1Em 1854, o Par do Reino, marquês de Ficalho, viajara com o diretor-geral de Obras Públicas, o visconde da Luz, até Vendas Novas, «por um meio deserto que convida a meditação»¹ – como o próprio viria a descrever. Durante o périplo, concluiu que não havia ali pântano que não se secasse, pinheiro que não se transformasse em pinhal e rio que não se transformasse em canal de irrigação, desde que estas obras fossem acompanhadas pela construção de um caminho-de-ferro (Folgado, 198?, 15). Em Lisboa, encontrou-se com o engenheiro irlandês Terence Woulfe Flanagan, que se encontrava ao serviço da companhia do caminho-de-ferro de Lisboa a Santarém², que se encarregou do estudo do projeto. Contudo, o britânico apresentou um orçamento que excedia a capacidade financeira do marquês, que resolveu assim associar-se ao capitalista e também Par do Reino, Eugénio de Almeida, para levar a empresa a bom termo. Ambos eram homens com interesses materiais ligados àquela zona do país e que beneficiariam claramente do caminho-de-ferro. O marquês de Ficalho possuía vastas propriedades rurais no Alentejo e Eugénio de Almeida investira anos antes em terrenos cerealíferos alentejanos, cuja produção transformava depois na sua moagem de Lisboa (Alves, 2005-2006; Fonseca et al., 1987; Reis, 2005-2006; Sardica, 2005, 25 e ss.).

2Em Abril de 1854, os dois homens propuseram oficialmente ao governo a construção de uma via-férrea até Vendas Novas, eventualmente extensível até Setúbal, Évora e Beja (solicitando simultaneamente um subsídio por cada quilómetro assente). Depois de concluírem que iniciar a obra em Cacilhas implicaria custos incomportáveis, os promotores optaram por colocar o começo do caminho-de-ferro em Aldeia Galega, atual Montijo. A bitola (distância entre carris) mediria 1.44 m, igual à que se empregava na maioria dos caminhos-de-ferro europeus (Puffert, 2009, 13-16 e 29-30) e à que fora contratualizada na linha de Lisboa a Santarém, mas diferente daquela que era usada em Espanha, que media 1.67 m (Abragão, 1955-1960).

3A opção espanhola ficou a dever-se a crença de que para se vencer o relevo do reino eram necessárias locomotivas maiores, com caldeiras mais potentes, o que só se obteria com um aumento da largura dos eixos e consequentemente da via. Apesar de errónea, esta visão vingou e levou à disseminação da medida de 1.67 m como padrão em Espanha (Moreno Fernández, 1996, 374-377).

4De qualquer modo, e uma vez que o objetivo da política ferroviária nacional era ligar os portos nacionais às redes europeias, fazia sentido manter a mesma bitola. Por esta altura, Portugal esperava ainda convencer Espanha a usar a mesma medida (Pinheiro,  1995).

5Chamado a pronunciar-se em Julho, o Conselho Geral de Obras Públicas e Minas apontou diversas falhas ao projeto: exagero dos declives (10 mm/m), escassez de estações, leveza dos carris (17 kg/m), amplitude das isenções fiscais requeridas, concessão sem critério das madeiras do Estado existentes na rota da linha, concessão de exclusivo sobre os prolongamentos até Évora e Beja e ausência de penas em caso de incumprimentos. Em relação à diretriz escolhida, os engenheiros-consultores não a alteraram, mas apontaram a conveniência de iniciar o caminho-de-ferro no Barreiro e passar num ponto junto ao Sado antes de chegar a Vendas Novas; de igual modo, a bitola selecionada não mereceu reparos do Conselho³.

6No governo, Fontes Pereira de Melo, titular das pastas da Fazenda e Obras Públicas, resolveu ignorar os alvitres do seu órgão consultivo e, em 24 de Julho de 1854, assinou com os dois Pares um contrato provisório, que apresentou no mesmo dia à sanção do Parlamento (Santos, 1995, 107)⁴. A pressa que Fontes tinha em dotar o país de caminhos-de-ferro, associado ao sentimento de sublime e modernidade induzido por aquela tecnologia, subjazeram à decisão de desconsiderar as correções do Conselho de Obras Públicas e dar o quanto antes o máximo andamento à obra. Por outro lado, as obras na linha de Lisboa a Santarém registavam sérios atrasos, de modo que avançar com a construção ferroviária noutra frente garantia ao governo algum desafogo político (Pereira, 2012a, 158). O uso da tecnologia com fins políticos – aquilo que Hecht (2009, 15 e ss.) chama de technopolitics – tornar-se-ia regra ao longo de toda a Regeneração; ou como eloquentemente resumia o deputado Gomes de Castro «do que mais se cura é de ver, se a propósito do caminho de ferro nacional, se pode estabelecer uma espécie de viação acelerada para o poder»⁵.

7O projeto de lei foi discutido rapidamente: três dias na câmara dos deputados e um na dos Pares. A oposição criticou a falta de experiência dos proponentes nestes assuntos (embora não fosse líquido que seriam eles os escolhidos para a empreitada, já que a adjudicação final teria que passar por concurso público), as regalias que lhes haviam sido dadas, a ausência de estudos, o desdenho pela opinião do Conselho de Obras Públicas, o interesse limitado da linha (que não ia até Espanha) e a falta de tempo para analisar convenientemente a questão (pois o debate ocorreu nos últimos dias da sessão legislativa); por seu lado, a maioria que apoiava o governo limitou-se a invocar a necessidade de construir o caminho-de-ferro, que se deveria tornar o tronco principal de toda a viação acelerada a sul do Tejo (Pereira, 2012a, anexos 23 e 25).

8Sem surpresa, o diploma foi aprovado e transformou-se na lei de 7 de Agosto de 1854, que, juntamente com o decreto de 26 de Agosto de 1854, autorizou a abertura de concurso para a adjudicação da obra, que seria vencido por quem solicitasse a subvenção quilométrica mais baixa. A lei estabeleceu algumas alterações em relação ao contratado originalmente. A construção de um ramal até Setúbal – um porto de grande importância desde a primeira metade de Oitocentos (Alegria, 1990, 178-187; Loureiro, 1904-1909, vol. 4, 35-36) – passava a ser obrigatória e o ponto inicial da via-férrea passava para o Barreiro (com uma eventual ligação por ramal a Aldeia Galega); a alteração ficou a dever-se a motivações técnicas (maior espaço e conveniência para a construção), mas alguns autores apontaram também a influência de Joaquim António de Aguiar (Dória, 2005-2006), que possuía interesses naquela vila (Cruz, 1973; Valadas, 1878). Em troca, o governo oferecia uma subvenção quilométrica de até 8 contos (a definir no concurso), além de outras regalias administrativas e isenções fiscais (Fino, 1883-1903, vol. 1, 44-45)⁶.

9À praça, apresentaram-se Joseph Marcelin, Terence Flanagan, o marquês de Nisa e Paulino Tomás da Costa e Tomás da Costa Ramos, em seu nome e dos brasileiros João Pedro da Costa Coimbra, Francisco Melo de Soares Freitas, Jorge Gonçalves Franco e António Gomes Brandão (Fino, 1883-1903, vol. 1, 48-50). Os proponentes originais não fizeram qualquer oferta, segundo os próprios por patriotismo, para não fazer baixar em demasia a subvenção e prejudicar os empreendedores que arrebatassem a concessão⁷. A licitação mais baixa (7.9 contos/km) foi feita pelo grupo de brasileiros, que assim se tornou o novo concessionário, mas não sem polémica, pois alegadamente o valor havia resultado de um conluio entre os diversos competidores. A polémica chegou ao Parlamento, onde o deputado Cunha Sotomaior revelou que soubera da patranha no Teatro São Carlos pela boca do próprio ministro da Fazenda e Obras Públicas. Indignado com a inconfidência, Fontes não negou os factos, mas redarguiu que, se como cidadão ia ao teatro, como estadista limitava a sua vida aos escritórios do ministério e que portanto de nada sabia. Com esta esquizofrenia seletiva se enterrava o diferendo e se garantia o andamento da obra (Pereira, 2008, 90). Os brasileiros constituíram em seguida uma nova firma, a Companhia do Caminho de Ferro ao Sul do Tejo (estatutos de 6 de Fevereiro de 1855), a quem trespassaram a concessão, enquanto o governo, por lei de 30 de Abril de 1855, se muniu também da necessária autorização parlamentar para emitir dívida e cobrir a subvenção quilométrica contratada⁸.

10A construção foi confiada ao engenheiro De Lenne, técnico com experiência nos caminhos-de-ferro do Luxemburgo (Abragão, 1955-1960). Todavia, a obra progrediu com muita lentidão, a uma média de 17 km/ano, sendo o assentamento dos carris até Setúbal inclusivamente adiado (Abragão, 1955-1960; Fino, 1883-1903, vol. 1, p. 64)⁹.