Política Externa e Política de Defesa: do Sidonismo à Ditadura Militar
Foreign Policy and Defence Policy: from Sidonismo to the Military Dictatorship
p. 83-100
Résumés
O pós-sidonismo constituiu umas das etapas mais dramáticas da história contemporânea portuguesa. As elites republicanas mostraram-se incapazes para resolver o problema da escassez económica que sobreveio à I Grande Guerra, dentro de um quadro político democrático e parlamentar. A frágil base institucional aprofundou o défice de ordem cívica e impossibilitou a reconstrução económica e financeira.
Os resultados obtidos com a intervenção de Portugal na I Guerra Mundial estiveram aquém das expectativas criadas, bem como os proveitos obtidos na Conferência de Paz. O reconhecimento externo da política republicana não foi de molde a habilitar o país com os meios económicos, financeiros e técnicos conducentes à sua modernização e, por extensão, ao desenvolvimento das colónias, sua opção estratégica fundamental.
Enredada numa teia de instabilidade social e política, a nova República velha viu-se na obrigação de privilegiar uma política de defesa voltada para a manutenção da ordem cívica, arredando para um futuro incerto a construção do Império Africano.
The period following sidonismo (the government of Sidónio Pais) is one of the most dramatic in Portuguese contemporary history. Republican elites demonstrated themselves incapable of resolving within a democratic and parliamentary political framework the problem of economic shortages during the First World War. The fragility of the republican institutional basis led to civil unrest and made economic and financial reconstruction impossible.
The results deriving from Portugal’s intervention in the First World War and the benefits achieved at the Peace Conference fell short of expectations which had been created. Recognition abroad of the republican regime did not provide the economic, financial and technical means either for the modernisation of the country or, by implication, for the development of the colonies, Portugal’s most important strategic trump card.
Caught up in a web of social and political instability, the new Republic was forced to pursue a defence policy directed towards the maintenance of civil order, postponing the construction of the African Empire to an uncertain future.
Texte intégral
1. O estado do problema na historiografia portuguesa
1Não abundam os estudos historiográficos sobre o período que medeia entre o fim da I Grande Guerra e o advento da Ditadura Militar. Quando integrado nos estudos mais gerais sobre a I República, o final do regime é normalmente tratado como um período de degenerescência, logo pouco interessante e até inoportuno, porque ofusca a obra republicana da primeira fase. Por outro lado, quando é estudado como antecedente do 28 de Maio de 1926, também não surge como objecto independente de estudo. Merecem, no entanto, especial relevo os estudos de Oliveira Marques sobre a I República, numa perspectiva estrutural, de António J. Telo sobre a “Queda e Decadência da República” e de Rui Ramos – “A Segunda Fundação”, História de Portugal, vol. VI (sob dir. de José Mattoso).
2O problema historiográfico adquire mais acuidade quando nos reportamos à história da política externa e da política de defesa para o período em causa. A historiografia tradicional tem tido dificuldade em abandonar o paradigma nacionalista, centrado nos actos heróicos dos portugueses e na sua alegada capacidade para dirigir uma política autónoma, ignorando a importância decisiva do sistema internacional e das relações de força em que o país se integra. Por outro lado, política externa e política de defesa constituem assuntos de estudo vistos em separado e não como um objecto mais vasto que decorre da estratégia nacional, abertamente definida ou apenas assumida. A política externa é ainda muitas vezes reduzida à acção diplomática e a política de defesa restringida à sua componente estritamente militar.
3No domínio da política de defesa, continuam, por isso, a predominar estudos de história militar, no sentido restrito do termo, ou articulados com a componente política. O facto de os militares terem sido chamados a desempenhar um papel decisivo na evolução do regime republicano e na instauração da Ditadura Militar tem feito surgir um importante filão de estudos sobre a função político-militar das forças armadas. Assinalem-se, neste domínio, os estudos de Maria Carrilho, Forças Armadas e Poder Político em Portugal no século XX; de J. Medeiros Ferreira, O Comportamento político dos militares. Forças armadas e regimes políticos em Portugal no séc. XX; de António J. Telo, “A República e o Exército”, in História Contemporânea de Portugal, tomo II, dir. de João Medina, e ainda os estudos conjuntos luso-espanhóis, resultantes das VI Jornadas de Estudo, “Fuerzas Armadas y poder politico en el siglo XX de Portugal y España” (1994).
4Numa aproximação precisa ao tema e numa perspectiva mais integrada e global da política externa e da política de defesa, para o período em causa, deverão realçar-se o trabalho conjunto de António J. Telo e Hipólito de la Torre Gómez, “Portugal e Espanha nos sistemas internacionais contemporâneos”, e o de Nuno Severiano Teixeira, “A Política Externa, 1890-1986” (in Portugal Contemporâneo, sequitur, 2000). No domínio particular da participação portuguesa na Conferência de Paz, assinale-se o trabalho de J. Medeiros Ferreira, “Portugal na Conferência de Paz – Paris 1919”.
5Se os estudos historiográficos sobre o tema não são abundantes, menos o são as definições teóricas dos responsáveis da altura por essas políticas. Assoberbados por problemas prementes de sobrevivência e de ordem pública, a reconstrução do seu pensamento sobre política externa e política de defesa deverá ser percebida através de vagas referências em programas de governo e debates parlamentares e, seguramente, através da praxis política.
2. Portugal no sistema internacional contemporâneo – coordenadas estruturais e conjunturais
6Antes de entrar directamente no tratamento das opções estratégicas nacionais e na política externa e de defesa do país no período considerado, impõem-se algumas palavras sobre o sistema internacional que condiciona as relações e a política externa e de defesa de Portugal, no período pós-guerra.
7O desenrolar, por quatro longos anos, da I Grande Guerra, como um fenómeno global e mundial, desenhou um inesperado mundo novo, quer em termos de sistema internacional, quer em termos das relações de força e das alianças que se forjam entre os antigos poderes dominantes e os novos poderes emergentes.
8No imediato pós-guerra, no entanto, o sistema internacional traduz-se por linhas de força que tinham sido estabelecidas nos finais do século XIX, quando a Inglaterra se viu obrigada a abandonar o “esplêndido isolamento” para dar lugar ao poder emergente (económico e militar) da Alemanha e dos Estados Unidos, mas principalmente da primeira.
9O novo sistema multipolar tinha desencadeado a inversão das alianças tradicionais das grandes potências, com a Inglaterra a procurar obter o apoio da França para combater os impérios centrais. Nestas circunstâncias, Portugal (e toda a Península Ibérica) adquiriu uma maior visibilidade e importância geoestratégica. Na Península Ibérica, em função do interesse acrescido dos alemães pelo Mediterrâneo, Norte de África e ilhas atlânticas, como ficou demonstrado pelas crises do início do séc. XX nessa região. Na África, Portugal é detentor de um dos mais vastos espaços coloniais europeus, faltando-lhe, no entanto, capacidade de ocupação efectiva do território, por falta de capitais, técnicas e organização. São estas contingências que mais expõem Portugal aos apetites das grandes potências, numa altura em que ainda havia que fixar muitos quilómetros de fronteira. Um exemplo desse facto são os conflitos fronteiriços de 1914-1915, com os alemães, em Angola e Moçambique.
10Durante a paz armada, e mesmo já em pleno conflito, as grandes potências procuraram sempre assegurar a neutralidade dos países ibéricos, por razões estratégicas, mas também porque lhes parecia facilitada a neutralidade colaborante, devido ao desnível económico e concomitante dependência externa desses países. No caso português, o império africano dependia inteiramente de forças externas, designadamente da Inglaterra. A anglofobia portuguesa, desenvolvida com o Ultimato, desapareceu com os acordos anglo-lusos de 1891-1899. No entanto, a transigência da Inglaterra nos acordos anglo-alemães de 1898 e 1912-1913 que previam a possível entrega de colónias portuguesas em troca de crédito externo, mostrou quão débeis eram esses acordos de 1891-1899. O sentimento de solidão do pequeno país que era Portugal na grande Ibéria intensificou-se com a aproximação da Inglaterra à Espanha, em 1911-1912, na altura da segunda crise de Marrocos. Para maior complicação, a tradicional aliada leva cerca de um ano para reconhecer o novo regime republicano.
11Sem um grande apoio, um pequeno país periférico e relativamente atrasado, com um espaço territorial enorme e descontínuo, dificilmente poderia sobreviver. Nas vésperas da I Grande Guerra, as elites portuguesas não tinham dúvidas sobre esse facto. Dividiam-se, no entanto, na oportunidade de hostilizar o grande poder alemão. A Alemanha era, em 1913, o segundo parceiro comercial de Portugal. Com base no cacau de S. Tomé e em frutas secas e vinhos, as exportações de Portugal para a Alemanha eram superiores, em valor, às exportações para a Inglaterra. Sidónio Pais, embaixador em Berlim, resistirá, tanto quanto lhe foi possível, à política de hostilização preconizada a partir dos sectores guerristas governamentais portugueses [Vide Luís Farinha, Sidónio Pais, Embaixador em Berlim, tese apresentada ao Seminário de Política Externa e Relações Internacionais, dir. de J. Medeiros Ferreira, F.C.S.H., 1994 (pol.)].
12Na Península Ibérica, a importância crescente da Espanha era vista pelas elites portuguesas como uma ameaça interna e externa da I República e do próprio país. Para além de uma concorrência comercial imbatível (pela dimensão do seu mercado interno) nos mercados do norte da Europa, a Espanha (ou parte das suas elites) alimentava desígnios anexionistas e o regime prestou facilidades aos monárquicos portugueses nas suas tentativas restauracionistas. Nas vésperas da I Grande Guerra, a Espanha procurou mesmo luz verde junto do Foreign Office para actuar em Portugal em troca da sua beligerância, caso a situação interna do país se tornasse intolerável (Vide Hipólito de la Torre Gómez, Na Encruzilhada da Grande Guerra, Portugal-Espanha, 1913-1919, pp. 148 e seg.).
13O conflito europeu de 1914-1918 não alterou substancialmente o quadro das relações de Portugal no sistema internacional. Apesar de ter conservado o império africano, (que tinha sido um objectivo da intervenção), persistiam os perigos decorrentes da emergência de novos poderes locais, como a União Sul Africana, perante o desenvolvimento adiado das colónias. Na Península Ibérica, o intervencionismo bélico português não tinha sido suficiente para garantir relações privilegiadas de Portugal no seio dos Aliados. Pelo contrário, a Espanha conseguia mesmo obter um lugar no Conselho Executivo da SDN. Esta era uma situação decorrente, antes de mais, da perda de hegemonia da Inglaterra – a tradicional aliada – e da emergência dos E.U.A., o que complexificava sobremaneira a relação de forças existente. Um terceiro objectivo dos intervencionistas – o prestígio nacional e internacional do país e do regime – tinha igualmente saído defraudado. A participação na guerra, feita sem preparação e com escassos meios, tinha humilhado as forças armadas e o país. A reconstrução económica, pelo recurso a empréstimos externos e aos fundos das indemnizações e reparações de guerra, tornou-se, assim, mais difícil se não impossível.
14A guerra acrescentou, no entanto, o interesse externo pelas colónias portuguesas e pelos seus espaços atlânticos, principalmente os Açores, que, de ora em diante, irão servir de moeda de troca com as grandes potências marítimas, pela sua importância geoestratégica. E isto era tanto mais perturbador, quanto é certo que a mesma guerra havia também demonstrado ao país e ao mundo as debilidades de um poder periférico e militarmente pouco evoluído, com poucos meios de defesa para a prossecução de uma política imperial, quer em África, quer no Atlântico. Pusera, portanto, em evidência a dependência externa de Portugal em relação às grandes potências (em particular a Inglaterra), tanto em termos político-militares como em matéria financeira e económica.
15O recurso a uma estratégia directa, pelo uso de grandes arsenais militares, deslocava o campo das grandes decisões para os países industrialmente evoluídos, possuidores de técnicas e armamentos superiores. Prejudicava, por isso, os pequenos países, como Portugal, que sempre tinham singrado pelo recurso a uma estratégia indirecta, baseada na acção política de valorização dos recursos geoestratégicos e das contrapartidas a obter a partir dos enormes recursos territoriais e marítimos, no Atlântico e em África. Deste ponto de vista, a guerra acentuou ainda mais as diferenças qualitativas dos meios e recursos disponíveis, com o lançamento de novos armamentos e de novos sistemas de defesa, como, por exemplo, a aeronáutica, um sector que estaria destinado a fornecer enormes possibilidades de desenvolvimento em tempo de paz. Também aqui Portugal não pôde beneficiar dessas alterações. A guerra tinha exposto, de uma forma mais evidente, as fraquezas técnicas e organizacionais do país, em matéria de defesa, tanto no domínio técnico, como no domínio humano. Ao mesmo tempo, tinha tornado evidente que o país não possuía meios humanos e materiais para executar uma ocupação efectiva das colónias africanas, o que, conjugado com o défice de defesa, tornava a estratégia africanista portuguesa de difícil consecução.
16Por fim, o internacionalismo soviético perturba o equilíbrio político na Europa e a utopia comunista constitui um atractivo poderoso para o proletariado europeu. Entre 1918 e 1926, mais de uma dezena de afloramentos revolucionários bolchevizantes assolam o velho continente, da Estónia à Bulgária, da Alemanha à Hungria e à Itália. A revelha revolução anarquista adquire agora uma coloração bolchevista e torna mais imediato o receio de uma revolução social antiburguesa. Embora em grau inferior e mais longínquo, em Portugal não deixa de ser evidente o efeito dessa alteração revolucionária, em particular entre 1919 e 1923, o período dos anos loucos portugueses.
3. Opções estratégicas nacionais
17Portugal tinha entrado na I Guerra Mundial com três objectivos principais, a saber: a defesa das colónias, a defesa perante o “perigo espanhol”, com o reconhecimento internacional do país no concerto das nações, e a consolidação interna do regime republicano (Vide, a este propósito, Nuno Severiano Teixeira, A Política Externa, 1890-1986, sequitur, pp. 69 e seg.). Destes três objectivos, só a manutenção territorial das colónias foi conseguida, precisamente a opção estratégica estrutural da política externa portuguesa desde o Ultimato de 1890 e que irá manter-se ainda durante muitos anos.
18É uma opção estratégica que atravessa o tecido nacional e permanece para além da alteração dos regimes políticos. Acreditava-se que, perante o perigo de absorção económica e política do país na Grande Ibéria, só a manutenção e desenvolvimento de um império colonial africano poderia garantir a independência nacional. Por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, considerava-se que as colónias podiam garantir o abastecimento da metrópole. Álvaro de Castro, um dos governadores de Moçambique, afirmava que: “as colónias desenvolvidas acabavam de vez com a fome em Portugal” (Vide, Discurso de apresentação do governo de Álvaro de Castro no Parlamento – 22/11/1920). Em segundo lugar, porque as colónias permitiam atrair os interesses das grandes potências, através de uma política de concessões e de atracção de capitais, indispensáveis ao desenvolvimento colonial. Mas, principalmente, garantiam a permanência de Portugal na alta roda da política internacional. Possibilitavam, nomeadamente, o reforço da aliança inglesa e dos acordos de defesa dos espaços coloniais.
19Por essa razão, a aliança inglesa continuava a ser a linha estratégica orientadora da política externa portuguesa do pós-guerra. Porém, nesta altura, acresciam outras razões fortes para justificar esta opção estratégica. Portugal procurava na Inglaterra o aliado que pudesse garantir os “incontestáveis direitos da paz”. E esses direitos passavam pela representatividade privilegiada da Península Ibérica na SDN, pelo protelamento do pagamento da dívida de guerra (ou mesmo pelo seu não-pagamento), pela obtenção de fundos financeiros derivados das reparações e das indemnizações, pela prioridade de Portugal na obtenção desses fundos e pela transferência tecnológica resultante da incorporação de navios na Marinha Mercante e de armamento e equipamento nas forças armadas (Vide J. Medeiros Ferreira, Portugal na Conferência de Paz, pp. 74 e seg.).
20Se as duas opções estratégicas anteriores eram consensuais, já a transferência de muitos dos objectivos nacionais para uma instância internacional de decisão, como a SDN, parecem mais derivar da teimosia de Afonso Costa e do partido que o apoiava. Contudo, não deixou de ser uma opção estratégica fundamental, já que dela parecia depender a resolução de muitos dos problemas portugueses. As promessas criadas com a criação de um organismo supranacional de regulação diplomática de interesses e conflitos parecia uma ideia atraente para uma pequena potência semiperiférica como Portugal. Nesta altura, mantinham-se intactos muitos dos objectivos pretendidos pela intervenção na guerra. Como afirmava João Chagas, Portugal entrou na guerra “para que o mau vizinho que é a Espanha renunciasse de vez às suas intrigas contra nós, para que a nossa velha aliada, a Inglaterra, deixasse de ver em nós o seu pupilo histórico (...), finalmente para que a nossa solidariedade na obra do sacrifício se traduzisse, aos olhos do mundo, por um acréscimo de prestígio. Numa palavra, nós entrámos na guerra para ter um lugar que nos faltava entre as nações” (Cit. in J. Medeiros Ferreira, op. cit., p. 49). Ora, a disputa por Afonso Costa de um lugar no Conselho Executivo da SDN deverá entender-se exactamente com esse objectivo expresso – o de ganhar um lugar na Península Ibérica e no concerto das nações do pós-guerra. Além do mais, a delegação portuguesa pretendia assegurar a primazia da obtenção de fundos financeiros e de abastecimentos de que o país se encontrava absolutamente carenciado. Aliás, sem esses fundos, tornava-se completamente impossível a reconstrução económica do país e a manutenção da ordem cívica e, logo, a consolidação do próprio regime republicano democrático.
21O recurso a fundos financeiros, obtidos pelo concurso das reparações e indemnizações, ou pela obtenção de um grande empréstimo externo, passou, igualmente, a ser outro dos desígnios nacionais do pós-guerra. Na verdade, esses fundos eram não só urgentes para a obtenção de subsistências no exterior, mas também para executar muitas das reformas políticas indispensáveis no país. Refiram-se, como prioritárias, a reforma das forças armadas, a reforma descentralizadora e desenvolvimentista das colónias, as reformas do ensino e da segurança social, para além de uma política de fomento nacional centrada no desenvolvimento das infra-estruturas de comunicações e transportes.
22A incapacidade para aumentar os fundos que garantam um acréscimo das despesas sociais, nas áreas do fomento e da assistência social, vai protelando a modernização da sociedade e engrossando o caudal dos movimentos sociais contestatários que desafiam as forças da ordem. A instabilidade política crónica deste período, com a sucessão de quase três dezenas de governos, surge como um dos principais problemas a resolver. Assim, garantir a ordem cívica passou a ser um dos objectivos estratégicos nacionais, quer como forma de sobrevivência das instituições democráticas e do próprio regime, quer como condição básica da reconstrução e do desenvolvimento económico e até do reconhecimento internacional da República.
23Para assegurar a ordem cívica, a nova República velha voltava a equacionar o problema da criação de um braço armado para garantir a sua defesa, na linha da reforma militar de 1911. Seria uma força capaz não só de defender as instituições republicanas, mas também de educar a população dentro dos objectivos do novo regime. A situação era, porém, mais complicada que em 1911. O numeroso corpo militar que participara na guerra exigia um emagrecimento substancial dos efectivos e uma reforma dos meios humanos, com novo apetrechamento técnico. Em alternativa, a República poderia optar pela criação de uma nova força de defesa do regime, correndo o risco de uma eventual conflitualidade entre os dois corpos. As tensões sociais crescentes, com afloramentos revolucionários anarquistas e bolchevizantes, exigiam, no entanto, a criação de forças de segurança eficazes, indispensáveis à aplicação da violência mínima e necessária à regulação social, sob pena de poder assistir-se à subversão do regime republicano.
24Portanto, Portugal apostava fortemente na aliança inglesa e na SDN para garantir a reconstrução económica do país, quer na metrópole, quer nas colónias, sua principal opção estratégica. De resto, a própria manutenção da ordem cívica republicana e a definição de uma política de defesa estavam dependentes da reconstrução económica, sendo o inverso também verdadeiro.
4. Política Externa e Política de Defesa
25As quatro legislaturas deste período deram origem a quase três dezenas de governos oriundos, maioritariamente, do Partido Democrático ou das suas dissidências alvarista e esquerdista, mas também do campo liberal e nacionalista. Nos seus programas políticos, sem distinções partidárias, avolumam-se quatro ordens de problemas: os relativos à administração e colonização do império; os problemas associados à reorganização das forças da ordem, em especial das forças armadas; os problemas relativos à crise económica e financeira e à reconstrução do país e, por último, à cabeça de todos eles, o problema político.
26Por outras palavras, aos políticos de todos os matizes preocupava a instabilidade crónica do regime e as medidas para lhe pôr cobro. As correcções constitucionais do pós-guerra tinham sido ineficazes para corrigir a ineficiência do parlamentarismo republicano, que continuava condicionado por um sistema eleitoral muito restritivo, sujeito a uma abstenção crescente e incapaz de fazer mais que limitar-se a fornecer os “meios de governo”, sem ser capaz de exercer uma verdadeira fiscalização do poder executivo, que, sem estabilidade política e orçamental, se limitava a gerir o país em sistema de maior ou menor grau ditatorial. A quebra de autoridade do Presidente da República e do governo que dele dependia contribuiu para fragilizar as estruturas do Estado e descredibilizar as suas medidas políticas. A incapacidade para promover uma sólida e frutuosa reforma fiscal (apesar das inúmeras tentativas de um e outro campo político) é talvez um dos melhores exemplos do défice de ordem cívica que campeava na República. O clima generalizado de desordem social, com manifestações constantes, em forma de revoltas, pronunciamentos militares, perseguições, ataques bombistas, mostrava também até que ponto o Estado se mostrava incapaz de manter a ordem cívica, ou seja, de impor relações sociais organizadas pelo primado da lei, próprias de um Estado de direito.
27Esta manifesta incapacidade governativa nunca impediu, no entanto, que os sucessivos governos encarassem como prioritária a estabilidade das instituições, o reforço da autoridade, da ordem e da disciplina e a pacificação nacional, como formas de retomar o caminho da normalidade constitucional e garantir a defesa do regime democrático. A maioria dos governos deste período elegeu para lema de orientação política a máxima de Ordem e Trabalho. Seria, neste caso, interessante verificar as coerências/incoerências entre os programas governamentais e a prática política, aliás sempre entrecortada e de curta duração. Esta é, contudo, uma matéria que releva de uma análise mais fina, incompatível com os objectivos e âmbito deste trabalho.
28Para garantir a ordem cívica e a defesa do regime, os políticos foram atraindo, em número crescente, o apoio dos militares, que, em momentos críticos do regime, foram incumbidos da defesa da ordem pública e assimilados à função de polícias do regime ou até de suportes concretos de uma determinada solução governamental. É o que acontece, por exemplo, em Junho de 1919, com a nomeação do jovem turco, general Sá Cardoso, para a chefia de um governo onde era ministro da Guerra o seu companheiro (também jovem turco) Hélder Ribeiro e cujo objectivo era o restabelecimento da ordem pública, fortemente abalada pelo surto grevista que, tendo começado pela CUF, de Alfredo da Silva, se estendeu pelos ferroviários, paralisando as comunicações, de Norte a Sul do país, por cerca de dois meses. Pressionados pela oposição radical no Parlamento e por uma opinião pública incomodada e amedrontada, os Democráticos caucionam, através do governo de Sá Cardoso, uma política de repressão feroz dos sindicalistas, começando por substituir os grevistas, no seu posto de trabalho, pela mobilização da tropa. Como alguns grevistas tivessem ameaçado com sabotagens e explosão dos comboios, o ministro da Guerra Hélder Ribeiro determinou que “em frente de cada comboio fosse colocado um vagon com grevistas agrilhoados, como garantia de segurança para o público, cujos interesses lhe cumpre defender”. Instaurava-se, assim, o tristemente célebre “Vagon Fantasma”, que, durante o mês de Julho, transportaria pelo país fora dezenas de grevistas presos, debaixo da guarda do Exército. Esta função policial do Exército era facilitada pela existência de um numeroso corpo miliciano que não havia sido desmobilizado a seguir à guerra e que alinhava ao lado do campo democrático, como um bastião da desejada “nação em armas” que o partido do governo propunha para a reforma das forças armadas.
29A política republicana de atracção dos militares para o campo da governação tinha, entre outros, dois objectivos principais: por um lado, pretendia prestigiar os soldados das campanhas de África e da Flandres, que se declaravam humilhados com o tratamento que a República lhes tinha dado, depois de lhes exigir uma intervenção na guerra, sem meios materiais e humanos adequados. A revolta latente exprime-a o general Gomes da Costa, quando se refere aos numerosos sacrificados da guerra nas colónias: “De bom sangue eram eles, para assim fazerem o que fizeram: – o deixar-se matar” (Gomes da Costa, A Guerra nas Colónias, p. 250). Atraindo esses militares para o campo político, a República pensava poder desmobilizá-los dos possíveis e mais que previsíveis pronunciamentos e revoltas de caserna e, principalmente, mobilizá-los para os seus objectivos políticos. Esta mobilização torna-se mais evidente e efectiva depois das alterações constitucionais de 1919, que deram ao Presidente da República a capacidade de dissolução do Parlamento. Daí em diante, são comuns as tentativas de forças políticas, que, com a mobilização de certas unidades militares, procuram levar o Presidente da República a dissolver as Câmaras e a inverter a situação em seu favor. Foi o que aconteceu, a título de exemplo, durante a experiência nacionalista de Ginestal Machado, em finais do ano de 1923. Com o apoio dos militares conservadores das unidades do cimo do Parque Eduardo VII (Raul Esteves e outros) e do general Carmona no ministério da Guerra, o governo nacionalista procurou arrancar a Teixeira Gomes a dissolução do Parlamento e a promoção de novas eleições de que esperava sair vencedor. Talvez o exemplo mais acabado desta mobilização das forças militares e de segurança seja, no entanto, a efémera experiência governativa do tenente-coronel Liberato Pinto, chefe da recém-criada e poderosa GNR, no primeiro trimestre de 1921. Com o reforço da GNR, os democráticos julgavam poder conter o insurreccionalismo do Exército. Contudo, é um tiro que lhes sai pela culatra. Com a queda do governo de Liberato Pinto, este cai em desgraça e as forças da GNR, que chefiava, começaram a conspirar contra a situação, com o pretexto de que o partido do governo tinha dado oportunidade aos liberais para governarem e ganharem as eleições de Agosto de 1921, favorecendo, assim, a derrota da esquerda republicana. A conspiração culmina, como é sabido, na trágica “Noite Sangrenta” de 19 de Outubro de 1921.
30O aliciamento dos militares para a política foi muito facilitado, a partir de 1923, por duas ordens de motivos: em primeiro lugar, porque ansiavam por uma reforma das forças armadas que repusesse a instituição no lugar prestigiado que gozava nos primeiros anos do século. Em segundo lugar, porque se tornam frequentes os apelos da sociedade civil para que intervenham e ponham ordem no regime. Em Dezembro de 1923, na Sociedade de Geografia de Lisboa, Cunha Leal – uma jovem estrela do universo republicano nacionalista – apelava deste modo à nação: “Salvemos a Nação com os políticos honestos, (...) apoiados na única força organizada que existe entre nós – o Exército!” (Cunha Leal, Eu, os Políticos e a Nação, p. 186).
31Impossibilitados por défices orçamentais crescentes (os quais recomendariam um emagrecimento do próprio Estado), os sucessivos governos da nova República velha foram incapazes de levar a cabo a reforma das forças armadas que se exigia, tendo em conta não só a sua revalorização, mas também a definição e organização de um aparelho de defesa, tanto na metrópole, como nas colónias.
32A participação na I Guerra Mundial tinha estilhaçado o quadro relativamente pequeno, equilibrado e prestigiado das forças armadas. Os efectivos triplicaram no seu conjunto e, para fazer face ao défice de quadros, um numeroso corpo de oficiais milicianos é incorporado no CEP. Com o fim da guerra, a sua desmobilização torna-se difícil, sendo o seu efectivo de cerca de um milhar e meio, em 1922. Em 1925, há ainda um oficial para cada 4 soldados (Telo, A República e o Exército, p. 294). Por outro lado, o contacto do militar do CEP com os campos de guerra tinha-o levado a uma aprendizagem forçada de técnicas e organização militar novas, que não dominava, mas que o tornaram mais exigente quando chegou a Portugal. No final da guerra, as forças armadas exigiam um cuidadoso redimensionamento, com redução de quadros e formação militar adequada dos efectivos. Necessitavam, igualmente, de uma modernização que passava, inevitavelmente, pela reorganização das armas e pelo rearmamento dos três corpos existentes: Exército, Marinha e Aeronáutica. Mas precisavam ainda de uma reorganização que os prestigiasse, através de remunerações condignas e do restabelecimento da autoridade, nomeadamente da hierarquia militar, muito desfeita pela promoção político-militar do corpo de milicianos e pela intromissão, na cadeia de comando dos quartéis, de republicanos das baixas patentes e mesmo do corpo de sargentos, muito afectos à República.
33Que fizeram os governos da nova República velha? Por decreto de Maio de 1919, antevendo alterações graves da ordem pública, o governo de Domingos Pereira reforça o número de efectivos da GNR e reequipa a força com baterias de artilharia e metralhadoras pesadas. Era um corpo paramilitar que rivalizava com o próprio Exército. As medidas tomadas serão corrigidas em Maio de 1922, por novo decreto do governo de António Maria da Silva, que reduz os efectivos de Cavalaria e de Infantaria da GNR, política que já havia sido encetada no governo anterior de Cunha Leal. Durante estes anos, a República e os seus responsáveis balanceiam-se entre duas políticas de defesa: uma centrada sobre a GNR, a guarda pretoriana do regime, e outra apoiada nos militares e no poder de atracção que sabiam poder exercer sobre a instituição. Destas indecisões resultou o enfraquecimento da República, porque um e outro dos dispositivos de defesa se hão-de revoltar, em momentos diferentes, contra a própria República. Também o problema dos quadros milicianos é resolvido a contragosto das hierarquias militares. Em Novembro de 1923, serão autorizados a permanecer nas fileiras do Exército, depois de frequentarem cursos adequados. Permanece, igualmente, a ideia da “nação em armas”, implantada com a reforma das forças armadas de 1911, embora muito diminuída pela possibilidade de remissão dos mancebos (Telo, idem, p. 293).
34O problema do reequipamento das forças armadas ficou reduzido à esperança, que se revelou vã, de Portugal poder vir a obter o armamento através da redistribuição do material de guerra alemão ou da aquisição dos despojos de guerra, a baixo custo, através da reconversão das reparações e das indemnizações de guerra. Porém, como afirma J. Medeiros Ferreira, “Nem a República, nem o Exército vêem consagradas a glória e a importância interna do seu esforço militar” (Op. cit., p. 74).
35Descontentes com a situação, os militares rebelam-se contra o regime republicano, dificultando-lhe a vida com uma resistência passiva que, a pouco e pouco, se revela em revoltas e pronunciamentos militares. Como considera Jorge Botelho Moniz – um dos jovens militares rebeldes dos últimos anos do regime – “O estado de desprezo, miséria e aviltamento [da instituição militar] justificaria mil pronunciamentos pela incúria dos governos com o mais poderoso elemento de garantia da Soberania Nacional, da Paz Interna e do respeito Externo” (Moniz, O 18 de Abril, p. 27). Entre 1923 e 1926, ocorrem sucessivos golpes e pronunciamentos militares, com destaque para o 18 de Abril de 1925. Aqui, pela primeira vez, os militares abandonam a parceria com os civis e assumem um papel novo: o de mudarem os processos governativos através de um “movimento de força pública destinado a impor um governo enérgico”, ou seja, o de implantarem uma ditadura militar capaz de manter a ordem pública, de combater a corrupção e de dar estabilidade ao poder político. Os objectivos expressos do 18 de Abril passavam por uma reorganização e saneamento do Exército, por uma moralização da vida pública, com justa actualização das receitas e aplicação expedita da justiça, pela alteração do sistema de representação política e pela valorização dos recursos nacionais por meio da iniciativa privada. Como se vê, é um reduzido programa político, mas que extravasa os quadros institucionais da República liberal e democrática, prevendo, designadamente, a subversão do regime parlamentar por formas novas de representação. O que se defende são novas soluções políticas – “uma ditadura forte, não contra os partidos, mas fora e acima deles” (Figueiredo, O pensamento político do Exército..., p. 45). Em 1925, o general Gomes da Costa afirmava: “... contra a aristocracia moderna (...) nós soldados de verdade (...) temos de investir até a destruirmos” (Costa, A Guerra nas Colónias..., p. 245).
36De bastião da ordem cívica republicana, as forças armadas preparavam-se agora para subverter o regime, alegando a necessidade de uma nova ordem política, de certo inspirada nos sucessos da Itália mussoliniana e da Espanha riverista. Tal como para os republicanos democráticos, também para os militares o primeiro objectivo da sua política de defesa se voltava para o interior do país, para a defesa da ordem cívica, embora com novos contornos políticos. Até aos grandes confrontos político-militares reviralhistas de 1927, esta é uma opção estratégica que não confronta, antes unifica, uma ampla maioria dos sectores militares mais activos da sociedade portuguesa.
37Um terceiro domínio da política externa e da política de defesa de Portugal centrava-se sobre a construção do império africano, opção estratégica fundamental do país e da República. O conceito de colonização decorrente do sistema dos Mandatos, instaurado com a Conferência de Paz, instituía novas e acrescidas obrigações à missão civilizadora dos portugueses, a qual devia ser exercida em benefício dos povos colonizados. Ainda mal tinha concluído as “campanhas de pacificação” – na verdade, essas campanhas perduram até 1920 e, nalguns casos, até 1930 – e já brutais pressões eram exercidas sobre a administração portuguesa das colónias africanas, em especial sobre o seu núcleo económico mais significativo: S. Tomé, Angola e Moçambique. Portugal integrava a Comissão dos Mandatos da SDN e só nesse âmbito internacional poderia garantir a defesa de um espaço tão vasto e descontínuo, com fronteiras ainda por demarcar, até pela manifesta inexistência de um exército colonial bem organizado e armado.
38Depois da recuperação do território de Kionga, que repôs a integridade territorial do império, as dificuldades maiores surgiram com as pretensões da Bélgica sobre o território de Cabinda e da recém-formada União da África do Sul sobre o território de Moçambique e, em particular, sobre o porto de Lourenço Marques. De todos os casos, o de Moçambique tornou-se o de mais complicada resolução. Moçambique dependia largamente das numerosas companhias, dotadas de poderes majestáticos, aí instaladas e da África do Sul, particularmente do Transval, ligado por linha férrea a Lourenço Marques. Smuts, primeiro-ministro da União e personalidade reconhecida internacionalmente, chegou a propor a integração de Moçambique na União Sul-Africana. O incidente levanta acesos debates no Congresso da República, como era de esperar, bem como o contrato celebrado pelo Alto-Comissário Brito Camacho com a Sena Sugar Estates, com o qual procurava contrariar a histórica dependência de Moçambique em relação à região do Rand (Vide Nuno Severiano Teixeira, “Colónias e colonização portuguesa na cena internacional (1885-1930)”, in História da Expansão Portuguesa (Dir. F. Bethencourt), C. de Leitores, 1998, vol. IV, p. 519).
39A partir de 1921, a República instala em Angola e Moçambique um sistema de Altos-Comissários, com ampla liberdade para promover o desenvolvimento e a “nacionalização” dos territórios. Pretendia-se substituir a ocupação militar, escassa e dispersa, por uma organização administrativa sistemática das duas colónias. Ao mesmo tempo, programava-se a construção de infra-estruturas e a exploração agrícola e mineira, como os meios que melhor poderiam defender as colónias dos apetites exteriores. Em Angola, Norton de Matos pugnava pela abolição do trabalho compelido e pela promoção de uma vasta colonização branca, projecto esse interrompido com o fim do sistema dos Altos-Comissários, a partir de 1924. Em 1925, a publicação do Relatório Ross, entregue à Comissão sobre Escravatura da SDN, em que se acusava os portugueses da prática de trabalho compelido (ou semiescravo), foi interpretada como mais uma peça da maquinação internacional para desapossar Portugal das suas colónias, em favor de potências sequiosas da expansão em África.
40Por fim, todo este edifício da política externa e da política de defesa carecia de uma atitude de grande empenhamento nas instâncias internacionais surgidas no pós-guerra: Conferência de Paz e Sociedade das Nações. A primeira delegação à Conferência de Paz, chefiada por Egas Moniz, inicia o seu trabalho num contexto atribulado da vida política da República, ainda sob o consulado de Sidónio. Do Presidente Canto e Castro recebe as primeiras indicações, na linha das que já obtivera de Sidónio: Portugal deveria dar prioridade à obtenção de indemnizações e reparações financeiras, em detrimento de outras pretensões, como as territoriais ou o rearmamento. Se possível, deveria mesmo insistir na prioridade das reparações sobre outros países (Vide Egas Moniz, Um ano de política, pp. 165 e seg.). Com Afonso Costa, assiste-se a uma reorientação da estratégia que preside à acção da delegação portuguesa. Logo em Março de 1919, o novo chefe da delegação apresenta a sua candidatura a um lugar no Conselho Executivo da SDN, não deixando, no entanto, de insistir na urgência das reparações e das indemnizações de guerra e na oportunidade de rearmamento das forças armadas portuguesas, bem como no reescalonamento da dívida de guerra de Portugal à Inglaterra. Afonso Costa dá, contudo, uma relevância maior aos objectivos políticos, numa linha de continuidade dos objectivos da intervenção na guerra, de que tinha sido o principal obreiro. A disputa de um lugar no Conselho Executivo da SDN, ou mesmo a candidatura aos mandatos nas ex-colónias alemãs são objectivos políticos de longo alcance, eventualmente demasiado ambiciosos para um país como Portugal, mas que ganham sentido na disputa de um lugar de prestígio para o país no novo concerto das nações e a que Portugal se acha com direito pelo enorme esforço de guerra empreendido. Se o país não tinha capacidade económica e militar para suster o “perigo espanhol”, então havia que transferir a regulação dos interesses e dos conflitos para as instâncias internacionais de decisão, como a SDN (J. Medeiros Ferreira, op.cit., p. 83).
41É duvidoso que os resultados obtidos pudessem ter sido muito diferentes daquilo que foram, mesmo se o regime republicano pudesse ter assistido, de forma conveniente, os seus delegados à Conferência de Paz, com um apoio técnico e político eficaz. Porém, como faltaram estabilidade governativa e orientações claras e decididas, os escassos resultados obtidos parecem directamente proporcionais aos poucos meios disponíveis. Apesar de tudo, a inclusão de Portugal no sistema multilateral de segurança e na Comissão dos Mandatos garante-lhe algum sucesso na difícil política ultramarina e na contenção do “perigo espanhol”. Já o mesmo se não pode dizer internamente. As compensações económicas e financeiras serão escassas e o país, que não perdoou aos guerristas a intervenção, muito menos está disposto a perdoar a ineficácia na obtenção dos direitos da paz.
5. Conclusões
42O Partido Republicano Português e o seu sucedâneo, o Partido Democrático, têm uma estratégia nacional que se clarifica em opções de política externa e de política de defesa, quando o PRP se acerca do poder, em 1910, e que se mantêm, no essencial, até ao declínio da I República.
43A crise de 1890, que permitira a refundação da ideia republicana em novos moldes, carregara-lhe no bojo o desígnio de uma nova era de regeneração nacional através da instauração da República. Os pais fundadores dessa República inscrevem-lhe na matriz a ideia da nação una, do Minho a Timor, e do sentido patriótico da sua defesa.
44Entre todas as opções estratégicas avultam três: a modernização do país e o seu desenvolvimento (económico, político, social), a reconstrução e consolidação das estruturas administrativas já existentes do império colonial e a consolidação do novo regime republicano, numa Europa hostil de monarquias, a começar pela vizinha Espanha.
45Para os Republicanos, estas eram três ideias que se casavam da melhor forma. O desenvolvimento económico e social do país e a sua independência estavam indissoluvelmente ligados ao desenvolvimento das colónias e estes dois à consolidação da República. Porém, era também um dado adquirido o facto de o país carecer de meios materiais e humanos para levar por diante um projecto de tal magnitude. Por tal facto, impunha-se uma política de alianças que permitisse a valorização geoestratégica e económica dos vastos espaços atlânticos e africanos, que Portugal podia usar como moeda de troca para atingir os objectivos nacionais que demandava. Por outras palavras, o país republicano deveria ser capaz de trilhar um estreito e resvalante caminho entre uma política de concessões (político-militares, económicas) feita em proveito das grandes potências e uma política de “nacionalização” das colónias, a qual esteve bem patente no primeiro governo-geral de Norton de Matos, em Angola, antes de 1915. Por razões históricas, mas também geoestratégicas, a República desde cedo optou pelo reforço da aliança inglesa na defesa dessa política externa, apesar das consideradas “traições” da Inglaterra, iminentes nos acordos anglo-germânicos de 1898 e 1912-1913. É certo que, no período anterior à guerra, o bloco republicano se dividiu também em matéria de política externa. A política diplomática de um Sidónio Pais em Berlim, (clara transposição do entendimento da direita republicana, designadamente a unionista), não só defende a não hostilização dos alemães em Angola, como mesmo defende uma política de abertura aos interesses germânicos nessa colónia.
46A intervenção de Portugal na I Grande Guerra, levada a cabo pelo governo de “União Sagrada”, reconstitui temporariamente o bloco político republicano e permite repor as opções estratégicas fundamentais da República, assentes numa política externa de defesa das colónias e da mobilização da “nação em armas”, consagrada na reforma das forças armadas de 1911.
47A desproporção entre os meios e os objectivos da guerra e os efeitos económicos e sociais do conflito empalideceram a política guerrista dos democráticos. A política intervencionista traduziu-se, a nível interno, pela instauração do consulado sidonista, que anunciou o declínio do republicanismo, como um projecto político coerente e sustentado. A nova República velha nunca mais conseguiu reconstituir um bloco político estável, capaz de dar continuidade aos grandes desígnios nacionais republicanos.
48Na verdade, nos objectivos da paz (largamente coincidentes com os objectivos da guerra), foi como se dois países existissem, voltados de costas um para o outro. Assoberbados por brutais problemas de sobrevivência, económica e política, os responsáveis republicanos desta segunda fase do regime foram incapazes de definir e apoiar um claro programa de política externa que servisse de orientação aos delegados da Conferência de Paz. Afonso Costa e o afonsismo pagavam da forma mais cara a ousadia e o voluntarismo da intervenção na guerra e a sua persistente atitude de defesa de um lugar para Portugal na Europa além-Pirenéus. O mesmo se poderá considerar para o projecto africanista da criação dos Altos-Comissários, vigente até 1924. Aqui, também, a debilidade do regime e do Estado republicanos foram incapazes de combater os interesses instalados de uma burguesia colonial e nacional frágeis e, por isso, mais interessadas na manutenção de colónias de exploração, em tudo contrárias ao espírito do sistema de Mandatos definido pela SDN.
49Em conclusão, os últimos anos da I República cavaram uma situação de grandes dificuldades para um regime democrático ainda débil. O profundo problema económico e social do pós-guerra abrira no seio dos Republicanos avassaladoras dissensões internas, avolumando um problema político de difícil resolução. O défice de ordem cívica decorrente da fragilidade das instituições desmoralizava o país e desprestigiava-o no exterior. Ora, no contexto do pós-guerra, Portugal necessitava, como nunca, de instituições prestigiadas e de unidade política para obter o crédito de que necessitava para se reconstruir, modernizar e prosseguir a colonização do ultramar.
50Poderá, então, considerar-se que a defesa interna da ordem cívica se constituía como o nó górdio da situação. Sem arrumar a casa, dificilmente o regime conseguiria explorar os benefícios decorrentes da sua situação geoestratégica privilegiada. Esta é, pelo menos, a convicção de um número cada vez mais vasto de republicanos, muitos deles militares, que consideravam indispensável o advento de uma ditadura temporária, capaz de restabelecer a ordem cívica e de promover a transição para uma nova democracia, mais representativa e mais estável. As soluções antidemocráticas e antiliberais que vingaram depois de 1933 já não cabem, no entanto, no quadro de soluções republicanas ensaiadas em 1925-1926.
Bibliographie
6. Referências bibliográficas
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Auteur
-
Luís Farinha
Professor de História do Ensino Secundário, tendo também sido assistente convidado da Faculdade de Letras de Lisboa. Mestre em História do Século XX pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (UNL), com uma tese sobre a oposição republicana à Ditadura Militar e ao Estado Novo. Actualmente, tem em curso um projecto de doutoramento, na mesma faculdade, sobre a biografia política de Francisco Pinto da Cunha Leal. É autor de diversos estudos e publicações em revistas da sua especialidade, designadamente as revistas História e Penélope. Tem colaborações em diversas obras, de que se destacam o Dicionário de História do Estado Novo (Círculo de Leitores, 1996), Dicionário de História de Portugal – Suplemento, Figueirinhas, 1999 e Enciclopedia della sinistra europea nel XX secolo, Editori Reuniti, Roma, 2000. Publicou ainda O Reviralho – revoltas republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, Estampa, 1998 e Fotobiografia da Guerra Colonial (co-autoria), Círculo de Leitores/Publicações D. Quixote, 1.a edição (1990), 2.a edição (1998). Presentemente, é director adjunto da revista História.
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