1Eu falo do lugar de educadora feminista. Integro a equipe do Grupo Curumim1, organização feminista, antirracista e não partidária, com sede no estado de Pernambuco2, nordeste do Brasil. Minha intenção é contribuir com as reflexões deste fórum, a partir de minha experiência durante a ação educativa em uma política social de Estado, na cidade de Goiana, Pernambuco (PE), município considerado pelo Estado, “Pólo de Desenvolvimento”.

Resposta ao contexto neoliberal e patriarcal: o posicionamento de uma organização de educação feminista

2A realização de uma ação educativa em área de “desenvolvimento3” exige que se analise as questões políticas, econômicas, sociais, étnicas e ambientais que permeiam a política desenvolvimentista em foco, que se observe a melhoria da qualidade de vida das pessoas, considerando a diversidade social de seus residentes. Neste sentido, iniciarei colocando um pouco sobre o contexto político e minhas impressões, à luz do que tenho vivenciado e dialogado nos espaços de análises de cenário, no Grupo Curumim e no movimento de mulheres e feminista.

3O Brasil tem implantado uma política de aceleração do crescimento e de ampliação dos grandes polos industriais, em um sistema capitalista globalizado que se nutre das desigualdades de gênero, raça e classe para se manter estruturado. Ademais, a estrutura político-administrativa que sustenta esse modelo desenvolvimentista é a que fortalece o Estado Mínimo, enfraquecendo a implementação de políticas públicas de saúde, educação, proteção do meio ambiente e previdência social. Esse modelo privilegia uma parcela da sociedade, os donos do capital.

4Garantir a democracia, a igualdade de direitos e a melhoria da qualidade de vida de forma sustentável para todas e todos é contraditório ao papel do Estado Mínimo, que torna hegemônico um modelo de desenvolvimentismo neoliberal, capitalista e patriarcal. E onde tem capitalismo e patriarcado tem exploração e opressão, e essa exploração e opressão tem sexo, tem identidade de gênero, tem cor e classe social, simples assim!

5A ação feminista enfrenta relações desiguais de poder entre homens e mulheres, o racismo, a exploração da força de trabalho, a desigualdade na divisão sexual do trabalho produtivo e reprodutivo, e a pobreza, que são questões globais que atingem diretamente as mulheres, em sua maioria, negras e pobres. Neste sentido, tem agendas antagônicas ao modelo desenvolvimentista que tem como objeto a acumulação do capital para poucos (leia-se: homens brancos, heterossexuais e “bem nascidos”).

6O movimento feminista brasileiro, assim como outros movimentos sociais, enfrentam hoje um desafio assustador no que se refere à garantia da democracia e da igualdade de direitos, uma vez que grupos fundamentalistas, conservadores, religiosos, do agronegócio, dos donos do capital, têm tomado grande parte dos assentos nos poderes executivo, legislativo e judiciário, espaços de deliberação e definição de leis e políticas, e de proteção de direitos. Uma correlação de força difícil, uma verdadeira onda de direita orquestrada para retomar o poder e promover o retrocesso aos Direitos Humanos conquistados nas leis.

7No campo da legislação que envolve os direitos das mulheres, as tensões e ameaças têm sido constantes. Um grande exemplo encontra-se nos inúmeros Projetos de Lei (PL) que buscam anular as três situações onde o aborto é legalizado no Brasil - risco de morte da mulher, gravidez resultante de estupro e feto anencefálico. Além de PLs que propõem amenizar penas previstas na Lei Maria da Penha, que tornou crime a violência doméstica contra a mulher. Outros retrocessos sem paralelo estão postos em PLs que têm como objeto proibir o ensino sobre gênero e a discussão sobre direitos sexuais nas escolas.

8Existem perdas, também, nos espaços institucionalizados de defesa de direitos das mulheres no âmbito federal, a exemplo do desmonte da Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM), da Secretaria Especial de Igualdade Racial (SEPIR) e da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), que tinham status de ministérios independentes e que foram transformadas, em outubro de 2015, em um só ministério, intitulado Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos4. Além de corte de verbas e perda de autonomia plena, a SPM enfrenta a Medida Provisória nº 696/15, que propõe a retirada da expressão “perspectiva de gênero” do âmbito das suas atribuições. Enfim, o Brasil enfrenta uma soma e “sombra” de iniciativas voltadas a retrocessos significativos e simbólicos no âmbito dos direitos das mulheres. Por consequencia, a situação não é diferente em Pernambuco, onde a organizacao Curumim esta localizada.

9Vivemos um momento político que requer uma ação urgente, mais incisiva e proativa, vinda de dentro das instituições de defesa dos direitos das mulheres, bem como dos Ministérios, das Secretarias e das Coordenadorias da Mulher, a níveis federal, estaduais e municipais. Da mesma forma, o momento exige ainda mais participação dos movimentos sociais nos espaços de controle das políticas públicas, com ações para pressão sistemáticas junto aos poderes públicos e de ação junto às comunidades. Ações que se constituem em espaços de educação e discussão de política para as mulheres e de desvelamento, para toda a população, do que acontece nos “bastidores do poder”, as barganhas e acordos políticos que inteferem diretamente na vida em sociedade, já que as informações transmitidas pela grande mídia atendem aos interesses da elite nacional.

10No entanto, este é um momento em que os movimentos sociais no Brasil vivenciam uma onda de crescente criminalização, impulsionada mais uma vez pelas forças conservadoras que buscam tipificar, juridicamente, como crime as ações coletivas de enfrentamento a retrocessos como os citados acima, e de desqualificar e não reconhecer como legítimas as bandeiras de lutas dos movimentos sociais que fazem crítica ao modelo neoliberal e focam suas ações na ampliação dos Direitos Humanos. Para agravar este cenário, os movimentos e organizações da sociedade civil passam por um momento de vulnerável sustentabilidade financeira, o que fragiliza, em parte, a capacidade de atuação e enfrentamento exigida pelo momento.

11A política econômica do Estado de Pernambuco tem sido pautada em um modelo de “desenvolvimento” que se constitui em fortalecer projetos para construção de uma refinaria de petróleo no litoral sul, de um polo automotivo na zona da mata norte, do agronegócio na zona rural e a verticalização dos projetos imobiliários na zona urbana, não diferindo do modelo de crescimento de megas projetos em outros estados do país, como a construção de hidroelétricas, mineradoras, dentre outros.

12É neste contexto que o Grupo Curumim tem realizado ações de incidência política e político-educativa junto às mulheres, adolescentes, jovens, bem como junto a profissionais e gestoras/res da saúde, educação, assistência social e dos conselhos de direitos. Sua atuação está embasada em técnicas de acolhimento, de escuta e de construção coletiva. Um processo educativo para o fortalecimento do poder identitário e coletivo, em especial das mulheres, meninas e jovens. A ação político-educativa do Grupo Curumim combina técnicas, atividades e instrumentos da abordagem Reflect-Ação5, da aprendizagem organizacional/Teoria da Ação, com base nos ensinamentos da pedagogia de Paulo Freire e o posicionamento político feminista.

13Uma das ações realizadas pelo Grupo Curumim dirige-se às mulheres da pesca artesanal, público diretamente envolvido em uma política social do estado de PE6, uma experiência emblemática e complexa, sob a qual focarei o diálogo a seguir.

Uma experiência emblemática de luta social: a ambiguidade de políticas públicas de luta contra a pobreza

14A experiência que trato a seguir, foca em uma política de complementação de renda do estado de Pernambuco, que consiste em assegurar às/aos trabalhadoras/es rurais da cana de açúcar, da fruticultura e da pesca artesanal, o repasse de um benefício financeiro durante os quatro meses do ano que ficam sem trabalho7, no valor aproximado de 30% do salário mínimo nacional. Trata-se de uma política suplementar ao Bolsa Família, programa federal de combate a fome e a miséria8. Isso significa que durante um período do ano se agrava a situação de pobreza da categoria de trabalhadoras/es rurais e da pesca artesanal. Durante este período, este benefício torna-se a principal fonte de renda da maioria das famílias.

15As/os trabalhadoras/es rurais recebem o benefício durante a entressafra9, período em que os empregadores, proprietários da terra e do agronegócio desempregam um grande contingente da força de trabalho. Portanto, este modelo de política pública estabelece um evidente pacto entre os donos do capital e o governo, uma vez que o Estado garante a “sobrevivência” das/os trabalhadoras/es para que sua força de trabalho esteja disponível no momento oportuno para os “donos da terra e do capital”, sem os custos ou “sustos” que o risco da migração dessa mão de obra em busca de novos empregos acarretaria para eles não houvesse esta alternativa. A medida ainda exime os donos do capital da responsabilidade trabalhista com a classe trabalhadora no período da entressafra.

16Diferente da categoria de trabalhadoras/es da fruticultura e da cana de açúcar, que dependem dos donos do capital e do território, as pescadoras e pescadores artesanais são extrativistas que trabalham por conta própria, dependem do meio ambiente/da natureza e foram incluídas/os nesta política social somente depois de cinco anos de sua criação. Aqui vale a ressalva de que a inclusão dessa categoria de trabalhadora/es ocorreu como resultado da luta das mulheres pescadoras impedidas de pescar durante o período do ano onde ocorre a reprodução das espécies e por causa das chuvas.

17Um dos requisitos para inclusão no Programa10 é que as/os trabalhadoras/res estejam cadastradas/os pela Secretaria de Planejamento e Gestão do Estado e participem de cursos de profissionalização e capacitação durante os meses que estão recebendo o benefício, tornando compulsório o aprendizado de um “novo ofício”. Os cursos, até 2015, foram de responsabilidade das secretarias do governo de Pernambuco, como a de educação, do meio ambiente, da mulher e do trabalho, além de órgãos federais do “Sistema S”: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), o Serviço Social do Comércio (SESC) e o Serviço Social da Indústria (SESI)11. Foi através dessa ação, que a Secretaria da Mulher de Pernambuco aportou uma proposta de ação educativa, diferenciada, e voltada às mulheres.

18A Secretaria da Mulher12 é um equipamento do Estado que atua em defesa dos direitos das mulheres. Neste sentido, tem o papel de formular, desenvolver, articular, coordenar, apoiar e monitorar políticas públicas para promover a melhoria das condições de vida das mulheres pernambucanas13. Sua criação foi resultado da pressão dos movimentos de mulheres e feministas de Pernambuco que, desde os anos 80, têm se consolidado como movimentos de grande importância na luta pelos direitos das mulheres, fruto da ação política das organizações, das ativistas feministas e dos coletivos de mulheres do estado, bem como da ação articulada em movimento, a exemplo das ações impulsionadas pelo Fórum de Mulheres de Pernambuco.

19A Secretaria, que desde sua instituição tem contado com uma gestora do campo feminista, inseriu, no âmbito desta política, a realização de cursos para a formação política das mulheres e recreação para suas/seus filhas/os durante o curso, uma vez que não existe uma política de creche nem de educação em horário integral no Estado. Como estratégia, até 2015, passou a convidar organizações do movimento de mulheres e feministas, selecionadas por suas expertises em educação popular e/ou feminista, para a execução dos mesmos14, de forma a assegurar conteúdo e qualidade à ação junto às mulheres. Embora essa política do Governo de Pernambuco atinja trabalhadoras da cana de açúcar, da fruticultura e da pesca artesanal, meu olhar estará focado na ação junto às mulheres da pesca artesanal do município de Goiana, por ser a categoria de trabalhadoras e o município onde o Grupo Curumim tem atuado como executor da ação educativa do projeto.

20A cidade de Goiana, distante 70 km da capital Recife, zona da mata e litoral norte do estado, tem uma população de 75 600 habitantes, sendo 52 % de mulheres. Neste momento15, é o epicentro do polo automotivo do estado, com a implantação de empresas de capital externo como a FIAT e a JEEP, além de um polo fármaco-químico, dentre outras empresas e fábricas16. Um verdadeiro canteiro de obras e indústrias está instalado no município, originalmente agrícola e pesqueiro.

21As mulheres pescadoras de Goiana, inseridas nas ações do projeto de 2012 a 2015, têm mantido o mesmo perfil. São, em sua maioria, negras, pobres, de baixa escolaridade, trabalham na pesca do marisco e siri (espécies de moluscos da gastronomia regional) e no beneficiamento do pescado. Poucas pescam com barco, uma vez que a maioria das embarcações é de propriedade dos homens, um dos fatores que torna o trabalho produtivo das mulheres menos valorizado e menos valorado. São responsáveis também pelo trabalho reprodutivo e, mesmo estando em uma área que é polo de desenvolvimento, têm pouco, ou nenhum acesso às políticas públicas.

22A “ação coletiva” das organizações que trabalham com as mulheres da pesca artesanal, realizada até 2015, contribuiu para que se avançasse a relação entre essas e a Secretaria da Mulher do Estado, especialmente no que se refere à definição de métodos e dos temas tratados nos cursos, o que tem assegurado a inclusão de metodologias e didáticas que favorecem a inserção de conteúdos sobre gênero, classe, raça, saúde integral, direitos sexuais, direitos reprodutivos, a relação entre o trabalho produtivo e reprodutivo, a violação de direitos e a importância das ações coletivas para garantia de direitos, na perspectiva da autonomia das mulheres.

23Por outro lado, entendo que o Estado não conseguiu avançar no que se refere à oferta de cursos que atendam aos interesses individuais das pescadoras. Isso significa que, mesmo que as organizações executoras da ação educativa tenham “escutado” as participantes e apresentado à Secretaria da Mulher a prioridade de interesses das pescadoras, o resultado da consulta não assegurou a vaga desejada no curso pretendido durante o cadastramento no projeto, nem melhorias à infraestrutura para desenvolvimento das atividades programadas.

24O cadastramento é realizado pela Secretaria de Planejamento e Gestão do Estado, o que permite inferir que existe um descompasso entre a forma de encaminhar as ações do projeto dentro das instituições que operam o Estado. Assim, enquanto a Secretaria da Mulher recebeu informações das organizações sobre as prioridades de cursos e indicações de melhoria da infraestrutura apontados pelas pescadoras, dialogando com as organizações sobre o desejo das mulheres, a Secretaria de Planejamento cadastrou-as para os cursos sobre outra lógica, ferindo o direito de escolha e a autonomia das mulheres.

25Portanto, neste contexto estadual alguns desafios estão postos. Dentre eles: garantir a autonomia das mulheres e das organizações frente ao projeto político do governo de Pernambuco e garantir a relação e diálogo das organizações feministas com o governo estadual e, neste caso, a relação com uma feminista do governo. É preciso considerar a complexidade deste cenário e as correlações de força dentro do governo e fora dele.

26Para cumprir seu papel no Estado, é preciso que a Secretaria da Mulher, enquanto instância de defesa e promoção dos direitos das mulheres esteja fortalecida para o enfretamento dentro do próprio governo. Por outro lado, o coletivo de organizações que se compõe, saudavelmente, na diversidade de posicionamentos políticos e teóricos, gera diferentes formas de se relacionar e de envolvimentos com a gestão. Neste sentido, nem sempre existe convergência à crítica ao modelo de gestão dentro deste coletivo. Por outro lado, assegurar o diálogo e fazer a crítica ao modelo de desenvolvimento estando na “execução” de parte de uma política considerada pelo estado uma das mais exitosas, é, também, o diferencial das organizações feministas com capacidade técnica e autonomia política.

27O que alimenta o compromisso das organizações com essa ação educativa junto às mulheres é que a cada encontro17 se percebe, em seus depoimentos, a importância dos cursos como momentos de escuta e diálogo, de despertar para o reconhecimento de situações de opressão que sofrem no cotidiano. Tem permitido conhecer, de perto, o acesso e, na sua maioria, a falta de informação e de acesso às políticas públicas locais e às políticas sociais do Governo Federal18. Percebe-se que a ação educativa contribui para que as mulheres olhem o mundo com a lente da criticidade, com o olhar das relações de gênero, das relações de poder que sustentam a sociedade.

28Por outro lado, existe um desafio real para as mulheres, porque estas velhas questões cotidianas são novas quando vistas como questões a serem enfrentadas por elas. Além de que, para assimilar as opressões naturalizadas se faz necessário um tempo para maturação das aprendizagens, para reflexão e mudanças de atitude. Alguns fatores como a vivência diária das mulheres nas igrejas, em especial evangélicas, têm exigido maior atenção das organizações de mulheres e feministas dentro dos cursos, no que se refere a colocar em discussão junto às mulheres a importância da laicidade do Estado e de fomentar espaços de reflexão sobre o lugar da mulher nas instituições religiosas. Também aprofundar a reflexão sobre o que representa, historicamente, a igreja na vida das mulheres.

29O conservadorismo, o crescimento das igrejas nas comunidades e a cultura machista local, agregada à falta de acesso às políticas e a falta de acesso a espaços de discussão e organização política das mulheres em suas comunidades, fragilizam o embate e o enfrentamento a este cotidiano, mesmo com o sentimento de indignação exacerbado. Assim, o contexto em que vivem, por si só, se constitui um desafio para uma tomada de decisão rumo à construção de uma nova forma de vida. Neste sentido, para a autonomia das mulheres, tão importante quanto garantir educação política, é garantir que as políticas públicas de fomento à cidadania cheguem às suas vidas.

30Enquanto categoria profissional, percebe-se na fala de algumas mulheres, especialmente as mais jovens, o sonho de migrar da atividade da pesca artesanal para as fábricas de costura das empresas automotivas. Hoje, existe uma expectativa da juventude local, fruto do que vem sendo disseminado sobre “segurança econômica” pelo senso comum, de conseguir um emprego fixo, assalariado, nas empresas. Trata-se de um contexto que pode, em curto prazo, enfraquecer a pesca artesanal, deixando vulnerável a luta pelo território tradicional pesqueiro, o que favorece “a posse” deste território por empresas pesqueiras como as empresas de criação de camarão no cativeiro e de beneficiamento do pescado19.

31Essa realidade pode enfraquecer as pescadoras e pescadores enquanto categoria profissional e também tornar, a médio e longo prazo, esta categoria assalariada das empresas em seu próprio território pesqueiro, o que seria uma vitória do modelo capitalista. Esta é uma realidade que denuncia o avanço e a consolidação de um modelo de desenvolvimento nos moldes mais perversos do capitalismo, onde um bem da população tornar-se um bem individual, onde a necessidade de sobrevivência, advinda de falta de políticas públicas sociais inclusivas, pode caminhar para que a mão de obra da categoria da pesca artesanal e familiar se transforme em mão de obra a serviço da mais valia dos donos do capital interno e externo.

32Os diálogos e a análise sobre a macro política econômica e social e as consequências dessa política para a pesca artesanal tem sido trabalhadas de forma insipiente no âmbito dos cursos da ação educativa, uma vez que a formação acontece em apenas 80 horas por ano. Dessa forma, o Grupo Curumim avalia que o tempo das educadoras junto às mulheres tem sido insuficiente para o aprofundamento de todas as questões relacionadas ao poder identitário e coletivo das pescadoras, bem como insuficiente à reafirmação da importância social e política da categoria pescadoras, especialmente no curso de Gestão Produtiva e Econômica, em que 60% do tempo destina-se ao aprendizado de uma técnica de artesanato ou beneficiamento de pescado ou de apetrechos da pesca, reduzindo o tempo de discussão política.

Propostas pautadas na vida cotidiana das mulheres: uma evolução necessária das políticas públicas de combate à pobreza

33Conhecer o impacto real das políticas econômicas e sociais na vida das mulheres pescadoras, para além dos indicadores quantitativos que indicam quantas recebem os benefícios e quantas estão inseridas nos cursos de formação, coloca-se como um imperativo à mudança e aprimoramento das mesmas, a fim de verdadeiramente promover a justa inclusão social e econômica destas mulheres. Na pesca artesanal que ocorre no município de Goiana é importante investigar, por exemplo, as consequências do desmatamento, da poluição dos mangues20, do aumento do uso de energia e água pelas indústrias e do “inchaço” populacional com um contingente de imigrantes, a maioria de homens, em busca de emprego. Também é preciso desvelar as condições desiguais de autonomia em que vivem as mulheres, investigar, por exemplo, o impacto da inexistência de uma política de creche, o tempo de vida das mulheres destinado ao trabalho reprodutivo e a falta de proteção e de incentivos para a melhoria das condições do seu trabalho produtivo.

34Conhecer o impacto da ampliação do crescimento industrial na vida das mulheres depende de vontade politica e é fundamental para definições de políticas públicas que garantam o enfrentamento de forma consistente à condição de pobreza, às relações desiguais de gênero e ao racismo. O movimento feminista tem pautado a pobreza para além de uma condição econômica que se resolve com benefício financeiro, sem a garantia da cidadania. Receber um benefício, sem dúvida, é uma reparação necessária e importante neste momento. Eu diria até que indispensável. Mas, se não se assegura às mulheres o direito de acesso aos recursos naturais e sociais, o trabalho, independência econômica, educação, saúde, mobilidade, informação, à cultura , à participação política e à vivencia de sua autonomia, não se criam as condições mínimas para que vislumbrem superar a condição de pobreza. Neste sentido, a garantia destes direitos, de maneira segura e inalienável, tem sido uma das demandas do movimento de mulheres e feministas.

35No cerne da proposta das organizações que trabalham com mulheres da pesca artesanal, entendo que, chegar perto das pescadoras e dialogar a partir da perspectiva feminista, se constitui como uma estratégia para disseminar direitos, possibilidades de enfrentamentos às suas violações, ampliar visões de mundo, ampliar a reflexão sobre autocuidado, pensar outras perspectivas de vida e, ainda, desmistificar o senso comum, que desqualifica as mulheres, as feministas e seus movimentos. Igualmente importante tem sido adentrar e conhecer a vida das mulheres pescadoras, conviver com suas experiências. Uma ação dialógica que nos ensina e amplia as análises a partir do ponto de vista de uma categoria, do lugar da mulher na pesca artesanal.

36As mulheres reconhecem e avaliam, em sua maioria, a importância da ação educativa, mas é imprescindível conhecer sua eficácia. Conhecer o impacto do projeto na vida das mulheres, qual o ganho real para suas vidas e que fatores contribuíram, ou não, para possíveis mudanças. Sendo assim, existe uma lacuna no processo: a falta de investimento para monitoramento e avaliação dos resultados da ação educativa na vida dessas mulheres, seus ganhos e limites para além dos números, para, assim, podermos manter estratégias e/ou ajustá-las.

37Por outro lado, é importante ter em mente que os estudos acadêmicos que podem contribuir com estas mudanças devem-se tornar instrumentos de informação para as mulheres e os movimentos em que atuam e, desta forma, promover ações que vislumbrem o fortalecimento das mulheres para o enfrentamento às violações de direitos para que realmente sejam uma fonte de informação para a melhoria das políticas públicas.

38Estudo guardado entre quadro paredes, entre pares, entre línguas, entre continentes, entre expertises em fenômenos, configura-se como privilégio somente para quem os acessa e, portanto, se torna estudo morto socialmente. É preciso ampliar as estratégias para que a disseminação da construção do conhecimento sobre os fenômenos que interferem na vida das mulheres rompa barreiras e chegue, de fato, à vida das mulheres.

Conclusão

39Concluo afirmando que para que a ação de educação política, em qualquer espaço, possa contribuir na transformação e mudança na vida das mulheres, é preciso: que se torne um aprendizado significativo, que esteja vivo no cotidiano das mulheres, vivo frente ao contexto em que estão inseridas; que a conquista de direitos coletivos e o enfretamento à sua violação, frente a toda esfera de poder, esteja centrada na força da ação política articulada pelos e entre os movimentos. Sendo assim, é de suma importância que as pescadoras tenham acesso aos espaços de avaliação e construção de políticas públicas, que tenham a condição de se articular com o movimento de mulheres da pesca artesanal e com outros movimentos, a exemplo do movimento de mulheres e feministas do estado de Pernambuco.

40O movimento de mulheres e feministas em Pernambuco é um movimento forte e que tem ampliado o número de jovens ativistas. O momento político vem exigindo a abertura para espaços de diálogo e ação coletiva entre os vários feminismos e movimentos da sociedade civil, impulsionado pela conjuntura política de tentativa de desmonte da democracia brasileira.

41Acredito, assim, que seria muito oportuno retomar e ampliar algumas ações para o fortalecimento da ação coletiva das mulheres, a exemplo da “Caravana Feminista”, uma ação realizada pelo Fórum de Mulheres de Pernambuco durante o ano de 200921. A Caravana teve como metodologia feminista a formação na ação e foi implementada através de encontros de discussão e ação política feministas. Envolveu 75 municípios das quatro regiões do estado, com a participação de 119 grupos e articulações de mulheres22. Considerar que estes grupos, quando se juntam em movimento, fortalecem a luta pela autonomia das mulheres e esse “se juntar” é essencial uma vez que “só a ação coletiva do movimento social tem força política capaz de transformar o mundo, de maneira radicalmente democrática”.

42Para finalizar, dizer que a minha experiência junto às mulheres da pesca artesanal tem demostrado que esse modelo de política, que repassa benefícios sociais pontuais para minimizar a situação de miséria não contribui efetivamente para a saída da pobreza estruturante em que vivem as mulheres. Que “desenvolvimento” com foco apenas no crescimento econômico, sem que existam igualdade e equidade de oportunidades e acesso a direitos fundamentais, não chega na vida das mulheres, negras e pobres, que são as mais afetadas em uma sociedade capitalista e patriarcal.

43Deixo aqui algumas reflexões: por que o desenvolvimento não garante políticas públicas para a população? A quem interessa o desenvolvimento não sustentável? Como pensar sobre países que se mantém em eterna fase de “em desenvolvimento? Desenvolvimento para que, para quem, como alcançá-lo?”