escritas, Brasília ainda não atingiu o estágio idealizado pelo criador da ideia urbanística da cidade. Mantém os traços iniciais praticamente intactos, graças ao Tombamento da área central, mas não se pode dizer que tenha sido planejada para “o trabalho ordenado e eficiente” de toda a população que habita o Distrito Federal (DF), pois aqueles que não foram agraciados pelo privilégio de morar no Plano Piloto e adjacências, ainda são obrigados a se deslocar diariamente para o centro da capital em busca dos melhores empregos. E embora tenha se fortalecido como “centro de governo e administração”, ainda está longe de se tornar um “foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país”.

10Diante disso, faz-se a seguinte indagação: se a utopia modernizante dos primeiros anos de Brasília ainda está por se realizar, a realidade, forjada na posmodernidade líquida da contemporaneidade, mesmo distópica, pode conter elementos da utopia inicial?

11Na argumentação, que se apresenta a seguir, procuramos mostrar três fatos urbanos que, mesmo sendo fenômenos resultantes da fragmentação urbana que contraria a utopia da cidade unitária e igualitária, contêm elementos que fortalecem a autonomia dos núcleos urbanos que se desenvolvem fora da Área Tombada e favorecem o fortalecimento das identidades locais e do sentimento de pertencimento.

Elementos utópicos na contemporaneidade distópica

Subcentros emergentes

12Dados de 2015 sobre a distribuição da população e dos empregos no território do DF evidenciam, que mesmo mantida a centralidade do Plano Piloto, há pelo menos um subcentro de importância crescente. A aglomeração polarizada por Taguatinga, que inclui Ceilândia e Samambaia, a oeste, e Águas Claras, a leste, já concentra 35% da população do DF, enquanto o Plano Piloto, com taxa de crescimento populacional de 0,97%, entre 2010 e 2015, teve sua participação populacional reduzida para 7,7% da população do DF (CODEPLAN, 2018 e Tabela 1 no ANEXO desta obra).

13Quanto à localização dos empregos, a aglomeração formada por Taguatinga/Ceilândia/Samambaia já emprega 18% das pessoas que trabalham no DF, um percentual que se aproxima da metade dos que declaram trabalhar no Plano Piloto. Também é crescente o número de pessoas que trabalham na mesma cidade onde moram. Este percentual atinge 35,3% da população ocupada no DF, o que significa dizer que, depois do Plano Piloto, o local onde mais pessoas trabalham no DF é a sua própria RA de moradia (CODEPLAN, 2016).

14Gama e Sobradinho, embora concentrem um percentual bem menor de população e de empregos do que Taguatinga/Ceilândia/Samambaia, em função dos seus posicionamentos estratégicos, ao sudoeste e ao nordeste do DF, também são potenciais subcentros que podem emergir no futuro.

15Os principais fatores por trás do surgimento dos subcentros são explanados a seguir.

Mudanças no padrão da distribuição dos empregos e na mobilidade

16O movimento pendular entre o Plano Piloto e as cidades satélites é intenso desde os anos iniciais da cidade. Pesquisas recentes têm mostrado, contudo, que percentualmente o número de empregos na área central tem se reduzido nos anos recentes. Em 2002, dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) indicavam que 71% dos empregos formais do DF estavam concentrados no Plano Piloto (DISTRITO FEDERAL, 2010). O Estudo do Mapeamento da Atividade Econômica, publicado pela Codeplan em 2017, com base em dados da RAIS de 2014, apontou uma redução para 52,2% de vínculos empregatícios formais no Plano Piloto, embora esses empregos representasssem 74,7% da massa salarial do DF (CODEPLAN, 2017).

17Na Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio (PDAD) de 2015,a estimativa da população ocupada que declara trabalhar no Plano Piloto é de 41,5%, um percentual ainda menor (CODEPLAN,2016). Mesmo considerando-se que a PDAD é uma pesquisa declaratória que não se limita aos empregos formais e cadastrados da RAIS, há outros dados nela que apontam mudanças no padrão de distribuição dos empregos no DF, com consequências na mobilidade.

18Analisando dados da PDAD 2015, quando se correlaciona o local de trabalho com a escolaridade, fica evidente que a maior parte dos que trabalham na RA de sua moradia tem baixa escolaridade, o que limita o acesso aos empregos de melhor nível, que continuam concentrados no Plano Piloto. A PDAD 2015 mostra ainda que dentre a população ocupada com ensino fundamental incompleto há um percentual majoritário que não tem o Plano Piloto como local de trabalho,55 atingindo 83,3% em Ceilândia; 79,5% em Taguatinga; e 76% em Samambaia; 83,3% no Gama; e 68,3 % em Santa Maria; 85,1% em Sobradinho; e 83,3% em Sobradinho II (VELLOSO; JATOBÁ, 2017).

19Na correlação do local de trabalho com a renda, constata-se que as RAs com menos de 45% de população trabalhando no Plano Piloto estão predominantemente no estrato de renda média-baixa e renda baixa. Isso pode ser explicado pelas seguintes hipóteses: i) localmente a oferta de postos de trabalho no comércio e serviços tem crescido para as faixas de menor escolaridade e renda; ii) o custo do transporte para as áreas mais distantes compensa a possível menor remuneração de um emprego na própria RA que exige menor qualificação.

20Em uma outra correlação interessante, Rennó (2016 apud. VELLOSO; JATOBÁ, 2017), com base em dados da PDAD 2013, constatou que 44,5% dos que trabalham no Plano Piloto moravam no próprio Plano Piloto ou em localidades situadas nas suas proximidades: Sudoeste/Octogonal, Lago Sul, Lago Norte, Jardim Botânico, Cruzeiro, Park Way, Guará, Águas Claras e Sobradinho II. Um fator comum a essas nove Regiões Administrativas (RA) é que estão inseridas nos grupos de alta ou de média-alta rendas, os quais tendem a utilizar mais o transporte individual em detrimento do transporte coletivo. Isto nos faz concluir que os problemas de congestionamentos de trânsito e de estacionamentos no centro estão mais relacionados aos deslocamentos da população de maior renda do que ao movimento pendular entre as RAs mais distantes e o Plano Piloto.

21Também nas cidades da Periferia Metropolitana de Brasília (PMB), conforme dados da Pesquisa Metropolitana por Amostra de Domicílios (PMAD 2017/18), tem se constatado a redução progressiva da população ocupada que trabalha no DF e um aumento do número dos que trabalham no próprio município, similar ao que ocorre nas RAs do DF. Em municípios mais distantes do DF, e que tradicionalmente nunca tiveram uma relação muito forte com Brasília, o percentual dos que trabalham no próprio município atinge 97,1% em Cristalina, 88% em Formosa, 88% em Alexânia e 65,3% em Luziânia. Mesmo naqueles municípios mais dependentes do DF quanto ao emprego, o percentual dos que trabalham no próprio município cresceu entre 2013 e 2017, passando de 37% para 45,8% em Santo Antônio do Descoberto; de 36,9% para 38,7% em Novo Gama e permanecendo em 39% em Cidade Ocidental.

22Maior ainda é o percentual dos que estudam e utilizam hospitais e serviços de saúde no próprio município na PMB, o que reflete o aumento da infraestrutura de instalações e serviços de educação e saúde nesses municípios. Também aumentou o percentual dos que realizam compras no próprio município, reflexo cruzado do fortalecimento do setor terciário (comércio e serviços) e que acaba por criar maior oferta de empregos neste setor.

23O crescimento da oferta de postos de trabalho no setor terciário, ocupados majoritariamente pela população de menor escolaridade e menor renda, tem modificado o padrão de mobilidade urbana na AMB. Cresceram as movimentações em direção ao subcentro polarizado por Taguatinga e entre as RAs do DF. Ao movimento pendular e fortemente radial em direção ao PP, contrapõese um padrão que denominamos de circular ou transversal de mobilidade que reduz parte dos deslocamentos para o Plano Piloto, os quais, no entanto, ainda permanecem altos56 em termos absolutos.

24Outro fenômeno que merece atenção é o do fortalecimento dos vetores de crescimento urbano para fora da Área Tombada, como se verá a seguir.

Eixos de crescimento urbano na Área Metropolitana de Brasília

25As cidades que gravitam em torno do Plano Piloto foram criadas e cresceram em função do motor econômico gerado pela Administração Pública. Brasília, mesmo não sendo um centro industrial, produziu efeitos de crescimento urbano similares aos que ocorrem em economias de aglomeração. Estar na capital do país, ou o mais perto dela, produz benefícios para as pessoas. Contudo, as economias de aglomeração também exacerbam as desigualdades socioterritoriais. Mesmo se desenvolvendo desigualmente, as economias de aglomeração comprovam que as cidades se beneficiam da densidade, tanto funcionalmente quanto economicamente (BANCO MUNDIAL, 2009).

26Em Brasília as maiores densidades habitacionais não estão no centro, invertendo o padrão geralmente encontrado na maior parte das cidades. As limitações impostas pelo tombamento à densificação do Plano Piloto empurraram as urbanizações mais densas para fora da Área Tombada. A dinâmica urbana da Área Metropolitana de Brasília se fortelece em vetores de crescimento que se desenvolvem ao longo dos mesmos eixos viários que irradiaram o desenvolvimento do Centro-Oeste e da fronteira amazônica a partir de Brasília.

27Identificamos quatro vetores de crescimento urbano, conforme Mapas 6 e 7 no Caderno de Mapas, sumariamente descritos a seguir :

1. Eixo da BR-040, que se prolonga a partir da DF-001, nele estão os núcleos urbanos mais populosos do DF (Taguatinga, Ceilândia, Samambaia, Recanto das Emas, Riacho Fundo, Gama e Santa Maria). E no seu prolongamento, ao sul, estão alguns dos municípios da AMB que mantêm uma relação mais intensa com o DF, como Novo Gama, Valparaíso de Goiás e Cidade Ocidental. O fortalecimento do subcentro Taguatinga e a emergência do Gama, como um subcentro polarizador dos municípios da periferia sudoeste da AMB, apontam para uma completa conurbação e o adensamento progressivo deste eixo, que tende a se tornar a principal região urbana da AMB. Os impactos mais expressivos ocorrerão na mudança do padrão de mobilidade urbana do DF e no crescimento da autonomia das cidades que nela estão inseridas.
2. Eixo da BR-060 faz a ligação entre Brasília-Anápolis-Goiânia e conforma um dos eixos de desenvolvimento econômico brasileiros mais destacados pelo número de empresas criadas nas suas cidades, atração de novos negócios e potencial consumidor. Tende a se fortalecer pela implantação de um sistema ferroviário de transporte de passageiros com um trem expresso de média velocidade que ligaria Brasília, Anápolis e Goiânia. Na AMB o desenvolvimento deste eixo tenderia a formar uma conurbação entre Santo Antônio do Descoberto e Samambaia.
3. Eixo da BR-070 - Outro vetor de crescimento urbano que se expandiu fortemente nos anos recentes e que poderia se integrar ao Eixo Brasília-Anápolis-Goiânia. Ele margeia a parte norte de Taguatinga e Ceilândia e atravessa Águas Lindas de Goiás na AMB, estabelecendo um corredor, praticamente conurbado, entre essas três localidades. O crescimento populacional de Águas Lindas de Goiás, explosivo no final da década de 1990, está fortemente vinculado à migração de pessoas e famílias provenientes do DF e se mantém elevado.
4. Eixo da BR-010/BR-020, que se desenvolve no DF a partir da DF- 003, orienta o crescimento urbano na parte norte e leste do DF. Ao longo dele encontram-se Sobradinho, Planaltina e os núcleos urbanos que cresceram no entorno destas cidades. Margeia o Conjunto Urbano Tombado de Brasília, a oeste do Plano Piloto, interceptando a leste o anel viário da DF-001. A tendência é que este eixo, pelos melhoramentos e ampliações viárias que estão sendo executadas na saída norte, seja um vetor cada vez mais forte de ocupação da porção leste do DF, acentuando a expansão e o adensamento urbanos no entorno de Sobradinho e Planaltina e a ligação com Formosa, que integra o conjunto de municípios, a leste do DF, que se destacam na produção agropecuária.

O dilema do patrimônio tombado

28A utopia de uma cidade socialmente integrada e igualitária não se cumpriu em Brasília, como também não se cumpriu nas demais metrópoles brasileiras. Na discussão anterior, contudo, se mostrou que na distopia da sua fragmentação, alguns elementos daquela utopia original podem se vislumbrados, conforme Figura 1.

Figura 1 – Utopias e distopias frente ao tombamento patrimonial

29As cidades do DF, que deveriam ser originalmente satélites do poder que emana da capital nacional, nasceram, disvirtuadamante, como cidades-dormitórios e assim permaneceram por muito tempo. Ao nos acercarmos do final da segunda década do Século XXI, pode se concluir que elas, algumas mais do que outras, voltam a se aproximar do ideal inicial de Lúcio Costa, na medida em que estão adquirindo uma relativa autonomia quanto à geração de empregos e à oferta de comércio e serviços. A isto se soma o surgimento de subcentros, como o do aglomerado Taguatinga/Ceilândia/Samambaia e o fortalecimento de vetores de crescimento urbano que transportaram a maior parte da dinâmica urbana do DF para fora da Área Tombada.

30Esta dinâmica urbana e econômica crescente, contudo, é totalmente dependente do motor que gera e propulsiona a economia do DF: o setor público. A crise fiscal que se abateu sobre as administrações federal e distrital nos anos recentes ameaça a manutenção desse movimento ascendente, que teve um grande impulso durante o período de 2004 a 2013, quando o PIB brasileiro teve sucessivas taxas positivas, com uma breve interrupção em 2009. A crise econômica brasileira, que se iniciou em 2014 e atingiu seu auge em 2015 e 2016, apresentou sinais de reversão em 2017 e segue em 2018 com uma tímida recuperação econômica, ainda não consolidada. No DF, houve uma pequena recuperação do Índice de Desempenho Econômico do Distrito Federal (Idecon/DF), o qual apresentou crescimento positivo de 1,1% em 2017, após 11 trimestres consecutivos de índice negativo (CODEPLAN, 2017).

31No entanto, mesmo com uma situação econômica nacional e distrital ainda indefinida, há que se ressaltar que a dinâmica urbana que cresce além da Área Tombada produziu efeitos positivos, como o empoderamento cultural das cidades satélites. Movimentos culturais, que progressivamente, se independem e se deslocam do Plano Piloto, tendem a fortalecer suas identidades locais, o que poderia implicar em uma não valorização de Brasília como Patrimônio da Humanidade na mesma intensidade com que os moradores do Plano Piloto o fazem. Um outro risco é que com a tendência de redução progressiva do percentual da população do DF que mora no Plano Piloto, os defensores do tombamento também podem ter sua importância política reduzida frente ao crescimento dos interesses identitários de outras localidades do DF.

Conclusão

32Passados quase 60 anos da inauguração de Brasília, pode se dizer que o projeto modernizante e de interiorização do desenvolvimento nacional foi bem-sucedido, predominantemente no aspecto econômico. Mas criou desigualdades sociais e fragmentação espacial, que se manifestaram mais fortemente na periferia metropolitana da capital, colocando em xeque o ideal modernista de maior equidade social e transformação cultural. Brasília, consolidada como sede do Governo Federal, é uma economia de aglomeração que, a partir do Plano Piloto, irradia um desenvolvimento urbano desigual em direção às RAs (cidades-satélites) e ao seu colar metropolitano.

33A fragmentação desintegrou o sonho utópico de uma cidade igualitária, mas em contrapartida produziu uma dinâmica territorial que progressivamente desloca o eixo de crescimento urbano e desenvolvimento para fora da Área Tombada e resultou no fortalecimento das identidades locais, o que é positivo. Contudo, é forçoso admitir que a defesa dos ideais do tombamento patrimonial tende a ficar cada vez mais restrita aos moradores da Área Tombada, o que lhe daria um cunho elitista indesejável.

34Talvez a maneira de conciliar o crescimento da importância econômica e cultural das cidades satélites com a preservação da Brasília Tombada seja reinventar a utopia inicial. Não com a esperança, um tanto ingênua, que ela se cumpra exatamente como originalmente prevista. Mas com uma nova esperança de que, mesmo diante das contradições distópicas de uma cidade que cresce ainda permeada pelas suas desigualdades, a Brasília idealizada por Lúcio Costa, preservada como patrimônio da humanidade, se mantenha como símbolo de um projeto de nação ainda por construir, mas que deve continuar vivo na memória do seu povo.