As palavras que foram ditas e outras que ficaram por dizer
Texte intégral
Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer […].
Nuno Júdice1
1Conheci-a há quase trinta anos.
2Estava a acabar a pós-graduação em Museologia quando a Professora Natália Correia Guedes, orientadora do trabalho final do curso, assumiu o cargo de Subsecretária de Estado da Cultura e me convidou para trabalhar no Gabinete e auxiliar na preparação do projeto de inventário que iria ser desenvolvido pela Dr.ª Maria José Moura, apresentada como «especialista em informática». Lembro-me do dia em que a conheci, da forma como me acolheu, e da rápida decisão de me fixar numa posição que não estava ainda definida e… de como me pôs a trabalhar. Numa altura em que estavam a ser instalados computadores nos gabinetes do Governo, descobri rapidamente que não era especialista em informática – o que nos ríamos depois à custa disso! –, mas percebi, também, aquela enorme capacidade de definir o que pretendia e de formar equipas interdisciplinares para cumprir os seus propósitos, delegando-lhes competências, estabelecendo redes entre áreas complementares e definindo as linhas orientadoras de um trabalho colaborativo. E, nisso, a Dr.ª Maria José, era exímia e pioneira.
3A memória mais antiga e, também, a mais constante é a de uma amizade tão generosa quanto protetora. Assumia as minhas lutas, lutando ela própria contra os moinhos de vento do meu destino, como se tivesse sido responsável por eles, defendendo-me de tudo aquilo que achava ser injusto, protestando contra quem julgava estar a prejudicar-me e, sobretudo, oferecendo-me, até ao fim, uma imensa e abnegada proteção e amizade.
4Trabalhámos juntas. Depois da experiência do Gabinete, escolheu-me para trabalhar ao seu lado, destacada do grupo de inventariantes em que tinha ficado colocada, para colaborar nas tarefas relativas à Comissão para o Inventário do Património Cultural Móvel. Dessa época, fica, sobre todas as outras, a memória do turbilhão de entusiasmo que criava à sua volta, do tom de voz que ecoava entre gargalhadas, da estridência dos gritos com que me chamava – «Isabeliiiiinha!» –, mesmo que eu estivesse ali ao lado.
5Lembro-me das zangas e dos amuos, das discussões acesas e de como acabavam depressa. Lembro-me das nossas teimosias – «não há teimosos sozinhos!», dizíamos depois uma à outra, já numa risada – e de como gostava de dizer que eu era «teimosinha». Lembro-me das horas que ficava à espera todas as manhãs porque insistia em que o seu motorista – o Sr. Lisboa – me fosse buscar a casa, para depois irmos despachando assuntos durante o percurso até ao trabalho. Lembro-me dos costumeiros atrasos, demorada pelos telefonemas que recebia sempre ao sair de casa. Lembro-me dos papéis com recados, uns sobre os outros, que me entregava ao chegar, enquanto eu resmungava que, um dia, ainda havia de trazer a barra do lençol escrevinhada, quando já não lhe sobrasse papel na mesa de cabeceira. Lembro-me do dia em que teve de ser operada à perna, depois de uma aparatosa queda, e recebi a seguir o telefonema de uma enfermeira com os recados que a Dr.ª Maria José lhe ditara enquanto estava a ser operada com anestesia epidural.
6Lembro-me de como gostava do bolo de chocolate da pastelaria Santa Cruz e do roteiro gastronómico que fazia parte das nossas viagens – as empadas de Montemor, os torresmos de rissol, em Beja, onde fomos almoçar ao Henry Bar sem perceber os olhares de soslaio dos homens que lá estavam, até que, mais tarde, uma bejense nos explicou…
7Lembro-me de uma enorme e contagiante capacidade de trabalho, que estendia a todos os que a rodeavam. Lembro-me do ritmo alucinante com que misturava tarefas infindas e da memória como as lembrava a todas.
8Lembro-me do desgosto mútuo quando parti para outra aventura e de me ter dito que só me deixava ir porque sabia que era isso que eu queria. E sei que não ficou convencida de que isso seria o melhor para mim.
9Depois, ficou a proximidade que a amizade exigia e a azáfama de ambas permitia. Lembro-me dos telefonemas a puxar múltiplas lembranças – «lembra-se? então, não se lembra?» – em conversas compridas que acabavam de repente – «adeus, adeus» –; lembro-me da festa sempre que nos encontrávamos, mostrando que realmente gostava de me ver e de voltar a chamar-me «sardinha». Lembro o riso, a alegria, a vivacidade.
10Lembro que, nas últimas vezes em que nos vimos, já derrubada entre a cama e a cadeira do hospital, às vezes ainda me reconhecia, mas que essa alegria havia desaparecido juntamente com a esperança de que ainda fosse possível comer um peixe assado numa varanda ao sol… E não, já não foi possível!
Notes de bas de page
1 «Silêncio». In Júdice, N. (2008) – A matéria do poema. Lisboa: Dom Quixote.
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