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Arquitectura tradicional portuguesa

 | 
Ernesto Veiga de Oliveira
, 
Fernando Galhano

IV. Persistência e evolução da habitação tradicional1

Texte intégral

  • 1 Ernesto Veiga de Oliveira, « Persistência e evolução da habitação tradicional», Associação Portugue (...)

1A habitação tradicional das várias regiões portuguesas pode definir-se pela utilização quase exclusiva que nela é feita dos materiais locais, muitas vezes não comprados, tal como a natureza os apresenta ou, quando muito, com um ligeiro afeiçoamento, e por processos alheios a conceitos tecnicistas e que requerem apenas uma ferramenta básica elementar. Esta definição implica, só por si, uma grande diversidade regional, em função de uma correspondente diversidade paisagística. Keesing notou já a estreita relação existente entre as formas das casas e os materiais de construção : pode sem dúvida dizer-se que, nos grupos humanos insulados – como o foram as populações rurais portuguesas saté aos princípios deste século –, materiais locais constituem um factor decisivo na definição da casa regional.

2Esse factor porém não é único. Dentro das limitações que ele próprio impõe, elaboraram-se, a partir de certas formas primordiais, tipos e estilos locais diferentes, determinados por razões e condições histórico-culturais e sobretudo económico-sociais próprias das várias regiões. Como diz Rocha Peixoto, «a habitação é a expressão final da convergência de motivos interdependentes, a cuja influência naturalmente se adapta – os recursos geográficos, as imposições climáticas e as necessidades e circunstâncias sociais e domésticas». Produto de adaptação do homem ao meio, ela reflecte não só o meio geográfico natural, mas também o meio humano, histórico e cultural. Spengler considera-a mesmo (decerto excessivamente) como a expressão total do que chama raça, e que diríamos antes cultura: «a partir do momento em que o homem, tomando-se sedentário, não se satisfaz já com um simples abrigo e constrói uma habitação sólida, aparece esse expressão que, dentro da raça-homem, distingue uma das outras raças do homem... Como a concha do nautilus, a colmeia das abelhas, o ninho dos pássaros, possui a casa a sua evidência interior; e todos os traços dos primitivos costumes e formas de existência, de vida conjugal e familiar, da estrutura colectiva, acham-se reproduzidos na planta da casa e nas suas principais partes».

3Antes de se terem começado a sentir as consequências directas ou indirectas do desenvolvimento industrial, a casa tradicional portuguesa caracterizava-se portanto por uma grande diversidade regional, resultante da acção desses múltiplos factores. Assim, em todo o Norte do País, onde abunda a pedra e a madeira – o arvoredo é um elemento normal dessa paisagem –, as casas são nesses materiais: no Noroeste, o granito para as paredes, outrora o castanho e hoje o pinho e o eucalipto para o complexo madeiramento do telhado e do sobrado, os pavimentos, soalhos, escadas interiores, portas e até tectos ; no Nordeste, sobretudo o xisto. No c entro e no Sul a pedra falta muitas vezes; mas, onde a há, as casas são também nesse material – os arenitos e sobretudo o calcário.

4Num esquema muito geral, pode dizer-se que a casa nortenha característica é de dois pisos – o superior, sobradado, para habitação, o térreo, para lojas de animais, arrumações e armazenagem de produtos agrícolas: as cortes do gado, a adega do vinho, a tulha do cereal. Este facto, que sob um certo ponto de vista se relaciona com a natureza dos materiais, que permitem uma construção sólida em altura, representa também, por outro lado, o desenvolvimento duma forma que aparece já nas construções mais primitivas, em que os homens dormiam por cima do local onde os animais ficavam de noite, para melhor os guardarem; e é também ajustada a uma classe e a um tipo socioeconómicos característicos da região : pequenos lavradores independentes, com um fundo sentido de propriedade, que concentram o seu reduzido mas complexo mundo agro-pecuário sob o tecto da própria casa em que habitam.

5A cozinha fica ora no térreo ora no piso superior, cujo pavimento é então de pedra no lugar da lareira. O forno do pão é interior, e situa-se a um canto da cozinha, a par da lareira.

6Nesta área, os telhados são em regra de quatro águas, com cume, baixos e de telha romana. Na serra e noutras zonas arcaizantes onde a construção é extremamente rude, as paredes são geralmente em seco, e as coberturas, de duas águas, com as empenas nas fachadas laterais, são com muita frequência de colmo, disposto e preso por sistemas diversos – nomeadamente as cápeas e guarda-ventos.

7Em certas zonas de xisto, em que este se fende em grandes lascas finas e duras, estas usam-se também nas coberturas, pregadas aos caibros da armação, para não escorregarem. No Alto Trás-os-Montes é mesmo este o sistema mais corrente da cobertura, que remata, no cume, por vários processos engenhosos em vista a uma melhor vedação. No Barroso, onde persistem certas formas comunitárias, os fomos «do povo» mostram uma arquitectura característica – em especial a cobertura de placas de granito bem aparelhado.

8Um dos elementos fundamentais destas casas é a varanda, que não só serve de logradouro da casa (onde se pode mesmo dormir nas noites quentes) e de arrumações, mas é mesmo um local subsidiário de secagem de cereais. Neste caso, em certos lugares, nomeadamente no Noroeste, ela é prevista de empanadas móveis. No Minho, a varanda é geralmente saliente sobre a fachada, apoiada em pilares e recoberta por uma pala da água do telhado que se prolonga para a abrigar. Por vezes, para ela dão as portas de sequeiras ou celeiros interiores. Em Trás-os-Montes, a varanda é normalmente de madeira, a todo o comprimento da casa, seja na fachada frontal seja na lateral, seja ainda, muitas vezes, circundando os quatro lados duma curralada ou pátio interior aberto.

9Ao piso superior ascende-se geralmente por uma escada exterior de pedra, encostada à parede, ora nas fachadas frontal ou lateral, ora nas traseiras, e muitas vezes com patamar, e alpendrada no alto, ou desembocando na varanda. Na faixa que vai de Esposende ao Vouga, e mormente em terras da Maia, a porta larga de ingresso, para os carros, abre-se a meio ou a seguir à fachada frontal, dando, no primeiro caso, sob o andar, para um quinteiro nas traseiras, em tomo do qual se dispõem os anexos rurais, por vezes extremamente amplos. Em terras de Miranda, no Nordeste, notam-se semelhantemente as grandes portas carrais, rasgadas de alto a baixo na fachada das casas, e dando para a curralada.

10Para lá desta unidade formal e essencial, porém, entre a casa transmontana e a casa minhota, da ribeira e da serra, notam-se diferenças consideráveis, que resultam não só dos materiais usados e da sua forma geral – um geometrismo singelo na casa minhota, uma profusão de soluções variadas, pitorescas, irregulares, quase fantasiosas, na casa transmontana, opondo a esquadria do granito à maleabilidade do xisto – mas sobretudo de uma total diversidade de carácter, relacionada com as paisagens em que respectivamente se integram : a casa das terras baixas minhotas é ampla, aberta e, acima de tudo, é uma casa isolada das demais e dispersas na profusão das terras frescas intensivamente cultivadas, cortadas de ramadas e de vinha de enforcado e pinheirais; a casa serrana é uma casa de aglomerados compactos, fechada, arcaica e rude, de pedra seca e cobertura de colmo, selvática e bárbara como a própria serra, trazendo até nós a imagem perfeita do mais remoto passado, donde parece provir directamente ; a casa transmontana, da cor da terra, é também uma casa de aglomerados aninhados em aldeias compactas em que os telhados, de xisto ou telha, se seguem como se fossem um só, perdidos em ondulações, na vastidão das faceiras e bravios.

11Em vastas partes da zona litoral do centro, e no Sul, onde falta a pedra, usam-se outros materiais duros em seu lugar – o tijolo, o adobe, a taipa e, nos areais da beira-mar, certos materiais vegetais; a casa térrea passa consequentemente a ser uma forma típica normal, e assume o aspecto característico da construção de terras quentes e secas, em que a caiação e o barro têm uma importância primordial e decisiva. E isto sucede mesmo com a própria casa de dois p. isos, que subsiste onde há pedra, aí sobretudo arenitos ou calcários.

12À medida que, indo do Norte, se vai penetrando nas terras argilosas do distrito de Aveiro, surge o tijolo como material principal de construção – em tempos mais antigos o tijolo maciço, modernamente sobretudo o tijolo furado; e, em certas regiões, e em níveis mais pobres, o adobe, e, mais ao sul, na Estremadura, a taipa. De Aveiro à Estremadura, a casa rural é de facto térrea, e geralmente pequena e singela. Na Murtosa, e em terras de Pombal e Leiria, as casas mais expressivas deste tipo mostram um pequeno alpendre, que serve também de local complementar de secagem de cereais; nas terras gandaresas entre o Vouga e o Mondego, desenvolve-se um tipo de casa de pátio fechado, que se ajusta muito significativamente às características da região. Na Bairrada e Coimbra, a casa, de alvenaria, tem dois pisos, mas apenas o térreo, de habitação ; o de cima é um simples palheiro. Ao sul de Leiria, na região saloia e para ao interior, a casa é também de dois pisos, como no Norte, mas igualmente de alvenaria de calcário, e com o carácter geral da construção meridional.

13À beira-mar, nas dunas e zonas arenosas entre Espinho e a Nazaré, encontra-se o «palheiro» de tabuados, em certos casos – nomeadamente de Aveiro para o Sul – de tipo palafítico, eminentemente ajustado a essa paisagem especial de areais batidos pelo vento, e numa região de dunas e pinhais onde falta completamente a pedra e onde abunda a madeira; esse «palheiro» servia de habitação temporária aos pescadores da « xávega », gente de outras terras que ali se instalava durante a época da safra; originariamente a sua cobertura era de estorno ou palha (donde o nome por que continuam a ser designados) ; mas depois que se construíram estradas e os transportes foram possíveis, esse material foi por toda a zona substituído pela telha caleira.

14Mas é sobretudo nas províncias do Sul – o Ribatejo, o Alentejo e o Algarve, que correspondem ao Portugal mediterrâneo do esquema de Orlando Ribeiro – que este tipo de casa se apresenta com características mais expressivas e ricas, parecendo indigitar a sua filiação na casa das velhas civilizações do Mediterrâneo.

15O tijolo maciço é usado em grande escala em pavimentos, degraus, tabiques, terraços, abóbadas; mormente no Alentejo, ele representa aliás uma tradição que vem já da época romana, e mantém em muitos casos o carácter de um produto artesanal. Em alguns pontos, as paredes são exteriormente reforçadas com poderosas massas de alvenaria – os « gigantes » – que neutralizam o impulso lateral exercido pela cobertura sobre elas, particularmente perigoso em zonas sísmicas.

16No Alentejo, onde além da pedra, escasseia também a madeira, estas feições apresentam-se de um modo mais definido, e a casa mostra uma grande fantasia de formas e variedade de elementos, que se agrupam e combinam diversamente: arcos, abóbadas e abobadilhas, terraços, pátios, escadas, poiais. Há de resto dois casos a considerar : a casa isolada no meio das terras, o «monte» ou « montareco » de rendeiros, geralmente mais simples, embora com o carác – ter que apontamos; e a casa dos aglomerados urbanos, aldeias e vilas, onde habitam os trabalhadores rurais, e que se alinha em longos conjuntos uniformes – por vezes a nudez absoluta de paredes lisas e brancas, apenas com o rasgo da porta de cada casa individual, que não se destaca desse conjunt o ; não raro, em cada rua as chaminés são mesmo todas iguais. Num caso ou no outro, é naturalmente nos exemplos mais perfeitos, e mormente na casa de certas vilas, que o estilo da grande província mostra as suas verdadeiras galas. Dentro de um decisivo sentido de horizontalidade, os planos e volumes que a caiação define com toda a nitidez recortam-se e movimentam-se num jogo de sombras e luzes, criando um rico efeito cenográfico de forte sugestão mediterrânea. Contra a brancura brilhante e quase brutal das paredes, tanto exteriores como interiores, destaca-se o vermelhão da tijoleira; e as arestas adoçam-se e esbatem-se sob a insistência das camadas de cal, que funciona como elemento de protecção da taipa, como um isolante do calor, e como um valor estético tradicional. Os rasgos de portas e janelas, terraços ou recantos, dispõem-se com grande liberdade; muitas vezes, a cozinha situa-se à frente da casa, e a chaminé, grande e linear, fica em ressalto, de alto a baixo da fachada sobre a rua. O gasto de madeira reduz-se ao mínimo; as portas interiores são escassas, e para a cozinha e a sala entra-se por arcos abertos; o soalho é raro; pavimentos e degraus são o mais das vezes de tijolo; quando existe um piso alto, apenas o travejamento é de madeira: mesmo aí, o pavimento é de tijolo, ora pousado simplesmente sobre as traves, no sistema chamado «de dormentes», ficando à vista no térreo, ora assente sobre abobadilhas também de tijolo, sem qualquer madeiramento. E, formando a armação do telhado, usa-se muitas vezes um revestimento de canas – o caniçado –, que funciona também como um isolante, e é de um belo efeito decorativo.

17A casa algarvia, tanto do Alto Algarve (serra), como do Algarve Calcário (barrocal), e do Baixo Algarve (beira-mar), é estruturalmente idêntica à alentejana, térrea, caiada, e com telhado de uma ou duas águas, de telha argamassada; e embora a construção seja predominantemente de pedra – xisto na serra, calcário no barrocal, arenitos em Silves, foiaíte em Monchique –, encontra-se também com frequência normal o tijolo e, em certas partes, a taipa; mas, ao mesmo tempo que é de uma maior uniformidade e pobreza de linhas, ela possui alguns elementos funcionais e decorativos peculiares e extremamente originais – nomeadamente a açoteia, a cisterna, a platibanda, as chaminés.

18A açoteia é um terraço, ladrilhado e assente sobre abóbadas ou «dormentes», que faz as vezes de cobertura total ou parcial das casas, e, ao mesmo tempo, serve de local de secagem de certos produtos agrícolas, em especial o figo e a alfarroba; encontra-se sobretudo no Algarve Calcário, e, com um sentido diverso, em Olhão e na Fuzeta, onde aparece conjuntamente com um sistema de «mirantes» e « contramirantes », que são os terminais das escadas interiores, para a açoteia. Wilhelm Giese – e, com ele, Orlando Ribeiro – entende que as açoteias de Olhão, a despeito da sua data recente – a primeira casa de pedra e cal, nessa cidade, não é talvez anterior a 1716 –, representam o prolongamento da casa moura algarvia, cúbica, de taipa, com terraço e muitas vezes com torre-mirante, idêntica e derivada da taddart dos Berberes Marroquinos (e não da tighrent também dos mesmos Berberes, de pátio interior, tal como a casa moura andaluza).

19As cisternas são grandes reservatórios subterrâneos para onde se encaminha a água da chuva, recolhida dos telhados ou «eirados» (na região calcária) concebidos para tal, e cujo aproveitamento é imprescindível nestas regiões extremamente secas.

20A platibanda é uma balaustrada, as mais das vezes fechada, que remata o telhado, à frente (junto à qual encosta a caleira que conduz para a cisterna água que escorre do telhado); enriquecida com profusão de frisos e desenhos a cor e estuque da maior variedade, ela é o mais importante elemento decorativo da casa algarvia. As chaminés, que aliás nem sempre existem (nomeadamente na região de Monchique e junto ao Guadiana-, « rendilhadas » ou «de balão », funcionam também como elemento decorativo de grande riqueza, beleza e variedade.

21Deve-se ainda assinalar o uso muito frequente (que também vimos na casa alentejana) da cana, como elemento isolante do calor, para ripados e « encaniçados », e, esmagada e fixada num caixilho de madeira, e rebocada, para « tectos falsos», muito usados na região.

22No que se refere ao aproveitamento interior, também a casa nortenha se opõe à casa do Sul, traduzindo a diversidade de tipos de vida a que cada uma corresponde. Na casa nortenha, as intalações que respeitam à lavoura equilibram-se ou prevalecem mesmo sobre as destinadas à habitação. Estas consistem fundamentalmente da cozinha, onde decorre toda a vida de relação da família; da sala, que desempenha essencialmente funções cerimoniais relacionadas sobretudo com a visita pascal, a velada fúnebre e as celebrações familiares mais importantes; e dos quartos ou alcovas, onde apenas se dorme. A cozinha, com a lareira, negra e enfumada, grande, rodeada de bancos, escanos e «preguiceiras», com o caldeiro e a gramalheira, o trasfogueiro e os potes, e, atrás, o «cinzeiro», é na verdade a peça essencial da casa, uma espécie de tabernáculo laico da família, onde parece perdurar o espírito dos « Lares » penetrando toda a vida doméstica. A sala é onde se encontram as melhores peças do mobiliário familiar, nomeadamente o oratório. Nas casas típicas da Murtosa, a sala, que é mesmo dotada de uma espécie de nicho em forma de mesa de altar, onde se encontra um crucifixo, os castiçais e quaisquer imagens, é expressivamente designada pelo nome de « Sala do Senhor ». Em muitas regiões do Norte, a casa mostra uma planta uniforme, em que se articulam de modo peculiar estas três divisões : num dos lados da sala abrem-se duas alcovas dispostas simetricamente; a cozinha ou fica de outro lado, ou comunica com a sala por um corredor que passa entre as alcovas. As divisões normalmente comunicavam umas com as outras por portas. Os tectos são em regra de tabuado, no sistema de «camisa e saia » ; na sala, não raro eles são «de masseira», estucados ou de caixotões pintados; a cozinha é de telha-vã, e muitas vezes não existe chaminé.

23No Alentejo, a casa rural da classe trabalhadora é, contrariamente, no caso mais característico, apenas de habitação, porque aqui o que trabalha a terra em geral não a possui ; ele é a mais das vezes um simples assalariado do grande latifúndio, e as alfaias do seu ofício pertencem e encontram-se no «monte» em que está empregado; e mesmo quando assim não sucede, as dependências da lavoura, guarda de alfaias, pocilgas, etc., ficam em anexos exteriores. Certamente por isso, tudo nela está esmeradamente asseado, mesmo as próprias cozinhas, que são caiadas de cada vez que se utilizam; nelas avulta a saia da lareira, que abriga a pedra da « boneca » ou «sempre-noiva» (que Leite de Vasconcelos considera uma sobrevivência do paganismo), e, ao lado, o fogão de tijolos; contra as paredes imaculadas, destacam-se prateleiras onde refulgem louças «de arame», colhereiras lavradas, copeiras, saleiros. O espaço interior desenvolve-se, como o exterior, nessa cenografia espontânea que encadeia arcos e pátios floridos, abóbadas e recantos, degraus e poiais e, numa mesma penumbra fresca combina a brancura da cal e o vermelhão da tijoleira.

24É porém evidente que a casa não é um elemento estático; como todos os elementos culturais, ela é sujeita a evolução e transformação, seja pela acção de novos factores exteriores, influências e difusões, seja-o mesmo pela acção de uma dinâmica interna, reflexos de mutações gerais, invenções pessoais ou do grupo, etc. Mesmo nestas formas tradicionais, ela constitui o produto de uma evolução lenta a partir de certas formas primordiais remotas, de que aliás perduraram muitos elementos. De facto, ao longo dos tempos foram suigindo modificações de maior ou menor vulto, que se enxertaram nas formas primitivas, e que traduzem seja uma melhoria ou economia da construção, o seu melhor ajustamento às circunstâncias, a progressiva ascensão social e técnica, geral e individual, a evolução da sociedade e também a satisfação de sentimentos estéticos. Ainda em tempos proto-históricos, dá-se a substituição da casa de planta circular, própria duma cultura sobretudo pastoril, que dominava na paisagem castreja nortenha, pela casa de planta quadrangular, com maiores possibilidades de desenvolvimento, e por isso mais ajustada à economia de tipo sobretudo agrícola que dominará após a Pax romana. No século xviii aparecem as janelas envidraçadas, geralmente de « guilhotina », que vêm substituir as portadas de madeira até então em uso (e que aliás subsistem em alguns casos mais pobres ou mais arcaicos, em certas zonas serranas) ; no século xix, divulga-se a chamada telha « marselha » (que já implica um telhado mais alto, alterando a forma geral da casa), mais sólida, duradoura e eficaz do que a velha telha romana, «caleira» ou «canudo», que de resto, em muitas partes, viera por seu turno substituir o colmo – e isso a partir já do final da época castreja –, e que ainda hoje constitui o material de cobertura mais comum em vastas zonas rurais, por vezes de fabrico local; etc.

25Contudo, até ao período que começa após a Guerra de 1914-18, que marca verdadeiramente o final dos velhos quadros da Europa, e, entre nós, o advento pleno da era industrial, com o desenvolvimento e expansão tecnicista, o consequente e convergente desenvolvimento dos transportes, a quantificação e racionalização da economia e da produção, a renovação das técnicas comer-

  • 1 Já nos meados do século xix, Balzac (L’Illustre Gaudissart) anunciava uma nova era que despontava c (...)

26367 ciais e publicitárias1, e por outro lado o aumento da população, a elevação geral do nível de vida, a urbanização do campo, a promoção socioeconómica geral (e também uma espécie de racionalismo implícito e difuso e uma mais nítida tomada de consciência dos valores sociais em causa, decorrentes do próprio espírito tecnicista), essas inovações foram parcelares, lentas e superficiais ; mas seguidamente, elas passam a verificar-se em todos os campos e a um ritmo cada vez mais rápido, acarretando o desaparecimento progressivo das formas tradicionais. Esse movimento acentua-se ainda depois da Segunda Grande Guerra, em que a técnica entra numa fase de realizações espectaculares e em que todos os países passam a dar a primazia essencial a uma política de industrialização total e de consumo. Surgem novos produtos, de carácter industrial, que passam instantaneamente a ser conhecidos, difundidos e utilizados por toda a parte, e que foram concebidos em vista a tomarem-se acessíveis a vastas camadas de população.

27Entre nós, até aos anos de 50, os quadros da vida rural mantinham a velha atmosfera tradicional e pouco haviam evoluído. A partir porém do momento em que, nos anos de 60, se inicia com incremento crescente o movimento de emigração em massa das populações rurais de todo o País para as nações altamente industrializadas ou outras onde escasseia a mão-de-obra não especializada, que é paga com salários vultosos, tudo muda subitamente e irreversivelmente. A nossa gente do campo, até aí confinada num mundo sem horizontes e numa economia qualitativa, dispondo de escasso numerário, e tendo de utilizar fundamentalmente os recursos locais, beneficia então da melhoria económico-social geral: pode circular com relativa facilidade, e, ao mesmo tempo que entra em contacto com a cultura urbana, dispõe de meios para adquirir os primores da civilização, que aí conheceu, que lhe são acessíveis, que já não lhe metem medo, e que vão entrando na categoria de hábitos necessários, inabordáveis apenas pelos níveis económicos mais débeis. No que se refere à casa rural, essa mutação dá-se em primeiro lugar quanto aos materiais tradicionais locais, que são substituídos por outros de carácter industrial ou semi-industrial, e muitas vezes pré-fabricados ; e em seguida e consequentemente, ela atinge as formas, plantas e proporções das casas, organização e apetrechamento do seu espaço interior – que tendem a uniformizar-se por toda a parte – e princípios arquitectónicos, determinados e ajustados a novas concepções e modos de viver. E esta mutação dá-se em relação não só à forma e estilo das casas, mas também à sua quantidade e densidade: em todas as zonas rurais, a construção prolifera, o número de casas aumenta (sublinhando o crescimento demográfico e o predomínio progressivo da família nuclear restrita), a dispersão acentua-se; muitas vezes, as novas casas agrupam-se num bairro mais recente, à margem da aldeia ou localidade; e todos estes movimentos são mais sensíveis ainda nas áreas que passaram a interessar o forasteiro e o turista, determinando mesmo a venda de terras de cultura em lotes para construção.

28Entre os factores gerais deste processo, destaca-se sem dúvida, pela sua importância, o emigrante retomado – outrora o «brasileiro», que foi sempre um caso excepcional, até há pouco o « venezuelano », e agora o « francês », que constituem casos gerais –, e que, pela edificação de uma casa que é a imagem vistosa do seu triunfo, afirma a sua própria ascensão social e instaura uma era nova na aldeia. O desejo de ostentação e a evolução parecem também ser factores a considerar; com frequência, após uma primeira casa deste género, construída por um emigrante de retomo ou até por um vizinho «progressivo» enriquecidos, aparecem rapidamente outros, copiando-a ou tentando mesmo ofuscá-la.

29De todos todos esses novos materiais, o mais importante é sem dúvida o tijolo. O tijolo vem de entrada substituir os tabiques, interiores ou exteriores; mas seguidamente passa a ser utilizado mesmo para as paredes, em lugar da pedra. Há porém que distinguir dois casos perfeitamente diferentes: o tijolo nas províncias do Sul, mormente no Alentejo e no Algarve, onde, como vimos, ele representa uma velha tradição que remonta pelo menos à época romana, e onde se usa especificamente em muitos elementos tradicionais da casa regional mais característica – abóbadas, arcos, terraços, pavimentos, etc. –, e o tijolo na casa nortenha e do centro, de introdução recente, e então preferentemente do tipo furado. Só este último caso é que aqui temos em mente. O tijolo é fabricado em inúmeras regiões, em áreas de terrenos argilosos e em instalações de carácter ora artesanal ora fabril; e daí é em seguida expedido para todo o País, com uma aceitação crescente por toda a parte.

30Em certas regiões graníticas do Noroeste, explora-se o perpianho e a pasta ou, mais recentemente, os blocos (talvez derivados dos blocos de concreto, do mesmo formato e dimensões, a que adiante nos referiremos), que são formas específicas dessa pedra, extraída e aparelhada na própria pedreira e transportada seguidamente para o local da obra – a praça – (outrora, e para perto, em carro de bois, hoje sobretudo pela camionagem), onde é aplicada sem mais do que um último acabamento. Perpianho são grandes blocos paralelepipédicos, de granito macio, cortados dos tamanhos que a pedra der, ou que se requere, conforme a parede. Pasta são também blocos ou placas paralelepipédicos, mas uniformes, regulares, estreitos e alongados e de granito duro como esteios espessos; originariamente, a pasta era usada sobretudo na zona do rio Minho, em Monção, e na região galega confinante : as paredes eram aí feitas desses blocos contíguos, com as juntas vedadas a argamassa. Da pasta derivaram os « paralelepípedos » – os « paralelos », como diz o povo – e os « cubos ». A pasta e seus derivados requerem mão-de-obra muito dispendiosa – o corte é feito com muitos guilhos, e o bloco tem de se ir pondo em peças pequenas até chegar ao paralelepipeteiro que marca as ranhuras na folha com o escopro e a marreta, e, com a peça ao contrário, destaca os paralelos ou os cubos com um golpe, compondo finalmente quaisquer ressaltos a mais com a mascota ; e, na construção propriamente dita, levam muito tempo a assentar, porque têm muitas juntas, que são tomadas a cimento, refundadas, e caiadas a branco ou pintadas a preto. O perpianho é mais fácil de assentar, mas tem o inconveniente de absorver a água e dar lugar a infiltrações, aliás tal como também a pasta, embora esta em menor grau.

31Afim do tijolo, podemos indicar o adobe de cal, de difusão restrita, limitada às próprias áreas do adobe primitivo. O adobe de cal, dos tipos de parede, de cortelha, de muro, e mondões, conforme os seus vários tamanhos e funções, pode ser feito por qualquer pessoa, mas geralmente é-o por homens mais ou menos especializados que trabalham por conta de um empresário dispondo de instalações sumárias mas destinadas especialmente a tal actividade.

32Outro material, também muito largamente difundido, são os blocos de concreto, de formato paralelepipédico, como grandes tijolos. Os blocos, fabricados igualmente em pequenas instalações rudimentares mas de carácter industrial, são de fraca resistência à temperatura e à humidade; mas apesar disso têm grande aceitação, pelo seu preço muito reduzido e pela facilidade com que são trabalhados. Actualmente, todos estes materiais estão sendo suplantados pelo betão armado, que se usa em especial para placas ou vigas de pavimentos e coberturas, e estruturas de paredes, enquadrando painéis de tijolos furados, fabricados especialmente para este sistema, o que permite uma construção extremamente sólida, rápida e versátil.

33Em construções de menor vulto, usa-se também hoje, para as coberturas, de preferência a folha zincada, e, em certos casos, as chapas de fibrocimento. E notamos que, nos próprios abrigos de pastores, do tipo de esteira, a palha que outrora os revestia, segundo sistemas mais ou menos engenhosos e que variavam de região para região, está por toda a parte a ser suplantada também pela folha.

34Por seu turno, a telha caleira, de entrada substituída pela « marselha » (e que, como dissemos, viera, por sua vez, em muitos caos, substituir o colmo) volta agora a usar-se num sentido neo-regionalista mais ou menos acertado, sob a forma de telha de canudo, mas com pala lateral de sotopor, para melhor vedação ; essa telha é fabricada nas principais fábricas de cerâmica utilitária.

35O betão armado, o tijolo, os blocos de cimento e, mesmo o perpianho e a pasta (estes porém também como uma difusão restrita) são materiais industriais ou semi-industriais pré-fabricados, regulares e uniformes que vieram substituir os materiais locais tradicionais, e em especial a pedra bruta, que antes era demoradamente preparada no próprio sítio da obra, peça por peça, com meios extremamente precários e primitivos, e enorme dispêndio de tempo improdutivo, perdido em esperas e vagares, inadmissíveis, financeira e eticamente, numa organização económica quantificada.

36Desprovidos por natureza de qualquer carácter regional, esses materiais são preparados apenas em certos lugares; e, exportados daí para as mais variadas partes, sem nenhuma relação com a sua origem, são utilizados também uniformemente por todo o País. Eles requerem, se não necessariamente instalações fabris qualificadas, pelo menos, produtores especialistas, trabalhando em escala apreciável, com pessoal assalariado também mais ou menos especializado. E, além disso, o seu uso generalizado só foi possível com um dos pressupostos ou uma das consequências mais directas e importantes do fenómeno industrial: o desenvolvimento dos transportes, sob o duplo aspecto do alargamento substancial da rede ferroviária e rodoviária, e o progresso e normalização do uso dos meios mecânicos de locomoção a grande distância. Sem dúvida, estes novos materiais, de entrada, mostram ainda carácter artesanal ou semi-industrial ; e alguns deles – o tijolo, o perpianho, a pasta – são feitos à mão e utilizam ainda matéria-prima local ; e, nessa primeira fase, os novos materiais visam sobretudo melhorar e tomar mais económica a velha construção, e a forma tradicional das casas não é fundamentalmente atingida pelo emprego desses materiais. que tentam sobretudo imitar os antigos, sem utilizar todas as suas virtualidades, e que é mesmo apenas subsidiário. Contudo, mesmo então, a uniformidade e regularidade resultantes do seu fabrico em série conferem às casas uma menor espontaneidade de soluções, uma quadratura mais exacta, um maior geometrismo e pobreza de linhas, que lhes alteram o carácter de acordo com o próprio carácter desses materiais e do processo construtivo que eles impõem, e lhes vai retirando todos os ressaibos de regionalismo, até aí relacionado com a fisionomia dos materiais naturais de cada província, os gostos e as técnicas dos seus artífices.

37Pouco a pouco, porém, o seu emprego sistemático prevalece; e passa de subsidiário a dominante, extraindo-se dele todas as suas possibilidades intrínsecas e originais: e, ao mesmo tempo que, em relação à construção, se adopta um ponto de vista apenas económico, desligado dos velhos valores humanísticos, vão-se delineando formas arquitectónicas baseadas no sentido desses materiais, de entrada ainda com certas características regionais, até que finalmente se define um estilo específico, idêntico por toda a parte, totalmente independente da geografia, da cultura e das condições peculiares da vida local, e que aliás mostra dois pólos opostos: por um lado, a casa-caixote, de péssima qualidade, em que se confunde o económico com o barato, e a essencialidade de valores plásticos com a indigência de linhas e materiais: a casa em blocos, pintados de cores berrantes, azuis ou verde-sulfídricos, lilases e amarelos, vermelho-vivos ou cor-de-rosa, com madeiras fracas e massas mal preparadas, que ao fim de pouco tempo são uma ruína sem dignidade; telhados de telha marselha, com brutescos de olaria nos topos dos cumes, divisões interiores absurdas, sanitários mal instalados. É sobretudo a casa de gente rural que deixou de o ser, pelo menos exclusivamente – o vendeiro, cuja mulher já não trabalha fora de sua casa, o dono das camionetas, ou a pensão. Por outro lado, a casa rica e bem construída, daqueles que se elevaram socialmente, do emigrante retomado, que quer exibir a sua promoção e a sua adesão aos padrões civilizados: uma casa que repete certos aspectos exteriores da arquitectura modernista da cidade, tipo de villa que abusa da docilidade do cimento, com elementos de concepção racional mas deslocados – varandas supérfluas, que não são utilizadas, escadarias extravagantes, combinações de cores, prolixidade disparatada de fantasias decorativas, que não correspondem a a nenhuma verdadeira necessidade ou significado lógico, funcional ou estético, em total desacordo com o sentido da paisagem. E naturalmente, outras casas deste mesmo tipo, mas de gradações diferentes entre estes dois pólos.

38Interiormente, nessa nova casa, os antigos valores e o seu significado dissolvem-se. A compartimentação organiza-se segundo um critério que pretende ser puramente racional, estritamente utilitário, e enformado aliás por princípios concebidos de acordo com certas aquisições de higiene científica e estabelecidos seguidamente por lei, e por noções e imposições de uma nova economia doméstica – mas quase sempre mal realizados. A cozinha perde a sua pré-eminência, e passa a ser meramente o local onde se preparam os alimentos, impessoal e frio. A lareira desaparece, e em seu lugar vê-se o fogão, de entrada de ferro, a lenha e, actualmente, a gás butano, que poupa tempo e trabalho. Instala-se a electricidade (onde a há), o quarto de banho e por vezes o frigorífico e o telefone, e o velho mobiliário é arrumado, as mais das vezes vendido a antiquários que exploram o gosto ocasional pelo « rústico » ; de resto continua muitas vezes a imperar um desalinho irracional, que aqui se admite pior do que na velha casa.

39Acerca destas novas casas, porém, e seja qual for o seu nível, pode falar-se no seu total desajustamento. Sobretudo no que respeita à primeiras, nos telhados, fachadas, rasgos, escadas, perdeu-se totalmente a noção da linha e das proporções, afinada intuitivamente ao longo das gerações, e a construção é quase sem excepções falhada. Em destaque contra a singeleza das velhas casas tradicionais, que, para lá das suas deficiências e defeitos, se sintonizava tão perfeitamente na paisagem natural e humana em que se integravam, as novas casas, e em especial as mais ricas, acusam sobretudo o mau gosto de quem recusa a priori todos os valores de uma velha cultura de que se evadiu, julgando assim afirmar uma ordem que representa o progresso material e a promoção social.

40Mas, acima de tudo, a velha casa, e mormente no Norte e nos casos mais representativos, parecia ser, para lá da diversidade de formas que apresenta, essa presença interior de que fala Spengler : uma realidade afectiva que exprime o sentido ancestral da terra, o elo das gerações, o conservantismo rural. Ali, o sentido da família é muito forte, e, se não propriamente a família extensa qualificada (a não ser talvez em terras transmontanas e serranas, onde perduram mesmo formas comunitárias), ela tem um marcado cunho patriarcal; e a unidade familiar reflectia-se na casa, cujo nome, por vezes, ditou o nome da família. Aliás, quando a casa é grande, é mesmo ela que, em muitos casos, determina ou sustenta a unidade da família extensa, cujos membros nela continuam a coabitar. A casa identifica-se à família, à terra, ao trabalho da terra, base económica fundamental e, até à época presente, praticamente única da vida; ela era mesmo (como, em certas regiões, a própria rua da aldeia) mais um aspecto daquele trabalho, um anexo da lavoura. Não importa que esse carácter fosse afinal a forma que assumiu a consciência obscura de que, então, não haveria realmente lugar para outras soluções económicas. A casa era o centro da vida; vinha do passado como a terra, e, como esta, devia ser transmitida às gerações futuras na sua integridade essencial; por isso se instituíram regimes de morgadio, de que ainda hoje subsistem vestígios em algumas regiões (Barroso, Alto Minho, terras da Maia, etc.). É certamente por esse motivo que, no Alentejo, onde não só não existe essa ligação profunda entre a casa e a terra, mas a família rural mesmo é estritamente nuclear e com uma coesão muito menos imperativa e evidente, a casa, apesar de tão esmerada, não tem esse sentido fundamental e quase mítico que se pode ver no Norte. Ora, esse carácter é que acabou. A casa dessacralizou-se completamente, e é agora meramente um valor económico. O movimento da industrialização não se traduziu apenas no aparecimento de novos materiais de consrução, determinando formas de casa desligadas da secular tradição local: ele acarretou sobretudo uma mutação profunda nos conceitos, padrões culturais e estruturas da sociedade rural; e essa mutação trazia consigo a morte do velho mundo patriarcal e da crença categórica no trabalho da terra, de que a casa era a imagem viva. É evidente que o quadro tradicional que traçámos não se pode ainda generalizar a todos os níveis e estratos da população campesina, e a todas as regiões do País; ela corresponde porventura à gente que, pela sua idade, por temperamento, e por condição de fortuna, era mais conservadora e mais apegada ao passado. Os deserdados, os descontentes, e também as gerações mais novas, os mais empreendedores, os que emigraram, são certamente aqueles que, mais indiferentes a um passado que lhes foi talvez ingrato, se voltaram para as renovações do futuro. Deve-se mesmo notar que a transformação que delineámos está no seu início, e que, na maioria dos casos – acompanhando de resto a estagnação rural que nos aflige –, a fisionomia das nossas aldeias e das casas e viver da nossa gente rural mantém-se em largos sectores pouco menos do que intacta. Aliás, alguns elementos que constituem inovações demasiado radicais só lentamente vão sendo assimilados e integrados; são conhecidos os exemplos da gente que utilizava a banheira e outras louças sanitárias para salgadeira ou para demolharem o bacalhau, de quartos de banho sem água encanada, de objectos ou utensílios mais elaborados que não se utilizam e se possuem apenas para serem mostrados por ostentação. Contudo, e seja como for, como disse Mariano Feio, as formas antigas podem subsistir e manter até certa vitalidade, mas a lei presente é, também neste domínio, a da mudança.

41Qual o balanço final de toda esta mutação ? É evidente que a nova casa representa o primeiro passo, por isso decerto ainda cheio de defeitos, para uma melhoria geral do viver da nossa gente rural. Sem dúvida, a velha casa, sobretudo a casa nortenha, ficava à margem do conforto, higiene, comodidade e concepção racional de orgânica doméstica. Ela era sobretudo um prolongamento da lavoura, em que esta importava mais do que as pessoas. Mas por outro lado, é também fora de dúvida que muitos aspectos e elementos dessas velhas casas constituem soluções ajustadas, fruto de uma longa e sábia experiência, que poderiam adaptar-se com plena razão funcional e estética a uma arquitectura lógica, regional ou mesmo supra-regional. O desprezo a que tantas vezes foram votadas representa uma perda de valores perfeitamente aproveitáveis. Afigura-se-nos que, por enquanto pelo menos, a melhoria podia ter sido não a destruição das velhas casas, mas a sua adapatação a novos conceitos habitacionais. Aliás, é o que vimos suceder nos Açores : o emigrante que regressa com dinheiro, compõe, limpa, refresca e arranja a sua velha casa, mas não a renega. Como disse Jorge Dias, « o progresso técnico tem de prosseguir a sua marcha, porque ele é uma das características da adaptação activa do Homem à Natureza. Mas é evidente que será errado pensar que progredir tecnicamente significa sacrificar (necessariamente) tudo aquilo que pode dar beleza e alegria aos homens». Sucede incluso que, em todo o mundo, à medida que o povo esquece essas outras formas da sua cultura material tradicional, as classes citadinas buscam num neo--regionalismo ou neo-rusticismo (que utilizam alguns dos seus aspectos em versões de luxo), um regresso nostálgico a esse aparente «paraíso perdido» do mundo rural que se extingue.

42Mas, para lá de outras considerações racionais, o desaparecimento das casas regionais, se é um passo para uma melhoria de habitação do povo, é também mais um aspecto desse movimento geral de nivelamento que caracteriza a nossa época, corolário fatal da industrialização, que marca o apagar de valores afectivos essenciais e da fascinante diversidade do mundo – o fim dum humanismo que foi uma filosofia da vida, com os seus graves defeitos e extraordinárias virtudes.

Notes

1 Já nos meados do século xix, Balzac (L’Illustre Gaudissart) anunciava uma nova era que despontava com a aparição do « caixeiro-viajante », e que se caracterizaria por um total nivelamento da cultura material – e, seguidamente, de todas as demais formas de cultura; e, um pouco mais tarde, H. C. Wells (Tono-Bungay) descreve o que haviam sido, em Inglaterra, os primeiros passos da propaganda publicitária, que em breve seria uma das mais poderosas armas da competição comercial. Hoje, estes meios, extraordinariamente aperfeiçoados e generalizados, levam até aos lugares mais afastados o conhecimento daqueles produtos, com todas as facilidades para a sua aquisição, e todas as seduções de uma apresentação aliciante sabiamente estudada.

Notes de fin

1 Ernesto Veiga de Oliveira, « Persistência e evolução da habitação tradicional», Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências, colóquio 2, tomo III do XXIX Congresso Luso-Espanhol, Lisboa, 1970.

© Etnográfica Press, 1992

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