Conclusão

1Entre Courteline e Kafka, a relação com a administração suscita de modo geral a ironia, no melhor dos casos, e no pior, o medo e a indignação moral. Sem dúvida que a figura mais sujeita a preconceitos é a do “funcionário” atrás do seu guichê: a artificialidade que aprisiona dentro de regras absurdas as quais ele mesmo aplica e a rigidez do seu universo de formulários parecem poder suscitar apenas o deboche ou a revolta.

2Nós tentamos mostrar aqui que um outro ponto de vista era possível, o que não impede, no entanto, de prestar atenção ao que esses estereótipos e atitudes persistentes vêm nos mostrar. Pois, sem dúvida, não é por acaso que o distanciamento prevalece nas declarações do senso comum – quer tal distanciamento tome as vias do humor ou as de tentativas sonhadoras de insubordinação. O que aparece como um imperativo de distanciamento poderia muito bem fazer com que a relação com a administração – e em particular o contato físico – organize, na experiência prática, a confrontação entre “o indivíduo” e “a sociedade” na sua forma mais dura. E aqui aconselhamos o trabalho de Nobert Elias (1991)¹ para uma análise da representação da sociedade e do indivíduo como entidades separadas.

3Embora esteja longe de ser sempre “individualizada” – no sentido de personalizada –, a relação administrativa isola o indivíduo diante de uma organização coletiva. Sob a roupagem de preservar a “discrição” ou de evitar “a desordem”, tudo é feito para produzir esta atomização. A autoridade da qual é investida uma instituição de Estado faz com que ela simbolize, de uma certa maneira, a coletividade para o indivíduo que é confrontado a ela.

4É por seu intermédio que um indivíduo faz a experiência do Estado, exprime as suas queixas ou ressentimentos e recebe, em retorno, as respostas para tais reclamações e ressentimentos. É por meio de tal instituição estatal investida de autoridade que as normas coletivas são reproduzidas, e os direitos e deveres do indivíduo junto à sociedade distribuídos. Tanto a reprodução de normas quanto a distribuição de direitos, devido às suas padronizações, acabam por revelar o arbitrário das convenções sociais e a violência gerada quando se aplicam tais convenções. Pode-se também afirmar que esta relação com o social administrativamente objetivado é sempre algo doloroso. Neste sentido, a ironia e a desconfiança, entre outras coisas, podem ajudar o indivíduo a se preservar de tal administração dolorosa do social.

5Vetor da interiorização do social e do tratamento social dos indivíduos, a relação com a administração articula indivíduo e social ao mesmo tempo que os distingue. Essa relação constitui, assim, uma espécie de amostra das relações sociais ou, pelo menos, fornece uma chave decisiva para a sua leitura. Além do seu objeto específico, a nossa pesquisa pode trazer ensinamentos sobre mecanismos e transformações de ordem mais geral.

6Ela revelou a fragilidade dos papéis sociais, frágeis até mesmo – e inclusive – em um órgão da administração pública, no qual tais funções são tão regularmente denunciadas como rígidas. Fragilidade dos papéis burocráticos, a qual é bem exemplificada nas incertezas do papel de atendente. Fragilidade dos papéis prescritos por uma burocracia de igual modo frágil – burocracia esta que, como esse estudo também revelou, é feita de vias complexas de inculcação e de possibilidades de desvios e contornos.

7Descrevendo como tais papéis são ajustados, a pesquisa sugeriu a maneira pela qual uma instituição pode se transformar – longe das visões voluntaristas da ação pública e escapando às oposições pré-constituídas da visão jurídico-administrativa entre o “alto” e o “baixo”. Tratando-se de uma instituição exposta diretamente aos principais problemas sociais da época, foram precisamente as recomposições da ação social que puderam ser explicadas; e, em particular, as recomposições ligadas a uma ação social que não é mais especializada e que agora é produzida amplamente por instituições e por seus agentes – os quais, como as Caixas de Prestações Familiares e os seus atendentes, não estavam destinados a tais recomposições.

8Além disso, a nossa pesquisa das relações do guichê é, em grande parte, um estudo sobre o tratamento social dos pobres. Atualmente colocados sob a apelação eufemizada e enganadora de “excluídos”, os agentes das frações precarizadas e desprovidas do espaço social são massivamente marcados pelo isolamento e pela “desfiliação” – não importa o que pensem os defensores de uma visão romântica das solidariedades de situações extremamente difíceis e das sociabilidades subproletárias.

9A pesquisa pôde, assim, mostrar o lugar crescente que as administrações de proximidade ocupam na socialização – mínima – e na identificação social destes agentes sociais. E isto não devido a um suposto controle cada vez maior do “Estado” sobre a “sociedade”, nem graças aos sucessos de uma administração “cidadã”, mas porque, para os membros destas categorias, os serviços públicos são frequentemente as últimas instituições sociais.