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O Alentejo entre o Antigo Regime e a Regeneração

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Teresa Fonseca
, 
Jorge Fonseca

Considerações finais

José Subtil

Texte intégral

1O período abrangido pelos textos aqui publicados corresponde a profundas mudanças políticas e sociais das quais salientaríamos, como pano de fundo, as referentes às formas de governo e de regulação social que procuraram responder às questões de «como se pode ser governado», «por quem», «com que objectivos» e «com que métodos».

  • 1 Ver Michel Foucault, Dits et Écrits (1976-1979), Paris, Gallimard, 1978 e as versões em português (...)

2Michel Foucault, invocando a literatura da época refere, na pluralidade de poderes, formas e práticas, três tipos estruturantes de governo que conviviam desde, pelo menos, o final da Idade Média1. O que respeitava à moral (governo de si mesmo), à família (economia) e ao Estado (política). E relaciona estas formas de governo numa continuidade ascendente e descendente. De baixo para cima, quem quer governar o Estado tem que saber governar-se a si próprio e saber governar a sua família (parentes, bens e património). De cima para baixo, quando um Estado é bem governado, os pais de família sabem governar as suas casas e os indivíduos sabem comportar-se como deve ser.

3Também a historiografia tributária da história do direito tem reconhecido a influência da filosofia prática de Aristóteles, reelaborada no período medieval e moderno, dirigida ao governo e à administração em torno de uma trilogia que cobria a ética (cura sui), a economia (res familiaris), a «política» (res publica) e obrigada pela virtus da justiça. Desde a unidade familiar a outras comunidades mais vastas (vila, cidade, reino), o pai de família e o príncipe deviam subordinar as suas acções a estes limites éticos de forma a assegurar os equilíbrios estabelecidos, “tanto nos níveis mais altos como nos mais baixos”.

  • 2 Para a reconstituição deste universo mental ver António Manuel Hespanha, “Carne de uma só carne: p (...)

4Esta «economia» da casa contaminaria a res publica onde o príncipe poderia desempenhar um papel semelhante, exercer a mesma potestas numa analogia entre a casa e o Estado. E com essas autoridades, deitar mão a formas discricionárias de governo que não estavam contempladas na doutrina jurisdicional da soberania a qual obrigava a formas do juízo, mesmo em matérias que não dissessem respeito à justiça2.

5E não foi só o segmento do governo doméstico que influenciou esta deriva da arte de governar do príncipe. O direito comum (ius commune) também introduziu variações na administração da justiça, como sejam o da administração dos bens, da conservação da saúde, o tráfico e o comércio das mercadorias desde que fossem oportunas, ou seja, permitia ao príncipe não só o poder para manter a ordem mas também o exercício de um saber prático capaz de produzir a riqueza e o bem-estar dos povos desde que subordinado às necessidades dos corpos sociais e de acordo com o status de cada um.

6A importação desta arte de governar é a grande novidade da segunda metade do século XVIII como consequência do terramoto de 1755. O estrangeirado Luís António Verney, radicado em Itália, felicitava o marquês de Pombal por ensinar às outras “Cortes da Europa a verdadeira Lógica” (1767) e António Ribeiro Sanches, outro estrangeirado e criatura do convívio de Pombal, colaborava neste programa e, no final do século, Francisco Coelho de Sousa Sampaio falava da “felicidade do Estado” como objectivo do governo.

7Este processo espelha, em termos gerais, a caracterização da sociedade de Antigo Regime nos inícios do século XIX quando Junot tomou a cidade de Lisboa (30 de Novembro de 1807). A destituição da Casa de Bragança e a extinção da regência provocariam um vazio de poder acompanhado por uma onda de tumultos e revoltas que levou à formação de juntas regionais e locais para restauraram a soberania do príncipe regente D. João VI. A fundamentação desta soberania seguiu os padrões mais tradicionais e consubstanciou-se em reuniões de «corte» representativas das três ordens (clero, nobreza e povo). José António de Sá defendia que “Nas câmaras reside a tutela dos conselhos, deviam estes convocar todas as classes para votar em huma Junta de representantes destes que em nome do soberano e a pluralidade de votos decidissem”. Alguns concelhos, quando instados a mandarem representantes (procuradores e delegados), recusaram com o argumento de que não tinham assento em Cortes, portanto, “o processo era, de muitos pontos, assumido como um processo constitucional”. E noutras, com assento em Cortes, formaram-se governos políticos, ao lado dos senados municipais ou agregando-se a eles. Um cenário político local paradoxal e contraditório com o que estava em marcha, desde meados do século XVIII, ao nível das elites e do poder central.

8No primeiro triénio da revolução liberal (1820-1823) seria aprovada a Constituição (23 de Setembro de 1822) mas o golpe da Vila-Francada (27 de Maio de 1823) levaria à dissolução das Cortes. O segundo triénio (1823-1826) foi caracterizado por uma grande indefinição política e instabilidade social na sequência da revolta absolutista liderada por D. Miguel (golpe da Abrilada, 30 de Abril de 1824). Embora, depois de outorgar ao Reino uma Carta Constitucional (29 de Abril de 1826), D. Pedro tenha conseguido a restauração do liberalismo por um curto período de tempo (Julho de 1826 a Maio de 1828), o regresso de D. Miguel (Fevereiro de 1828) viria a constituir novo desaire com a dissolução do parlamento e a convocação das Cortes que o proclamariam como rei absoluto (23 de Junho de 1828). Durante cerca de seis anos o governo do príncipe “usurpador da Coroa” confrontar-se-á com a reacção dos adeptos a favor do “Trono Legitimo e da Carta Constitucional” (1828-1834).

9Com a criação da Regência da Ilha Terceira (15 de Junho de 1829) e a decisão de D. Pedro assumir a liderança da mesma (3 de Março de 1832) foram decretadas medidas drásticas tendo em vista a ‘morte institucional’ do Antigo Regime. O novo sistema jurídico viria a ser desenhado por José Mouzinho da Silveira (16 de Maio de 1832). Entre o Setembrismo e a Regeneração, a monarquia constitucional cimentaria as bases do Estado Liberal numa intensa luta política entre os propósitos centralistas e as resistências dos poderes locais.

10Os textos do presente volume reflectem os efeitos desta alteridade na região do Alentejo, oferecendo-nos várias perspectivas historiográficas: a instabilidade política e institucional das misericórdias num território senhorial, a frescura iluminista que Frei Manuel do Cenáculo transportou para a sua diocese, a importância da região para as estratégias militares, os temas alentejanos no memorialismo ilustrado, as contradições ideológicas sobre a escravatura e o trabalho intensivo, as políticas assistências e as transformações operadas na rede de conventos de freiras. Só dois trabalhos, entre oito, vão para além da revolução liberal de 1820.

11Maria Marta Lobo de Araújo ocupa-se dos Peditórios de interpostas pessoas: fraudes eleitorais nas Misericórdias alentejanas da Casa de Bragança (século XVIII) dando-nos conta do processo político e social das eleições numa das casas de primeira grandeza, a tramitação processual entre a Secretaria dos Assuntos da referida Casa, o Ouvidor e a Coroa. Enquadra as fraudes na longa crise das misericórdias desde o século XVI associada aos momentos de tensão dos actos eleitorais, da expulsão de irmãos, dos conflitos com os profissionais de saúde e com os párocos das freguesias. Segundo a autora, para além das crises internas, as misericórdias mantiveram relações difíceis com outras instituições como câmaras, cabidos, mitra, ordens religiosas e confrarias por causa sobretudo da diminuição dos legados, aumento de despesas dos serviços de saúde, missas, responsos e créditos mal parados.

12Tanto em Monsaraz como em Vila Viçosa, as eleições demonstram esta conflitualidade, a pressão das corporações locais e a tentativa de intromissão política da Coroa. A eleição em Monsaraz (1721) foi subornada, segundo os contestatários, por terem existido “peditórios de interpostas pessoas” sendo eleito para provedor “hum sojeito lavrador e morador no termo da villa huã legoa” e tesoureiro “hum sojeito macanico que exercita o officio de serralheiro e não sabe ler nem escrever”. O ouvidor da Casa de Bragança manifestou vontade de consultar o arquivo da confraria para verificar os livros de eleições e o compromisso mas foi impedido pelo escrivão que lhe exigiu um mandato de diligência. Após uma devassa, na Misericórdia de Vila Viçosa (1754) descobriram-se combinações de votos.

13A partir da segunda metade do século XVIII a Coroa procurou controlar os processos eleitorais. O provedor da comarca de Eivas informava, a este respeito, que o juiz de fora se tinha encarregado de elaborar uma lista de pessoas para serem nomeadas para a provedoria sem pertencerem à irmandade e, em 1788, verificou-se a tentativa da Coroa para colocar independentes na chefia da Mesa. O juiz de fora tentou arregimentar “eleitores que podiam votar nas pessoas de maior probidade e distinção desta villa e suas vizinhanças, ainda que actualmente não fossem irmãos pela liberdade que lhes dava a ultima das ditas ordens” mas os que foram eleitos eram todos irmãos “antigos” e confrades.

14Francisco António Lourenço Vaz oferece-nos Em Beja com os olhos no mundo – O papel dos meios de informação no episcopado de Frei Manuel do Cenáculo, uma análise detalhada do sistema de informação cultural do célebre dignitário da Igreja. Faz um balanço do dinamismo que a cidade alentejana passou a ter durante o seu episcopado, sobretudo fruto de uma circulação de ideias e notícias com recurso a diversos meios, nomeadamente de uma rede de correspondentes que Frei Manuel dispunha de forma permanente devido à sua qualidade de frade da Ordem Terceira de S. Francisco, das suas viagens ao estrangeiro, das ligações aos conventos nacionais e ultramarinos. Só no Reino a ordem tinha 4 casas no Norte (Mogadouro, Sesulfe, Marialva, S. João da Pesqueira) e 6 casas no Sul (Lisboa, Coimbra, Viana do Alentejo, Monchique, Silves e Vimieiro). Para além disso, foi Presidente da Real Mesa Censória (1770-1777) o que lhe possibilitou relações com autores, livreiros e professores régios. Em 1771, Pombal escolheu-o para integrar ajunta de Providência Literária e reformar a Universidade de Coimbra (1772) o que o aproximou do círculo do poder. Para ilustrar este enorme sistema de informação, o autor criou uma base de dados com 1547 cartas provenientes de várias cidades (Lisboa, Roma, Madrid, Sevilha, Veneza, Granada, Veneza, Coimbra, Faro e Santarém).

15Nas 1041 cartas de Portugal incluem-se as dos correspondentes de vários territórios ultramarinos (Brasil, Goa, Macau, Angola, Gondar, Tanger, Moçambique e Cabo Verde) e onde figuram frades, presbíteros seculares, bispos, arcebispos, homens de Estado como o Marquês de Pombal, o Intendente Diogo Inácio de Pina Manique, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, professores régios dos Estudos Menores, da Universidade e do Colégio dos Nobres, reformistas como o Abade Correia da Serra, António Ribeiro dos Santos, José António de Sá, Domingos Vandelli e Nicolau Pagliarini desde que foi Director da Impressão Régia, organizador das bibliotecas da Ajuda, Colégio dos Nobres e, mais tarde, agente do bispo na Cúria Romana. Para além da informação epistolar foram considerados outros meios como gazetas e jornais.

16Fernando Dores Costa, em O Alentejo como região militar no início do século XIX: a mais propícia para conquistar o reino? interpreta algumas das ideias que consideram o Alentejo como a região de Portugal mais provável para o desenrolar de cenários de guerra devido aparentemente à facilidade de penetração do terreno para concluir que não foi isso que se passou no século XIX durante a Guerra Peninsular (1808-1811) depois dos confrontos na Guerra da Restauração (1641-1668) e da Guerra das Laranjas (1801).

17Tomando a doutrina de defesa do reino do marquês de Alorna onde se refere que embora o Alentejo pudesse ser tomado com facilidade tal facto não tinha consequências na tomada de Lisboa devido às enormes dificuldades na travessia do Tejo, o autor chama-nos a atenção para que, segundo esta perspectiva, a chave do ataque estaria sobretudo a norte do Tejo. Segundo O’Farrill, (1797), tenente general espanhol, as opiniões militares dividiam-se a este respeito entre considerar que o melhor caminho para atingir Lisboa era o da Beira ou por ambas as margens do Tejo até Abrantes ou então dirigir as operações para o norte do Douro e seguir, depois, para Lisboa. A entrada pelo Alentejo teria como objectivo tomar posse desta província, do Algarve e da parte da Estremadura mas como estratégia de pressão para tomar, posteriormente, a capital.

18Outra característica do Alentejo era a má qualidade das fortificações que não tinham capacidade para travar a progressão de uma força inimiga com excepção de Eivas mas que, pelo seu isolamento, ficava fora do avanço das tropas invasoras. Outras praças, melhor posicionadas no terreno e, por isso, com alguma importância, como Juromenha e Campo Maior, tinham enormes falhas de construção.

19Particularidade de relevo era também a escassez de população cujas comarcas teriam, em 1801, um total de 82.921 fogos, ou seja, 11% de todo o Reino o que dificultava a capacidade de resistência e confronto com as tropas invasoras. Por estas razões, o autor realça o facto do Alentejo não ter sido palco das operações militares fundamentais da Guerra Peninsular em Portugal, ou seja, ao contrário do que frequentemente se afirma, a região estava longe de evidenciar, no início do século XIX, as melhores condições para uma invasão do reino e podia, inclusive, conduzir o invasor a um impasse táctico na conquista de Lisboa.

20Teresa Fonseca, em O Alentejo no memorialismo ilustrado de finais do Antigo Regime procede à inventariação do memorialismo económico sobre o Alentejo, publicados e inéditos, produzidos pela Academia das Ciências de Lisboa, magistrados régios e elite esclarecida.

21Nas memórias da Academia das Ciências de Lisboa, editadas entre 1789 e 1815, incluem-se autores como António Henriques da Silveira, proprietário rural de Estremoz, lente da Faculdade de Cânones de Coimbra e reformista pombalino, Joaquim Pedro Fragoso da Mota de Sequeira, de Assumar, formado em Leis, e o canonista montemorense Joaquim José Varela sobre quem a autora tem publicado vários trabalhos. Outra parte deste espólio seria publicada pela mesma Academia (1987) sob o título Memórias económicas inéditas (1780-1808) com trabalhos de Joaquim José da Costa Simas, Joaquim Pedro Fragoso de Sequeira e, mais tarde, de António Henriques da Silveira (2003).

22Um outro conjunto de memórias foi publicado pelo jornal O Investigador Portuguez e outros textos subiram ao Desembargo do Paço e ao Ministério do Reino (1783-1816) como relatórios, ensaios e memórias remetidos pelos corregedores de Eivas, Évora, Vila Viçosa, Beja, Ourique e ainda por juízes de fora, provedores e outros magistrados. Também a Junta do Comércio promoveu (1788) um inquérito sobre a situação agrícola no Baixo Alentejo cujo responsável, Gervásio de Almeida Pais, publicaria um relatório intitulado Observaçoens, e Exames feitos sobre as Cauzas do atrazamento, e ruína da Agricultura, e Povoação na Província do Alentejo.

23Embora os temas recorrentes das memórias formulem críticas ao mercantilismo, existem diferenças entre os memorialistas com forte influência da Academia das Ciências e os da segunda geração que exprimem as dificuldades económicas e sociais vividas nas duas primeiras décadas de Oitocentos devido à instabilidade político-militar.

24Apesar das suas limitações, as memórias económicas sobre o Alentejo reflectem uma abertura débil e tardia às “ideias do século”, tendo em conta os condicionalismos políticos, socioeconómicos e culturais do país.

25Maria do Rosário Pimentel, em O Bispo de Eivas D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho e a defesa da escravatura, destaca, na diversidade do pensamento do bispo, o tema da escravatura de que foi um defensor. Autor de vários livros sobre economia, comércio, mineração, escravidão e tráfico negreiro e bom conhecedor da realidade brasileira e da importância do tráfico para a economia portuguesa, opôs-se ao movimento abolicionista, embora defendendo um certo humanitarismo iluminista. A autora começa por nos conduzir para a publicação da Analyse (1798) destinada a orientar os defensores dos escravos e prevenir os perigos da abolição. O manuscrito seria recusado pela Academia Real das Ciências de Lisboa, antes de ser impresso em Inglaterra (1798) e, mais tarde, também pela Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros cujo censor, António Ribeiro dos Santos, o criticou porque “devia por seu Santo Ministério concorrer, [...] para se soltarem os ferros do cativeiro destes homens». Mas Azeredo Coutinho seria autorizado, mais tarde, a imprimir a sua obra (1808). Justificava a escravidão, tanto na perspectiva religiosa como política e económica, de acordo com o direito natural.

26Quanto à legislação portuguesa que, no seu entender, tanto permitia a escravidão do negro como a liberdade do índio, entendia não haver nenhuma contradição porque ambas eram justas e conformes ao bem da sociedade. A escravidão era fundamentada também pelo direito de propriedade e pela demografia o que justificava o facto de não existir em muitos países da Europa porque a população era excedentária em relação ao território. Defensor da escravatura advogava, porém, um tratamento humano deste comércio que devia ser alimentado pela caridade e pela justiça. Preconizava, por isso, a defesa dos escravos através de um fiscal público e a obrigação dos senhores prestarem contas dos seus procedimentos, ou seja, mitigava a defesa da escravatura com prática humanistas assente na educação. A autora concluiu que o seu pensamento reproduz uma atitude vinculada à política colonial mercantilista que não o impediu, numa atmosfera hostil às suas ideias, de justificar a escravatura e defendê-la daqueles que, como dizia, a condenavam «debaixo da capa da Humanidade».

27Jorge Fonseca, com as Repercussões no Alentejo da legislação pombalina sobre a escravatura (1761 e 1773) reavalia as consequências do alvará de 10 de Setembro de 1761 onde se reconhecem os inconvenientes “contra as leis e costumes de outras cortes polidas” de se importarem dos domínios ultramarinos grande número de escravos pretos que faziam falta para o cultivo das terras e a exploração mineira e vinham criar desemprego e problemas sociais.

28Outras razões justificavam a lei como as motivações económicas relacionadas com a perda de mão-de-obra nas colónias. Em 16 de Janeiro de 1773, um novo alvará fazia referência à “repreensível propagação” das escravas, através de “um abominável comércio de pecados” e à “grande indecência que as ditas servidões infer[i]am”. E seria justamente do Alentejo que surgiram as poucas queixas conhecidas relativamente ao fim da escravidão, já mencionadas por Albert Silbert, embora sem obterem o consentimento régio que recusou mesmo que os queixosos pudessem “obrigar os antigos escravos a servi-los, ainda que por salário”, mesmo nos casos em que não tivessem provado estarem ao abrigo da nova lei. Um caso paradigmático é o dos nove escravos de Simião Corvo, lavrador de S. Romão, Alcácer do Sal, e a duas escravas de Simião Fernandes Lança. O desembargador do Desembargo do Paço, nomeado para dar parecer, começou por defender que a suplica devia ser recusada mas acabaria por exprimir o seu pensamento sobre a questão da escravatura, ao opinar que os escravos “no Alentejo [eram] necessários para a cultura das terras, mais prontos, certos e tão úteis como eram os servos adscritícios entre os romanos”.

29A dificuldade dos proprietários em aceitarem o fim da escravidão tinha a ver, sem dúvida, com as características da economia alentejana, baseada em grande parte numa agricultura extensiva, tecnicamente presa a um modelo de exploração rotineiro e fechado às inovações. Mas os processos do Desembargo do Paço mostram como por todo o Alentejo, e não só na agricultura, os escravos fizeram valer os seus interesses, o que empresta à região um interesse particular pela investigação sobre a abolição da escravatura depois das iniciativas pombalinas.

30Laurinda Abreu, com o trabalho sobre Um sistema antigo num regime novo: permanências e mudanças nas políticas de assistência e saúde (1780-1840). O caso do Alentejo, e partindo da proposta de reforma do sistema de assistência pública português de D. Rodrigo de Sousa Coutinho (Discurso contra a mendicidade) e da prática política de Diogo Inácio de Pina Manique, analisa o alcance da modernidade e a resistência das tradições no campo da assistência e saúde pública. Se ambos os políticos expressam opiniões comuns quanto às causas do atraso português, os propósitos são antagónicos. Se Pina Manique desenvolveu a sua acção no quadro de uma medicalpolice (Johann Peter Frank), D. Rodrigo de Sousa Coutinho, no seu Discurso contra a mendicidade propôs um programa do sistema assistencial fundado na reforma da sociedade (tolerância religiosa, revisão do código penal, melhor gestão dos recursos).

31No que respeita ao Alentejo, embora a autora comece por reconhecer a falta de estudos sobre as políticas assistenciais e de saúde, o certo é que, nos finais do século XIX, as misericórdias e os seus hospitais continuavam a ser os principais detentores de recursos de saúde e bem-estar no distrito de Évora. A misericórdia de Viana do Alentejo por exemplo, continuava a distribuir esmolas e a dar refeições aos inválidos, presos e pobres, a cuidar dos expostos e a prestar assistência médica domiciliária aos mais carenciados, confirmando a persistência de práticas caritativas e assistenciais de longa duração. No entanto, esta persistência de modelos centenários não significa a negação de uma modernização no sistema de assistência e saúde. Se bem que no Alentejo os estudos que estão a ser desenvolvidos para o período moderno permitam questionar algumas representações que a historiografia moderna tem vindo a repetir em relação, por exemplo, à vagabundagem, ao crime e à delinquência. Estes fenómenos que são identificados com a região têm que ser lidos no interior dos quadros assistenciais que permitem estabelecer uma correlação entre os movimentos migratórios do Alentejo para fora da região e os de sentido contrário com vista a repor a mão-de-obra perdida e onde se recrutariam os criminosos e delinquentes.

32O autor destas linhas, no texto sobre Os Conventos de Religiosas no Alentejo entre a Revolução e a Regeneração (1820-1858), depois de contextualizar os ambientes políticos do movimento regalista, analisar o debate parlamentar depois da revolução liberal e as medidas tomadas para a extinção das ordens regulares, procedeu ao balanço dos conventos de religiosas no Alentejo. Já em meados do século XVIII, por terem crescido em número e noviças, começaram a criar uma situação insustentável. O Papa Bento XIV expedia uma bula (1756), expressamente dedicada aos conventos de freiras, onde outorgava enormes poderes às autoridades ordinárias da Igreja e ao monarca para procederem à redução dos conventos, à restauração da ordem e ao pagamento das dívidas e desagravamentos através da união, incorporação e supressão dos institutos. Até ao final do consulado pombalino foram suprimidos 28 conventos e, entre 1778 e 1792, foram extintos mais 47. No primeiro ano da legislatura vintista existiam 141 conventos e 2.851 freiras e a secularização das freiras animou o debate político e provocou fracturas parlamentares entre os que alinhavam por posições radicais e os que defendiam ideias conservadoras e tradicionalistas. O texto da reforma seria aprovado no dia 18 de Outubro de 1822.

33Terminada a guerra civil foi decretada a extinção das ordens regulares (30 de Maio de 1834) que não abrangeu, contudo, os conventos das religiosas. Na década de 40 foram feitas várias propostas ao parlamento para se averiguar as suas situações até que seria aprovada uma proposta de lei destinada à supressão e união dos conventos de religiosas no Reino e Ilhas Adjacentes que não tivessem condições para subsistir (1857). A situação tinha, de facto, mudado drasticamente desde a revolução liberal na medida em que, embora o número de conventos não tenha diminuído muito, passando de 141 para 117 (menos cerca de 18%), o total de freiras baixou 62%, isto é, desceu de 2.851 para 1.092 freiras e os rendimentos sofreram uma baixa de 34%. O número de religiosas por convento era, agora, de nove freiras, menos de metade. Quanto ao Alentejo, o número de freiras baixou para 217, menos 65%, acompanhando a descida geral. Os detalhes por distrito vão referidos nos apêndices do estudo.

34Por fim, um agradecimento a todos os autores que contribuíram com os seus trabalhos para enriquecer a história do Alentejo e que passam a vincular, por esta forma, a organização deste livro.

Notes

1 Ver Michel Foucault, Dits et Écrits (1976-1979), Paris, Gallimard, 1978 e as versões em português de Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979 e Vigiar e Punir, Petrópolis, Editora Vozes, 1977.

2 Para a reconstituição deste universo mental ver António Manuel Hespanha, “Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos histórico-antropológicos da família na época moderna”, Análise Social, Lisboa, n.o 123/124, I (1993), pp. 951-974 ou, ainda, em “Fundamentos Antropológicos da Família de Antigo Regime: os Sentimentos Familiares”, História de Portugal, direcção de José Matoso, 4.° volume, O Antigo Regime (1620-1807), op. cit., pp. 273-279.

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