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Arquitectura tradicional portuguesa

 | 
Ernesto Veiga de Oliveira
, 
Fernando Galhano

Introdução

Texte intégral

  • 1 Albert Demangeon, Problèmes de Geographie Humaine, Paris, 1942, pág. 263. 11bid., pág. 262.
  • 2 Ibid., pág. 262.
  • 3 Ibid., pág. 287.

1A casa popular é um dos mais significativos e relevantes aspectos da humanização da paisagem, em que, na sua grande diversidade de tipos, afloram, com particular evidência, numerosos condicionalismos fundamentais – geográficos, económicos, sociais, históricos e culturais – das respectivas áreas e dos grupos humanos que a constroem e habitam. É evidente que ela pode considerar-se um produto imediato das relações do Homem com o meio natural que o rodeia; e, como tal, traduz este último na sua diferenciação regional, já directamente, pela utilização dos materiais locais – é o que sucede nos casos mais primitivos e antigos e, em geral, nos sistemas de construção tradicionais –, já mediatamente, pelas soluções especiais de ajustamento às peculiaridades climáticas desse meio e às implicações mais ou menos indirectas que estas determinam, em particular às formas básicas dos géneros de economia que lhe são próprios: para certos autores, a casa popular, e sobretudo a casa rural, é mesmo concebida não apenas como um abrigo, mas sobretudo como um verdadeiro instrumento agrícola que é preciso adaptar às necessidades de exploração da terra, designadamente no que se refere ao seu dimensionamento e à importância e distribuição relativa dos alojamentos das pessoas, dos estábulos e das lojas de arrumação das alfaias e ferramentas da lavoura. Dentro desta orientação, Demangeon define com efeito as habitações rurais não segundo os materiais de que são construídas, nem as suas formas exteriores, mas segundo o seu plano interior, sobretudo de acordo com as relações que nelas se verificam entre os homens, o gado e as coisas, ou seja: segundo a sua função agrícola, expressão do ambiente natural. « A casa rural », diz este autor, « é essencialmente um facto de economia agrícola, e é principalmente como tal que ela exprime o meio geográfico ; e exprime-o desse modo muito melhor, e de uma maneira muito mais adequada e permanente, do que quando nela se consideram os materiais de construção, os dispositivos de orientação e as curiosidades do mobiliário»1. « Pode ser-se seduzido pela decoração ingénua de uma janela, pelo perfil gracioso de um telhado, pelo encanto e frescura que se desprendem de uma casa de aldeia; mas a sua verdadeira originalidade não provém desses caracteres exteriores que evoluem, se deterioram e se perdem : ela reside no plano, na repartição dos diferentes locais nessa ordem interna que faz reinar, no meio das coisas inertes, uma ideia e uma alma »1. Não é porém unicamente na dimensão espacial, no meio físico e sua variabilidade, e na diversidade dos seus elementos, nem mesmo nesse ajustamento funcional ao género de economia de uma dada região, daquelas decorrente, que se encontram os factores explicativos da totalidade dos caracteres próprios da casa popular dessa região : a casa é acima de tudo um produto do Homem, um facto de cultura, e será no próprio Homem e nas leis da sua criação cultural que se devem procurar a razão de ser e a explicação decisivas da casa que é a sua obra – a história e «correntes de civilização »2, movimentos de difusão e influências, componentes sociais e conceitos de família, status económico e profissional, tradição e traços de psicologia de grupo e gosto pessoal, etc., respeitantes a essa mesma região. De facto, vêem- – se muitas vezes, em regiões diferentes com idêntica constituição geográfica, clima e género de economia agrícola, mas de tradições culturais diversas, as casas respectivas, construídas embora com iguais materiais e concebidas para servirem as mesmas necessidades, apresentar diferenças fundamentais de forma e até de tipo e pormenores decorativos. É que na sua elaboração operaram factores humanos distintos, históricos e outros – a partir de origens independentes, étnicas ou culturais –, sujeitos à acção de conceitos e padrões próprios a cada uma delas. E se não há dúvida que os factores do meio geográfico – a presença ou ausência de determinados materiais de construção, ou particularidades climatéricas mais acentuadas ou severas e o seu ajustamento a tipos diversos de agricultura – determinam, positiva ou negativamente, caracteres importantes da casa regional, designadamente, por exemplo, no que respeita à sua altura e possibilidade de mostrar piso térreo e piso superior, o certo é que a força da tradição sobreleva, de um modo geral, esses condicionalismos circunstanciais. Como qualquer outro facto ou elemento de cultura, « um tipo de habitação resulta, as mais das vezes, de uma longa evolução ; ele resume a experiência de gerações de gentes da terra; ele forma, na realidade», como dissemos atrás, « uma ferramenta adaptada ao trabalho do homem do campo; este transmite-a tal como os seus antepassados a conceberam e realizaram »3. Deste modo, após a guerra de 1914-1918, quando se procedeu em França à reconstrução das aldeias devastadas, com a intenção de renovar a arquitectura rural e edificar novas casas segundo princípios racionais, encontrou-se por toda a parte a resistência do homem do campo que queria apenas «a sua casa», a sua antiga casa, possivelmente aumentada, embelezada, de acordo com novas técnicas construtivas habitacionais e talvez mesmo com certos princípios estéticos e higiénicos elementares dos tempos modernos, mas edificada, a despeito disso, segundo os moldes do passado, as indicações caldeadas pela sua economia agrícola e os preceitos de uma tradição sob muitos aspectos passiva.

  • 4 Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, A Apanha do Sargaço no Norte de Portugal, Porto, 1958 (...)

2Por outro lado, os puros factos culturais intervêm não só, por vezes, na elaboração de certos tipos de construção, mas também mesmo na escolha do material empregado, sendo aliás, actualmente, com a facilidade de transportes e com o aparecimento de novos materiais, a importância dos factores naturais, neste capítulo, muito atenuada. Decerto, de um modo geral, onde há pedra constrói- – se em pedra, e onde ela falta constrói-se em terra, adobo ou tijolo, ou em madeira e outros materais vegetais. Contudo, e significativamente no que se refere, por exemplo, aos barracos de abrigo e de arrecadação de sargaço e das alfaias da sua recolha e da pesca, que se encontram por todo o litoral norte de Portugal, em igualdade de condições ambientais e servindo o mesmo género de trabalho, a madeira era utilizada preferentemente nos aglomerados constituídos por populações piscatórias, como por exemplo a Póvoa de Varzim, e a pedra nos de gente da lavoura, como por exemplo Fão ; dado que o pinhal está tão longe de uns como dos outros (e até mais da Póvoa do que de Fão), parece que esta diferença deve provir de uma razão cultural, sendo de supor que «cada um daqueles casos corresponde a conceitos diferentes, próprios de duas categorias também diferentes de pessoas: a casa de pedra, estável, como a casa do lavrador; a de madeira – como o barco-, para o pescador e o cabaneiro pobre, que se acomodam com uma construção improvisada, incerta e provisória – quase volante – como as suas vidas»4.

  • 5 Por isso, Demangeon, op. cit., pág. 230, depois de definir a casa como sendo «a expressão do meio g (...)

3Para se compreender a forma geral, características externas e estilo da casa de uma determinada região, e se explicar a ocorrência dos diferentes tipos e sua correspondente repartição geográfica, há, pois, que considerar, para lá dos factores naturais que apontámos e das causas e ditames desses condicionalismos mesológicos ou funcionais que a observação actual pode detectar, também os factores humanos que presidem à elaboração e evolução de qualquer elemento ou instituição cultural5.

4E é da acção conjunta e da interacção destas várias ordens de factores, diversamente hierarquizados conforme os casos, que derivam os tipos, as formas e os estilos peculiares das casas das diferentes regiões.

5Em cada uma das ordens de factores que referimos, naturais e culturais, a explicação de um determinado elemento arquitectónico não deve contudo procurar-se numa linha única da razão, igual em todos os casos. A casa-pátio em geral, por exemplo, pode certamente relacionar-se com regiões planas e com agricultura em regime extensivo, onde o problema do espaço se dilui ; tal pode ser o caso da casa-pátio do Alentejo, que não é estranha ao sistema da grande propriedade e da economia agrícola quantificada.

6Na região gandaresa, porém, a casa desse mesmo tipo pareceu antes justificar-se pelos materiais específicos usados na sua construção – o adobo e a taipaque entre nós não se vêem nunca em edifícios altos, combinados com a pobreza do solo, o sistema de povoamento e as necessidades de espaço para as grandes quantidades de estrume ou moliço que as terras daquela zona consomem. E ambas estas ordens de razões são notoriamente diferentes daquelas que explicam a casa-pátio da região de Penafiel, que toma o aspecto de uma cidadela ou um reduto, de feição muito rude e arcaica, decerto a partir de origens históricas especiais, concebidas talvez como defesa contra depredações e assaltos.

7Portugal Continental situa-se na queda ocidental da Meseta Ibérica para o oceano. O seu território forma um quadrilátero muito regular, cortado por múltiplos cursos de água, e mostra alguns contrastes naturais nítidos : assim, a linha do Tejo, dividindo-o em duas zonas de superfícies sensivelmente iguais, separa uma região de planícies interiores, a sul, que absorvem um litoral hostil e deserto – a região mais despovoada de Portugal –, de outra região, a norte, de altos relevos e litorais abertos. No Norte, outra distribuição é portanto visível: a região a leste, montanhosa e planáltica, cortada de vales profundos e rios mais encaixados ; e a região a oeste, litorânea e de relevos pequenos e muito irrequietos, aberta sobre o oceano, pelos vales amplos dos seus rios, muito numerosos, que correm no sentido nordeste-sudoeste. O mar que banha o litoral sul é ainda o oceano; mas este tem ali as características de um vestíbulo do Mediterrâneo, e o Algarve é na verdade « um anfiteatro aberto às influências africanas». O País situa-se, assim, no ponto de cruzamento de dois mares: o Atlântico, que domina o Noroeste, com a sua função regularizadora, conferindo a essa região, pela sua proximidade e pela acção dos ventos oceânicos que a varrem, um clima temperado, com fracas oscilações de temperatura, Verões frescos, céus frequentemente nublados, chuvas abundantes, a atmosfera carregada de humidade; e o Mediterrâneo, dominando o Sul, e conferindo-lhe o seu clima característico, com influências norte-africanas, de temperaturas sempre elevadas, Invernos temperados e Verões muito quentes e secos, grande luminosidade, céus límpidos, chuvas escassas e estiagem severíssima no Verão. Por outro lado, o relevo do solo, isolando o Nordeste das influências atlânticas, relaciona essa região com o clima continental da Meseta, com oscilações extremas de temperatura, Invernos rigorosos e prolongados, neves e ventos glaciais, e Verões secos e ardentes.

8Deste modo, de uma paisagem de expressão central-europeia, a noroeste, passa-se, por gradações sucessivas em que as características atlânticas se vão atenuando, para uma típica paisagem euro-mediterrânea, a sul, que mostra mesmo aspectos norte-africanos; e, por outro lado, de um tipo climático moderado, regular e fresco para, a leste, a violência de extremos, de frio, calor e secura, de um clima continental dominado pela aridez castelhana.

9O fenómeno humano não raro sublinha esta diversidade natural. Assim, embora o Português constitua « uma das populações mais homogéneas da Europa» (de tipo mediterrâneo), onde se fundiram variados elementos estranhos, designadamente europeus do Norte e norte-africanos, sob a acção isoladora de um ambiente quase insular, nota-se a ocorrência frequente do tipo nórdico no Noroeste – que constituiu no século vi d. C. o reino germânico dos Suevos –, e do mediterrâneo e mesmo norte-africano no Sul, Alentejo e Algarve, onde com maior consistência se fizeram sentir as influências dos Árabes. E esta diversidade completa-se verdadeiramente com paralela diversidade de elementos culturais – alfaias, tipos de economia, psicologia, fonética, costumes, características sociais, etc. –, entre os quais avulta a casa (popular), coincidindo por vezes – e não por acaso – divisões naturais e áreas culturais.

10O oceano, a montanha, o planalto, a planície – eis os elementos naturais que, na diversidade do seu composto provincial, e a despeito da sua área relativamente reduzida, fazem os constrastes da terra portuguesa, que a vegetação acentua, e que, em linhas muito gerais, definem três grandes áreas geográfíco--culturais, que, pelas suas características extremas, designaremos, de acordo com a classificação de Orlando Ribeiro: Portugal Atlântico – a Ibéria Húmida – a noroeste; Portugal Transmontano – a Ibéria Seca – a nordeste; e Portugal Mediterrâneo – a Ibéria Árida – a sul.

  • 6 Cfr. Jorge Dias, Os Arados Portugueses e as Suas Prováveis Origens, Porto, 1948, pág. 82.

11Como reflexo e expressão desta fundamental diversidade regional, e pela acção conjunta dos múltiplos factores que indicámos – naturais e humanos, económico-sociais e etno-históricos (estes últimos em especial pelo mecanismo daquilo a que Jorge Dias deu o nome de lei da afinidade, que, na interpretação dos fenómenos de cultura, relaciona o homem com o meio, explicando o progresso ou o regresso das formas culturais de povos imigrantes pela maior ou menor afinidade existente entre as condições ambientais gerais da sua pátria de origem e as das terras onde se instalaram6) –, que caracterizam e individualizam cada uma daquelas e outras diferentes áreas geográfico-culturais em que o País se divide, também a casa popular, entre nós, considerada globalmente, se apresenta em toda a riqueza da sua variedade, já quanto a categorias e tipos gerais estabelecidos a partir do seu plano e na concepção orgânica e funcional que o determina, já no que respeita a materiais de construção e particularidades deles derivadas, e também já quanto a sobrevivências históricas e a determinados princípios habitacionais que nelas se patenteiam; e pode dizer-se que em Portugal ocorrem, em inúmeras versões e variantes regionais, os géneros básicos conhecidos da casa popular : casas térreas e casas de andar, ou casas-torres ; casas-blocos e casas de pátio, aberto ou fechado; casas de pedra, granito, xisto ou calcário, conforme a natureza dos solos e o costume local, e casas de materiais leves, de taipa, adobo ou tijolo – e hoje de cimento e de « blocos » –, e de madeira; coberturas de palha, de materiais vegetais em geral, de telha, artesanal ou de fábrica, de lajes de pedra, e de uma, duas, três ou quatro águas; casas isoladas, no meio das terras ou bordando os caminhos, nas áreas de povoamento disperso ou com tendência para a disseminação, e casas alinhadas e arruadas umas a seguir às outras nas áreas de povoamento concentrado ou nos aglomerados urbanos; etc.

12E não é apenas nas coordenadas do espaço que a diversidade da casa popular portuguesa é manifesta: em múltiplas zonas do País encontramos também ainda os níveis mais primitivos e rudimentares da habitação humana, distribuídos conforme os casos, entendendo-se a expressão tanto no sentido lógico, em referência ao processo evolutivo da construção em geral, como no sentido cronológico, em referência aos modelos mais antigos: desde os abrigos feitos de blocos de pedra empilhados a seco, cavados na terra ou recobertos de lajes ou torrões, mal se distinguindo da penedia circundante, ou as várias categorias de casas circulares, de varedo ou de pedra com cobertura vegetal (que parece prolongarem até aos nossos dias o viver castrejo) ou inteiramente de pedra, em falsa cúpula, servindo em zonas serranas de agricultura muito pobre e arcaica, onde em geral o pastoreio assume fundamental importância, e que, além de espaços de arrumação, servem de abrigos temporários de pastores, até às casas de lavoura simples e às grandes unidades agrárias complexas – minhotas, transmontanas ou beiroas – ou aos maiores ou mais pequenos «montes» do Sul. A partir do seu critério que atrás enunciámos, segundo o qual a característica que na verdade definiria diferencialmente as várias categorias de casas de lavoura é o respectivo plano ou repartição dos locais que correspondem às múltiplas funções que integram a sua actividade, Demangeon estabelece uma classificação basilar das casas rurais, fundada na distinção essencial entre as casas em que todas as dependências – de habitação, dos gados, de arrecadações – se situam sob o mesmo telhado – a casa-bloco, nas suas variadas formas e modelos – e as casas em que a cada um desses sectores compete um edifício próprio e independente que se dispõe, a par dos demais, em tomo de um recinto central – a casa-pátio –, podendo este ser fechado ou aberto.

13Por outro lado, e sob o ponto de vista da sua estrutura arquitectónica fundamental, as casas, em Portugal, podem ser sobradadas (ou de andar) e térreas.

14A casa sobradada, além de ser do tipo urbano normal, mostra, nos níveis rurais, as mais das vezes e nos casos mais expressivos, o térreo para gado e arrumações, o andar para a habitação das pessoas. Ela é fúndamentalmente a casa campesina nortenha característica, de Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Mõntes, Beira Transmontana, Beira Alta e Beira Baixa, região de Coimbra e terras saloias dos arredores de Lisboa. Casa-bloco típica, ela englobava porém, como dissemos, para lá dessa estrutura geral, as mais das vezes um certo número de dependências ou anexos específicos e independentes, de dimensões mais ou menos reduzidas, para gados e arrumações, cortes ou estábulos, palheiros, sequeiros ou espigueiros, eiras cobertas, lojas, etc. que se distribuem à volta de um amplo espaço aberto, terreiro, ou quinteiro, e que integram o complexo da lavoura.

15São deste tipo as casas rurais daquelas áreas, de maiores ou menores dimensões, por vezes muito avultadas, de pedra, granito ou xisto, não raro as duas qualidades combinadas, e que ficam à vista, sem reboco, ou calcário, conforme as áreas – as duas primeiras na área nortenha, o calcário nos distritos de Coimbra e Lisboa. Apresentam a fileira de janelas corridas numa fachada lisa; o telhado, com beiral, é de quatro e três águas – nas zonas de povoamento disperso em geral, nomeadamente no Entre-Douro-e-Minho, nas casas isoladas de Trás-os-Montes e Beira Alta, na casa da região saloia nos arredores de Lisboa, etc. –, e de duas – nas casas arruadas das aldeias da serra minhota, da Estrela e da zona serrana da Beira Baixa (com a empena ora para a frente ora nas fachadas laterais), Trás-os-Montes, de telha caleira, em regra, hoje, de telha marselha, e outrora, e em zonas mais arcaizantes (nomeadamente nas regiões serranas) muitas vezes de colmo ou de placas de xisto. A cozinha fica ora no térreo ora no andar; a escada de acesso ao andar, geralmente exterior, é também de pedra e remata numa varanda aberta, de pau, que serve de logradouro ou por vezes de local de sequeiro de cereais ou de arrumos, assente sobre pilares, cachorros salientes ou pontas de trave, ou num patim, que em casos mais ricos e em certas partes – em Coimbra, na Maia, etc. – é alpendrado ; e existe também além desta, muitas vezes, escada interior de madeira.

16Nas áreas serranas nortenhas, a casa, igualmente deste tipo, é mais pequena, rude e tosca, as mais das vezes de pedra rudimentarmente aparelhada e sem reboco, e com cápeas fazendo de beiral, e guarda-ventos de protecção para amparar a cobertura de colmo ou telha caleira contra o vento.

17Por outro lado, em certas regiões definidas, nomeadamente por exemplo nas terras baixas ocidentais do distrito de Coimbra, nomeadamente na Bairrada, a ordem que indicámos – arrumos no térreo, habitação no andar – inverte-se, e vemos casas de térreo e sobrado em que o sector da habitação é no térreo, situando-se no piso superior o palheiro e porventura outros arrumos. E o mesmo sucede em algumas aldeias da Beira Baixa, por exemplo a Malpica do Tejo, e nas zonas serranas dessa província, por exemplo no Paul, onde a casa mostra três e mais pisos, com igualmente o palheiro – e a varanda de pau no mais elevado.

18A casa térrea, por seu turno, de um modo geral, ocorre por toda a parte; mas em determinadas áreas ela constitui a forma habitacional normal e característica, que define o estilo arquitectónico dessa área e exprime verdadeiramente a vida doméstica e económico-profissional da sua população, e que, independentemente do nível económico do seu possuidor, predomina expressivamente sobre a casa sobradada que, menos significativa, com ela coexiste, própria apenas de algumas famílias; enquanto nas demais áreas, em que a casa normal e mais representativa é sobradada, ela encontra-se em situação oposta à que indicamos, meramente como casa dos estratos socioeconómicos mais modestos.

19A casa térrea é, de um modo geral, pequena e singela. Ela é fundamentalmente a casa do Sul, da Estremadura, Ribatejo, Alentejo e Algarve, tanto os «montes» e « montarecos » dispersos no meio das terras como, em muitos casos, as casas das aldeias e vilas dessas áreas, coladas umas às outras ao longo dos arruamentos e estradas que atravessam essas povoações. É também a casa do litoral central do País, das zonas ribeirinhas de certas partes das regiões de Aveiro, Pombal e Leiria, a casa das terras gandaresas compreendidas entre o Vouga e o Mondego – e de outras áreas com características gandaresas, como a Apúlia e Fão, no Minho Litoral –, casa-pátio, que em alguns casos é fechado (e para o qual se entra por um largo portal rasgado ao lado da fachada que dá para a rua), rodeado pelas várias dependências rurais e onde se acumulam os moliços e estrumes necessários às lavouras desses solos. Estas casas relacionam-se com a taipa, o adobo e o tijolo, que por um lado não consentem construções em altura, e, por outro, pela sua plasticidade, permitem todas as fantasias de arquitectura, correspondendo na maioria dos casos a áreas de pequena propriedade agrícola, ou sendo habitadas por trabalhadores por conta alheia.

20No Alentejo, elas são bem rebocadas e caiadas de branco, e são-no tantas vezes que a espessura da cal lhes adoça e arredonda as esquinas. Desenvolvem-se em planos geométricos que se combinam com chaminés enormes que fazem por vezes de fachada. No Algarve elas são também rebocadas e caiadas de branco, com alisares de janelas e portas e rodapés de cor azul, ocre, ou verde, mostrando em certos casos as características açoteias, chaminés rendilhadas, finas e graciosas, e platibandas com belos desenhos de estuque coroando a fachada frontal da casa e a porta, a meio, entre duas janelas.

21São ainda térreos a quase totalidade dos «palheiros» ou barracos de tabuado das praias do litoral central, de Esmoriz a Vieira de Leiria (à excepção de numerosos «palheiros» da Praia de Mira, que possuem dimensões muito avultadas, com dois e mais pisos sobradados) construídos sobre estacaria na orla das dunas, com as suas varandas de pau e o seu telhado de duas águas com a empena virada para a frente; e do mesmo modo os barracos de madeira e junco dos pescadores do Alentejo (Santo André, Melides, etc.) e do Algarve.

22E então em terras nortenhas, são enfim térreas as casas dos aglomerados piscatórios ou dos bairros de pescadores em povoados litorâneos mistos, como a Póvoa de Varzim e Fão – alinhadas ao longo de compridos arruamentos –, e na primeira localidade com as suas « camaretas » como beliches abertos para a sala, etc.

23Entraremos seguidamente no estudo pormenorizado dos vários tipos de casas que se encontram nas diferentes regiões do País, procurando definir certas categorias mais gerais e caracterizá-las de acordo com as suas formas exteriores e interiores, a sua função essencial e a relação que porventura tenham com os factores naturais e humanos próprios das suas respectivas áreas.

24Antes disso, porém, indicaremos, numa breve descrição, os géneros mais primitivos de habitação existentes entre nós.

25No que respeita à casa regional e tradicional em Portugal nos seus tipos evoluídos, e a despeito da grande diversidade e multiplicidade de formas e aspectos que atrás referimos, relacionada com particularismos locais de múltipla ordem, podem distinguir-se, além de certos caracteres comuns elementares, duas categorias fundamentais correspondentes, em termos gerais, a outras tantas zonas do País – o Norte e o Sul –, delimitadas pela linha latitudinal que vai aproximadamente de Leiria a Castelo Branco: casas de térreo e andar, e casas térreas. Estas duas categorias são estabelecidas, por oposição, em função dos tipos genéricos sob os quais a casa se apresenta nessas duas zonas, para lá das inúmeras variantes e diferenças de pormenor e também dos materiais de construção básicos e, ainda, como corolário destes diferentes factores, do estilo próprio de cada uma delas, expressão cultural de influências históricas diversas, a partir de origens muito definidas – em função portanto dos elementos naturais e sobretudo históricos e culturais, ou seja, das paisagens, geográfica e humana, que definem aquelas zonas.

26Como característica comum às casas populares portuguesas em geral, pode certamente dizer-se que, em todo o País, elas se apresentam com uma grande singeleza de linhas e de estilo, não sendo mesmo raros os exemplos de casas elementares. Em todo o País, elas mostram também, como regra, uma planta quadrangular simples; mas esta identidade elementar deixa transparecer claramente aquela dualidade essencial.

  • 7 Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Porto, 1945, pág. 143.
  • 8 De facto, são muito frequentes no Alentejo e Algarve as casas com telhados de duas águas; mas estas (...)
  • 9 Orlando Ribeiro.

27Em termos muito gerais, pode dizer-se que a casa de térreo e andar é a casa do Norte. De facto, aí, a casa popular mostra esses dois pisos, com nítida distinção funcional entre si – o térreo para recolha de gados, alfaias e produtos da lavoura, e o andar sobradado para a habitação das pessoas –, na categoria característica de casa-bloco, que se ajusta convenientemente às necessidades do tipo económico-social que domina esta região – o pequeno ou médio proprietário rural que trabalha a terra com a ajuda da sua gente ou de alguns raros assalariados e que possui, em escala reduzida, gados e alfaias próprias –, de formas lineares, paredes lisas e nuas, quando não mesmo toscas e rudes, feitas de pedra –, que aí abunda e muitas vezes fica à vista – e telhados de quatro e, menos frequentemente, duas águas, e que, nos exemplos mais primitivos de certas zonas serranas, particularmente distantes no espaço e no tempo, sugere, nas palavras de Orlando Ribeiro, « uma possível filiação na cultura arcaizante dos castros pré-romanos»7 cuja tradição arquitectónica parece prolongar com poucas alterações até aos nossos dias. Dentro desta categoria genérica, e sem falar da casa urbana, inclui-se em especial a casa rural normal do Noroeste, Minho e Douro Litoral, e a casa transmontana; e, com características próprias, a casa beiroa mais frequente, da Beira Litoral (regiões interiores de Aveiro e Coimbra), Beira Transmontana, Beira Alta e Beira Baixa, e a casa saloia. Pelo seu lado, e em contraste com esta, a casa térrea é a casa do Sul, Ribatejo, Alentejo e Algarve, e das áreas litorâneas da Murtosa, da região gandaresa, dos arredores de Leiria, etc., do Centro, e, no Norte, dos núcleos e estratos piscatórios. É uma casa térrea e destinada apenas à habitação das pessoas, com as dependências da lavoura instaladas em edifícios independentes, feita de terra batida – os característicos adobo ou taipa das terras quentes e secas – ou de outros materiais leves, como o barro ou o tijolo, ou de calcário, com as paredes rebocadas e caiadas de branco, exterior e interiormente, de facção esmerada – mostrando por vezes formas caprichosas na combinação pitoresca dos seus planos geométricos e na riqueza dos seus ornatos, nomeadamente nas chaminés, de belos efeitos quase cenográfícos –, com o telhado de duas e por vezes de uma só água8, e cuja feição cuidada e pouco rústica, mais uma vez no dizer do Orlando Ribeiro, parece apontar a « influência de civilizações superiores, romana e árabe». E, assim, tradução de «modos de vida, símbolo de formas de cultura de que é talvez a mais característica expressão material, a casa popular demarca, nos dois tipos fundamentais, a oposição entre o mundo das serranias, e vales perdidos no isolamento, e as planuras que a Natureza e a História abriram a mais amplas influências mediterrâneas »9.

A casa elementar

  • 10 Note-se porém que esta casa térrea elementar nada tem que ver com o tipo normal da casa térrea do S (...)

28Com esta expressão é costume designar-se a casa térrea e pequena cujo plano interior se reduz a um simples compartimento quadrangular, quando muito, às vezes, com divisórias de tábua isolando um ou outro recanto, onde decorrem todas as funções domésticas. Estas casas são extremamente numerosas e encontram-se por todo o País10, vendo-se mesmo nas cidades; mas são sobretudo frequentes entre as classes pobres das zonas rurais: trabalhadores sem ou quase sem terras nem gados. Mas, na maioria dos casos, elas não têm qualquer significado de sobrevivência histórico-cultural nem correspondem a um estilo local, aparecendo ao lado dos tipos regionais definidos, com os caracteres aparentes destes últimos, ajustados às suas proporções.

29Ao mesmo tempo que essa, porém, encontram-se casas que, não merecendo a designação de casas elementares propriamente ditas, são também construções extremamente diminutas e indiferenciadas, em que a simplicidade da estrutura se alia à rudeza dos materiais usados e a uma técnica muito tosca de construção ; e assim esta casa relaciona-se com os tipos cronologicamente mais antigos, ou seja, os mais rudimentares e menos evoluídos, e por isso representa muitas vezes uma forma tradicional local, própria de todos os níveis económicos.

30Estas casas encontram-se especialmente em regiões pobres ou serranas cujo isolamento económico ou geográfico constitui um poderoso factor arcaizante, propício à conservação de modos de viver e formas culturais de outras eras. Entre elas distinguem-se, pela nitidez dos seus caracteres e riqueza da sua problemática, as casas de planta circular a que já nos referimos e também de um modo geral as casas das zonas serranas nortenhas, de que adiante nos ocuparemos, com as quais na verdade o conceito também, sob muitos aspectos, se identifica.

31Resta-nos indicar, muito resumidamente, o processo evolutivo que, a partir destes tipos mais primitivos da habitação humana, ainda vigentes entre nós, conduziu às formas mais complexas e diferenciadas sob que hoje se apresenta a casa portuguesa em geral e que, de acordo com Jorge Dias, estabelecemos, em termos conjecturais, com base nas formas de transição que junto daqueles se encontram.

32Assim, da mais antiga casa de planta circular, com telhado cónico de materiais vegetais (correspondente, nos seus primórdios, a uma civilização de economia predominantemente pastoril), teriam derivado, em primeiro lugar, as casas com a mesma planta mas com um telhado planificado de uma ou duas águas (esta casa, porém, oferece poucas possibilidades de desenvolvimento e não se ajusta às exigências crescentes da agricultura superior; ela subsiste por isso apenas nas regiões de economia pobre e precária e, aliás, em exemplos extremamente raros, hoje em dia apenas com funções ligadas ao gado ou a arrumações), a par com casas de planta rectangular, originando muitas vezes tipos compósitos.

  • 11 Aparece um tipo que se afigura intermédio na lógica deste processo evolutivo : a casa de planta rec (...)

33As casas pequenas de planta quadrada e telhado cónico-piramidal (ou seja, um telhado cónico de base quadrada), de materiais vegetais, derivadas talvez elas próprias da casa redonda, estão possivelmente na origem de outras da mesma forma mas de maiores proporções, com telhados claramente piramidais (isto é : de quatro águas), de colmo ou de telha; e o desenvolvimento destas últimas, por sua vez, deu origem às casas rectangulares com telhado de quatro águas, pela transformação do vértice num cume, no sentido do eixo maior do edifício11.

  • 12 Cfr. Jorge Dias, Contribution to the Study of Primitive Habitation, Lisboa, 1951. Para este autor, (...)

34Finalmente, da primitiva casa rectangular com telhado de duas águas, de materiais vegetais – que já existia na época castreja, e era já então aquela que mais condições possuía para se adaptar às necessidades duma economia mais desenvolvida –, derivou, quase sem alterações, a casa rectangular actual com telhado de duas águas, em que apenas se vai progressivamente dando a substituição do colmo pela telha12.

Notes

1 Albert Demangeon, Problèmes de Geographie Humaine, Paris, 1942, pág. 263. 11bid., pág. 262.

2 Ibid., pág. 262.

3 Ibid., pág. 287.

4 Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, A Apanha do Sargaço no Norte de Portugal, Porto, 1958, pág. 79.

5 Por isso, Demangeon, op. cit., pág. 230, depois de definir a casa como sendo «a expressão do meio geográfico », define este como o conjunto de influências naturais e humanas que levaram o homem do campo a adoptar este ou aquele modo de habitação.

6 Cfr. Jorge Dias, Os Arados Portugueses e as Suas Prováveis Origens, Porto, 1948, pág. 82.

7 Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Porto, 1945, pág. 143.

8 De facto, são muito frequentes no Alentejo e Algarve as casas com telhados de duas águas; mas estas duas águas parecem corresponder a dois telhados combinados de uma só água, que por vezes partem mesmo de dois cumes a diferentes alturas. Por seu turno, o telhado de quatro águas, que no Norte é nitidamente de origem popular, apareceu em certos centros urbanos, como Tavira, com as características da construção setecentista de origem mais requintada. Cfr. Jorge Dias, Contribution to the Study of Primitive Habitation, Lisboa, 1951.
Para Dauzat, o telhado de uma só água, caracteristico da «casa latina», explica-se não pela existência, nos países mediterrâneos, de um vento dominante, ao qual se oporia apenas essa água, mas pelo duplo facto de que a casa latina é uma casa aglomerada e que se formou em regiões acidentadas: « Se se observar a disposição tão frequente nas aldeias escalonadas numa vertente por vezes muito íngreme, ou coroando um outeiro, compreende-se que nesse caso as duas águas do telhado eram inúteis, e que cada telhado formava apenas, se se pode dizer, a escama de uma carapaça que recobria a aldeia. A origem do telhado duma só água devia portanto buscar-se na geografia física dos países onde ela se formou ». – Op. e loc. cit., págs. 53-54.
O mesmo autor (op. cit., págs. 50 e 53), como caracteres essenciais da «casa gaulesa», indica a existência da trave do cume, o colmo e o plano rectangular ; e da «casa latina», o telhado de pequena inclinação, muitas vezes duma só água, pouco saliente, coberto de telha caleira, fachada da casa sob a água do telhado, planta geralmente quadrada ou mais estreita sobre a fachada. É de notar que, segundo este autor, e ao contrário do que, como dissemos, sucede na casa da área mediterrânea portuguesa, a «casa latina» em França mostra, no modelo mais primitivo, uma planta do rés-do-chão e andar, o primeiro para as cortes e estábulos para gado miúdo, o lagar e a adega, e o segundo composto de uma só divisão de habitação, a «casa», cozinha, sala de comer e quarto, ao mesmo tempo, situada na sobreloja, e com uma escada exterior de pedra – caracteres que, entre nós, definem precisamente a casa nortenha, por oposição àquela.

9 Orlando Ribeiro.

10 Note-se porém que esta casa térrea elementar nada tem que ver com o tipo normal da casa térrea do Sul.

11 Aparece um tipo que se afigura intermédio na lógica deste processo evolutivo : a casa de planta rectangular, com dois telhados piramidais seguidos.

12 Cfr. Jorge Dias, Contribution to the Study of Primitive Habitation, Lisboa, 1951. Para este autor, porém, e embora as características fundamentais desta última casa – planta rectangular e telhado de duas águas – sejam as mesmas nas casas serranas e nas casas do Leste Transmontano planáltico (e ainda em outras zonas), umas e outras são essencialmente diferentes, parecendo mesmo apontar uma dualidade de origens: na serra, os telhados são de colmo, e têm « cápeas » e « guarda-ventos », a que adiante aludiremos; no Leste Transmontano, os telhados, de um modo geral, são de placas de xisto.

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