Introdução

1A Biblioteca Pública de Évora, fundada em 1805, por iniciativa de Frei Manuel do Cenáculo, com a sua magnífica sala de leitura e a sua valiosa coleção, é uma das mais belas bibliotecas patrimoniais portuguesas e tem despertado o interesse da historiografia. Um dos primeiros estudos em que encontrámos referências é o de José Silvestre Ribeiro, que, no volume dedicado às principais bibliotecas públicas e privadas, dá notícia histórica sobre a Biblioteca de Évora (RIBEIRO, 1914). Túlio Espanca (1982) redigiu uma síntese sobre a História da Biblioteca Pública de Évora, assinalando os principais momentos, os intervenientes, nomeadamente, os bibliotecários, desde o tempo de Frei Manuel do Cenáculo a meados do século XX, bem como indicações sobre a evolução da coleção. Sobre a leitura pública e a coleção da biblioteca, a nível nacional e no caso da Biblioteca de Évora, são de referir os estudos de José Tengarrinha (1973 e 1984) e o de Fernando Gameiro (1997). Com as comemorações do bicentenário da biblioteca em 2005 surgiram mais estudos, entre os quais os nossos anteriores textos sobre a fundação (VAZ, 2006), bem como sobre as coleções (VAZ, 2014), os estatutos e a organização administrativa (VAZ, 2012a) e a evolução da leitura pública (VAZ, 2016). A obra de Silva (2013), dedicada às bibliotecas patrimoniais portuguesas, realçou a beleza da Biblioteca de Évora, incluindo-a no lote das mais belas bibliotecas de Portugal (SILVA, 2013). No domínio de divulgar a valiosa coleção da biblioteca, particularmente dos seus manuscritos, destaca-se a obra coordenada por João Ruas (2005), publicada no contexto das comemorações do bicentenário. No mesmo domínio, Antónia Conde coordenou a publicação de uma obra dedicada às iluminuras da biblioteca (CONDE et al., 2017).

2Este trabalho surge na sequência dos que publicámos anteriormente, procurando traçar a evolução da coleção e serviço público da Biblioteca de Évora nos séculos XIX e XX. Partimos com a noção que a biblioteca nasceu com a vocação de biblioteca-museu, uma ideia herdada da Biblioteca de Alexandria, e que no século das Luzes adquiriu grande projeção, ideia que a nível nacional teve em Frei Manuel do Cenáculo um dos seus principais intérpretes. Com efeito, a ação biblioteconómica do Bispo de Beja, que temos analisado em anteriores trabalhos, constitui um marco na biblioteconomia nacional e teve na Biblioteca de Évora a sua concretização mais emblemática. Nascida com essa vocação universalista de albergar coleções bibliográficas e museológicas, a biblioteca evoluiu ao longo dos séculos XIX e XX, aumentando as suas coleções, perseverando o património deixado pelo fundador e abrindo as portas ao público leitor. É este percurso que pretendemos analisar neste capítulo, partindo com algumas questões: como evoluiu a coleção da Biblioteca de Évora e que novos fundos foram integrados? Na sua longa história, como cumpriu as principais funções sociais: salvaguardar a coleção e promover a leitura pública? E, finalmente, quais os desafios que se colocam na era da informação em que vivemos?

A coleção no século XIX

3A coleção inicial da Biblioteca Pública de Évora foi constituída com os donativos feitos por D. Manuel do Cenáculo e do anterior arcebispo de Évora, D. Joaquim Xavier Botelho de Lima. Além dos livros, Frei Manuel do Cenáculo deixou à Biblioteca uma coleção museológica apreciável, constituída por antiguidades, nome que então designava as peças arqueológicas, pinturas, um monetário e uma coleção de produtos naturais: animais embalsamados, conchas, herbário e outros espécimes do género (VAZ, 2016). Em 1814, ano em que D. Manuel do Cenáculo morreu, a coleção de livros e manuscritos foi avaliada em 50 000 volumes. Refira-se, contudo, que a biblioteca sofreu grandes perdas, provocadas pela ocupação e saque do exército francês, em 1808, e posteriormente, durante o período liberal e guerra civil, essas perdas continuaram (VAZ, 2006, 64–67).

4Nos primeiros anos, a biblioteca dependia da diocese, quer nos fundos quer em termos de novas aquisições bibliográficas. Contudo, além dos arcebispos sucessores de Frei Manuel do Cenáculo, alguns filantropos doaram as suas coleções e mesmo dinheiro à biblioteca, tal foi o caso de António Baptista Sequeira Faca-Mello, que, em 1824, doou à Biblioteca de Évora toda a sua livraria, aproximadamente 1500 volumes e um fundo de 600 000 réis para com os juros ir pagando os ordenados dos funcionários. Do mesmo modo, o Bacharel da Sé, Joaquim Cordeiro, deixou parte da sua coleção bibliográfica à Biblioteca Pública (VAZ, 2007, 8).

5Com o bibliotecário Cunha Rivara, que iniciou as suas funções em 1838, a biblioteca entrou num período de maior acalmia e num sentido de preservação e enriquecimento progressivo da coleção. Para preservar a coleção, merecem referência as obras feitas: construção de uma nova sala para albergar muitos dos livros e a catalogação dos manuscritos existentes. Relativamente à atualização da coleção, foi com Cunha Rivara que se procedeu à integração dos fundos conventuais e à compra de obras recentes, recorrendo à venda de obras dobradas.

6Tomando como base a obra de Luana Giurgevich e Henrique Leitão (2016), podemos ficar com uma noção da dimensão e valor da integração das livrarias conventuais para enriquecimento da coleção da Biblioteca de Évora. De facto, os autores fornecem dados sobre dez bibliotecas conventuais eborenses em 1834; um total de 19 508 livros, assim distribuídos: Mosteiro de Nossa Senhora do Espinheiro (1738); Colégio de S. Paulo de Évora (1659); Convento de Nossa Senhora da Graça (3039), Convento de Nossa Senhora das Merces de Évora (1349), Convento de Nossa Senhora do Carmo (943), Convento de Nossa Senhora dos Remédios (3260), Convento de S. Francisco (3120), Convento de S. Domingos (3000), Colégio da Purificação (1400). Refira-se que casos houve, contudo, em que os responsáveis não catalogaram os livros existentes naquela data, como foi o caso da Cartuxa, que possuía uma das mais valiosas livrarias da cidade (GIURGEVICHE et al., 2016, 492).

7Mas a integração dos fundos conventuais em Évora e no resto do país decorreu com muitas falhas e atropelos, e no caso de Évora o próprio Cunha Rivara terá cometido alguns ao mandar para venda milhares de livros, segundo os seus críticos um total de 1385 arrobas (20 775 quilos) de livros provenientes dos conventos masculinos (CERICO, 2007, 79). A seu favor, Rivara tinha a necessidade de adquirir dinheiro para fazer as obras necessárias na Biblioteca e assim continuar a garantir a salvaguarda da coleção. Relativamente à quantidade de obras dos conventos e mosteiros, alguns apontaram mais de 50 000 livros (CERICO, 2007, 79), número redondo e exagerado se tomarmos em conta os catálogos feitos em 1834 (LEITÃO, 2016), comprovando que se trata de uma estimativa e não de um inventário rigoroso. Na realidade, faltou rigor no inventário dos fundos que chegaram e faltou o inventário dos fundos que foram vendidos.

8Um dos principais problemas de funcionamento da Biblioteca de Évora, no tempo de Cunha Rivara, era dar cumprimento à vontade do fundador, de constituir uma biblioteca-museu. Como comprovam os relatórios do bibliotecário, na biblioteca existia a «Sala do Museu», onde se encontravam o monetário, as coleções de produtos naturais, peças arqueológicas e, como diz Cunha Rivara, «mais de 5000 volumes dobrados» (CERICO, 2007, 81). A desordem e confusão imperavam, porque faltavam armários para arrumar as coleções.

9O nome de Cunha Rivara ficou ainda ligado ao enriquecimento da coleção, porque em 1879, por vontade da sua esposa, os livros e o espólio de Cunha Rivara foram doados à Biblioteca Pública de Évora (RAFAEL et al., 2009, 23).

10Na segunda metade do século XIX, merece referência Augusto Filipe Simões, que exerceu o cargo de bibliotecário entre 1863–1887, e descreveu no relatório de 1868 um quadro negro sobre a situação da Biblioteca. Segundo Augusto Simões, a sala nova ameaçava ruir e os fundos bibliográficos, sobretudo os mais valiosos, estavam mal acondicionados e a deteriorar-se:

«Causa até vergonha mostrar ao viajante que durante o Inverno visita a Biblioteca os riquíssimos exemplares da Vita Christi (…) da Bíblia de Gutenberg, humedecidos e as vezes cobertos de bolor, e deixar-lhes ver no mesmo estado mais de 250 volumes impressos todos no século XV.» (SIMÕES, 1868, cit. in ESPANCA, 1982, 243).

11Refira-se que a obra Vita Christi consta do Catálogo de incunábulos existentes na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora (CID, 1988, 38), mas não consta nenhuma Bíblia de Gutenberg, que ou desapareceu ou deteriorou-se irremediavelmente. Do mesmo modo, a Bíblia de Gutenberg não consta no recente trabalho coordenado por Antónia Conde, que demonstra bem o valor do património bibliográfico da instituição sobretudo dos seus códices iluminados. Nesta obra são referenciadas quatro Bíblias manuscritas, com iluminuras, e dois incunábulos, um livro de horas e um almanaque. (CONDE et al., 2017, 108–137 e 246–267).

12Augusto Simões testemunha também a persistência da sala do museu na Biblioteca, com a coleção museológica, onde se incluíam as antiguidades arqueológicas, pinturas, a coleção de produtos naturais, monetário e outros bens culturais coligidos pelo fundador, e o desassossego que isso significava para um eficiente serviço de leitura pública:

«Estou convencido de que a biblioteca seria muito mais procurada e frequentada, se oferecesse aos leitores o sossego e a comodidade, que hoje não encontram, e, que não raras vezes, vêm ainda os visitantes perturbar a ordem e o silêncio, que deveriam aqui mesmo reinar. Além disso não há para os leitores senão duas mesas e uns mochos de pinho pintado, cuja vista basta para afugentar da biblioteca aqueles que desejam passar algumas horas a ler» (SIMÕES, 1868, cit. in ESPANCA, 1982, 245).

13No final da década 1880, a biblioteca passou a receber obras recentes, enviadas pela Inspeção Geral das Bibliotecas e Arquivos Públicos. O relatório enviado à Inspeção, em 1899, pelo bibliotecário José Maria Queirós Veloso dá-nos um quadro completo das coleções da biblioteca (VAZ, 2016, 3). Assim, a biblioteca tinha uma coleção que totalizava 53 596 espécimes distribuídos por diferentes categorias: obras impressas (43724), manuscritos (2858); cartas geográficas (526), estampas (324), partituras e obras de música (346), retratos (516) e numismática (5312).

14O relatório de Queirós Veloso não incluiu os produtos naturais da coleção museológica que continuou na dependência da instituição até 1915, ano em que foi criado o Museu de Évora (CAETANO, 2007, 5). Refira-se que, além dos livros, a biblioteca recebia da Inspeção das Bibliotecas moedas e medalhas para enriquecer o seu monetário (VAZ, 2016, 4).

15Esta magnífica coleção era colocada ao serviço de um público maioritariamente constituído por estudantes e, esporadicamente, a biblioteca acolhia curiosos que, como vimos, vinham quebrar o silêncio e sossego necessários para os leitores. Analisámos em anterior trabalho o movimento de leitores e o afluxo de visitantes, no século XIX e na transição para o século XX, apresentando dados estatísticos, baseados nos dados enviados para o Anuário Estatístico de Portugal e relatórios dos bibliotecários, sobre a leitura pública e visitantes entre 1887–1921: «Durante estes 28 anos e relativamente à leitura de livros, temos uma média anual de 1341 leitores e 1458 livros requisitados, incluindo a leitura de jornais a partir de 1904» (VAZ, 2016, 10). Este movimento de leitores que aparentemente nos parece pouco significativo deve, todavia, ser contextualizado. Com efeito, a nível nacional, a Biblioteca de Évora, durante este período, em que a rede de bibliotecas públicas se limitava a 15 instituições, incluindo algumas bibliotecas liceais, ocupava um honroso sétimo lugar a nível do movimento de leitores. No nosso estudo referido concluímos:

«os dados que coligimos comprovam que a Biblioteca de Évora era uma das principais bibliotecas nacionais, ocupava um honroso quinto lugar em termos de coleção e tinha um movimento de leitores assinalável, representando 2,6 % do total da leitura pública nacional» (VAZ, 2016, 10).

A Coleção no século XX

16A coleção foi enriquecida nos finais do século XIX e princípios do século XX com os fundos provenientes das casas religiosas femininas. Em 1899, a biblioteca e museu recebiam os objetos e obras de arte pertencentes ao Convento do Paraíso: um brasão de armas reais da primeira dinastia, capitel, carranca e um quadro de azulejos representando Santo António (VAZ, 2016, 4). De maior vulto e significado foi a incorporação de espécimes do património artístico e bibliográfico do Convento de Santa Clara, um dos mais ricos da cidade e ocorrida em 1903:

«Os objetos que foram entregues ao Museu da Biblioteca Pública de Évora foram avaliados em 51.160 réis e incluem, entre outros: um resplendor de prata (5.260), cadeiras, sinete, um tapete de Arraiolos (avaliado em 15.000 réis, o mais alto valor), um frontal de seda branca bordada (10.000), uma mesa pequena de pau-santo (2.000) e uma pintura a óleo representando S. Francisco (400 réis).» (VAZ, 2016, 4).

17O património bibliográfico do convento de Santa Clara foi também enriquecer a coleção da Biblioteca de Évora. Foram incorporadas 95 obras, avaliadas em 28 500 réis, entre as mais valiosas, encontram-se 33 volumes do breviário romano (2000 réis), 36 breviários (2600), um breviário datado de 1697 (1400), um livro para missa de cantochão (2500), um antifonário seráfico (1000), um grande livro em cantochão (1500). Além destes, a lista inclui livros de horas e oito volumes da Crónica de S. Francisco (avaliados em 800 réis). Refira-se que a relação inclui também obras manuscritas, onde avultam sete maços de pergaminhos, que não foram avaliados (VAZ, 2016, 4). Mais uma vez persiste a falta de rigor, que já anotámos na integração das bibliotecas das ordens masculinas; os pergaminhos, naturalmente obras raras e iluminadas, não mereceram dos responsáveis do inventário uma avaliação. Na base deste desleixo pensamos estar uma atitude anticlerical, característica da era liberal, que via os livros antigos das casas religiosas como «ramos estéreis e mortos da árvore da ciência» (RIVARA, 1845, cit. in ESPANCA, 1981, 231) e que terá estado na origem da venda de muitas obras ao desbarato e na destruição de outras.

18A criação da Inspeção Geral das Bibliotecas e Arquivos, pelo Decreto de 29 de dezembro de 1887, foi um marco no panorama da Biblioteconomia nacional. A Inspeção estava subordinada à Direcção-Geral de Instrução Pública, do Ministério dos Negócios do Reino. Tinha como competências dirigir, administrar e fiscalizar os arquivos e as bibliotecas do Estado ou pertencentes a corporações estatais. A Biblioteca Pública de Évora passou assim a depender da Inspeção, o que se repercutiu a nível da leitura pública e da coleção. Assim, a partir de então, tal como acontecia na Biblioteca Nacional, os leitores e investigadores podiam solicitar a cópia de textos e mesmo a fotografia de manuscritos e reservados através de requerimento escrito dirigido à Inspeção das Bibliotecas e Arquivos. A Biblioteca beneficiou ainda, a partir de início do século XX, de um serviço de permutação nacional e internacional. Encontrámos referências a permutas de obras sobretudo com a Biblioteca Nacional de Lisboa e, a nível internacional, com a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Uma referência a este serviço, datada de 2-7-1902, dá conta do envio de sete obras brasileiras à Biblioteca de Évora e este intercâmbio continuou a bom ritmo, com a Biblioteca Nacional Brasileira nos anos de 1902 a 1909 (ADE: F: BP/ADE, SC–E: Gestão da Informação, SR.01: Correspondência 1902-1909, s. p.).

19Tomando como fonte o Anuário Estatístico de Portugal, no ano de 1905 a Biblioteca tinha uma coleção bibliográfica de 45 754 volumes (Anuário Estatístico de Portugal 1904-1905, 1908, 411); em 1921 esse número subiu para 53 916 volumes (id., 1924, 108) e em 1923 para 54 971. Apresentamos no gráfico seguinte o aumento da coleção desde 1899 a 1923.

Gráfico 1. Coleção Bibliográfica da BPE (em volumes)

20Os dados comprovam uma razoável atualização da coleção, em grande parte fruto do envio de obras pela Secretaria da Inspeção das Bibliotecas e Arquivos e das incorporações de obras já referidas. Em termos comparativos, a Biblioteca de Évora tinha, na primeira metade do século XX, uma das mais ricas e volumosas coleções, só superada pela Biblioteca Nacional, a Biblioteca Pública do Porto, a Biblioteca da Universidade de Coimbra e a Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa (VAZ, 2016, 4).

21Facto que melhorou o serviço público e trouxe mais sossego para os leitores foi a criação oficial do Museu de Évora, atual Museu Frei Manuel do Cenáculo, já após a implantação da República em 1915 (CAETANO, 2007, 5). Chegava assim ao fim a vocação de biblioteca-museu idealizada pelo fundador e as coleções de antiguidades, pinturas e produtos naturais passaram para a alçada do novo estabelecimento.

22A criação de um Museu Regional em Évora foi determinada pelo Decreto n.º 1.355, de 16 de janeiro de 1915, ocupando a partir de então a maior parte do edifício do Paço Arquiepiscopal, onde atualmente se encontra sediado. O edifício tinha sido arrendado pela Inspeção Geral das Bibliotecas, para alargamento da Biblioteca pelo Decreto de 1 de março de 1913. Desta mudança e implicações financeiras dará conta o Inspetor-Geral das Bibliotecas em ofícios dirigidos ao Diretor da Biblioteca Pública de Évora. No primeiro, solicitando o número de salas que no Paço vão ser ocupadas pelo Museu e quais é que continuam a ser ocupadas pela biblioteca (Oficio do Inspetor Júlio Dantas, Lx. 6-4-1916., Sc E – Gestão da Informação SSc E/a Varia, Sr. 01 – Correspondência R/exp.1916-1922d). Num segundo, informa que a Inspeção deixa de se responsabilizar pelo pagamento integral da renda e do seguro do Paço Arquiepiscopal e que só pagará a renda correspondente a três pequenas salas, cabendo a comissão concelhia dos bens do Estado determinar a parte que cabe à biblioteca do montante global da renda 50$00 escudos (Oficio do Inspetor Júlio Dantas de 10-4-1916, idem). Em ofício, datado de 1-9-1916, o Inspetor autorizou o Diretor da Biblioteca de Évora a tomar posse «do edifício do antigo Convento dos Loios, de Évora, destinado ao alargamento das instalações dessa biblioteca». (id., ibid.).

23Poucos meses volvidos, deu-se nova mudança na Biblioteca e fundos a seu cargo, com o Decreto 2.859, de 29 de novembro de 1916 que criou o Arquivo Distrital e o anexou a Biblioteca de Évora. Merece uma leitura esta legislação, dado que Arquivo funcionará nas dependências da Biblioteca até 1997, para nos apercebermos do seu significado e alcance.

24No preâmbulo, o legislador invoca as incorporações, entretanto feitas, «de todos os documentos relativos à diocese e distrito de Évora que interessem à história da religião e que têm sido recolhidos na Biblioteca Pública dessa cidade» (Decreto 2.859, 1096). Parte-se também do pressuposto que a Biblioteca de Évora está a exercer a função de Arquivo Distrital e invoca-se também outros argumentos. Em primeiro lugar, o facto de a Biblioteca ter adquirido mais instalações: recebera em 1913 a Casa Capitular da Sé (Portaria de 20 de agosto de 1913), arrendara as dependências do Paço Arquiepiscopal (Decreto de 1 de março de 1913) e adquirira o edifício do extinto Convento dos Loios, pela sentença de 15 de janeiro de 1916. Em segundo lugar, o facto de Câmara de Évora ter já inscrito no orçamento anual camarário a verba de 300$00 escudos para que a BPE contratasse um amanuense arquivista.

25O decreto enumera também os fundos e coleções de proveniência distrital e diocesanos já incorporados, ou em fase de incorporação: cartório do Cabido (que continuará na casa capitular da Sé, considerada dependência da biblioteca); cartórios da extinta provedoria e mosteiros de Évora (já incorporados); papéis da Câmara Eclesiástica (já incorporados); papéis da Mitra (já incorporados); cartórios paroquiais do distrito (incorporados de acordo com o Decreto n.º 1.630 de 9 de junho de 1915); cartórios notariais do distrito (em fase de incorporação, de acordo com o Decreto n.º 2.607 de 2 de setembro de 1916); processos crimes cíveis e orfanológicos e «todos os documentos de repartições extintas».

26Importa ainda referir as alterações então introduzidas no quadro de funcionários, sendo que o pessoal afeto ao arquivo se limitou então à contratação do referido arquivista pago pela Câmara. O Diretor da Biblioteca Pública de Évora passou a ser também o Diretor do Arquivo e «o pessoal menor do arquivo Distrital será, provisoriamente, o da biblioteca a que fica anexo» (id.). Acresceu assim um vastíssimo espólio documental que ficou doravante a cargo da Biblioteca e um gasto acrescido, as despesas do arquivo passaram a ser pagas pelo orçamento da biblioteca, exceto o pagamento do salário do amanuense arquivista, como referido.

27No contexto das reformas para o setor biblioteconómico e arquivista promovidas pela Primeira República, e tendo como principais intérpretes Júlio Dantas e Jaime Cortesão, os arquivos distritais criados foram anexados a bibliotecas eruditas, casos de Bragança e Leiria, ou a bibliotecas públicas já existentes, os casos de Braga e Évora. Só a nível central com a criação do Arquivo Nacional da Torre do Tombo havia autonomia efetiva entre bibliotecas e arquivo. Esta tendência prendia-se com a distinção então assumida entre leitura erudita e leitura popular, que tinha implementado a distinção entre bibliotecas populares e eruditas, e com a necessidade imperiosa de integrar numerosas coleções e fundos arquivísticos, o que de facto veio a acontecer, salvaguardando esse património bibliográfico para memória da nação e das gentes. Acrescem naturalmente argumentos de poupança de recursos humanos e financeiros.

28A partir de 1931, com o Decreto-Lei n. 19.952, de 27 de junho, a Biblioteca de Évora passou a beneficiar do depósito legal, medida de grande alcance e que permitiu uma atualização contínua da coleção, com obras editadas em Portugal (Decreto n.º 19.952, de 27 de junho de 1931). O referido decreto implantou uma nova política biblioteconómica, com a finalidade enunciada de transformar as bibliotecas e arquivos em «organismos vivos de erudição e cultura». Portanto, além da custódia dos documentos pretendiam-se instituições biblioteconómicas e arquivísticas intervenientes, espaços de cultura e conhecimento. Para essa finalidade, reorganizou-se a Inspeção das Bibliotecas e Arquivos, atribuindo-lhe mais poderes, «num sentido de grande amplificação das suas atribuições», ou seja, aumentando o número de bibliotecas e arquivos debaixo da sua alçada.

29O contexto ideológico do Estado Novo está bem vincado nas normas, em grande medida orientadas para ter um controle efetivo sobre a informação depositada e objeto da leitura. Mas importa também sublinhar as vantagens das normas reformistas então pensadas e implementadas: a racionalidade, a salvaguarda da memória, ao exigir a catalogação de numerosos documentos dispersos para serem colocados, como o legislador reconhece, à «leitura pública». No mesmo sentido, vai a conceção de documento que se aponta no preâmbulo: «são pertença da Nação e constituem um património sagrado duma civilização e duma cultura» (Decreto-Lei n.º 19.952, 1253). Medida também de grande alcance foi o reconhecimento da indispensável preparação científica e técnica do pessoal, através da criação, com o mesmo decreto, do Curso Superior de Bibliotecário e Arquivista, com dois anos de duração e que passou a funcionar na Biblioteca Nacional e Arquivo Nacional Torre do Tombo.

30O decreto especifica também as normas referentes à Biblioteca Pública de Évora. Diz que a biblioteca tem anexado o Arquivo Distrital fundado pelo Decreto n.º 2.859 de 29 de Novembro de 1916. Refere, também, a fundação por Manuel do Cenáculo (embora dando a data de 1811) e aponta as principais proveniências dos seus núcleos documentais arquivísticos: os antigos conventos e mosteiros, diocese, cartórios notariais, Mitra e Câmara Eclesiástica. Fixa também o quadro de pessoal: Diretor, segundo bibliotecário, contínuo e dois serventes (um total de 6 funcionários). O Diretor, o primeiro bibliotecário, tem competência, de acordo com o orçamento, para «contratar, ou assalariar pessoal para serviços extraordinários de limpeza, arrumação e catalogação das espécies» (Decreto-Lei n.º 19.952, 1253, 1264). O recrutamento do pessoal deve seguir a norma estabelecida para a Biblioteca Nacional e «As funções de diretor serão desempenhadas por um professor do liceu de Évora, que terá direito à gratificação que atualmente lhe compete» (Decreto-Lei n.º 19.952, 1264). O Diretor ficava ainda incumbido de enviar à Inspeção «durante o mês de Janeiro de cada ano, um desenvolvido relatório sobre os serviços efetuados na Biblioteca e Arquivo no ano anterior, especializando os de inventário, catalogação e leitura pública» (Decreto-Lei n.º 19.952, 1264).

31Estas normas específicas para a Biblioteca de Évora merecem-nos duas notas. A primeira é que persistia em meados do seculo XX a tradição que se tinha iniciado com Cunha Rivara de dar o cargo de bibliotecário a um professor do liceu, o que pressupunha que a biblioteca estava de alguma forma ao serviço do ensino liceal, dado que a grande maioria do seu público leitor era constituído por estudantes (VAZ, 2016; GAMEIRO, 1997). A outra a exigência de enviar anualmente a Inspeção um relatório detalhado.

32Consultando o catálogo do fundo da Inspeção Geral das Bibliotecas, custodiado pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo (JORGE, 2014), comprova-se o envio sistemático de relatórios anuais, à Inspeção das Bibliotecas e Arquivos, por parte do Diretor da Biblioteca de Évora entre 1934–1965. Os relatórios constituem uma fonte para a história da instituição, em particular para aumento da coleção e serviço de leitura pública.

33Podemos comprovar, também, que a partir de então e até finais dos anos sessenta, a Inspeção das Bibliotecas e Arquivos exerceu um controle efetivo da Biblioteca Pública e Arquivo de Évora, tal como fez com as restantes bibliotecas que dela dependiam. Este controle e centralização, a par com uma nova política biblioteconómica e formação dos bibliotecários, revelou-se, em termos práticos, benéfico para a instituição. A lista dos documentos recebidos e enviados, constantes do Catálogo do Fundo da Inspeção das Bibliotecas e Arquivos, permite ver as principais mudanças então introduzidas, bem como as melhorias para à coleção e leitura pública. Assim, por exemplo, em 1933 a Biblioteca passou a ter abastecimento de água (JORGE, 2014, 89) e em 1938 chegou a luz elétrica para a leitura noturna (JORGE, 2014, 93). Também nesse ano de 1938 a biblioteca passou a ter telefone. A leitura noturna, que como se compreende constitui um avanço significativo para qualquer biblioteca, foi objeto de diversos ofícios e cartas da Biblioteca para a Inspeção, entre 1938–1953 (JORGE, 2014, 93).

34Além deste serviço de leitura noturna, a Biblioteca passou também a oferecer aos leitores livros no espaço público; para esse fim, ainda que de forma esporádica e sazonal, foram instaladas bibliotecas ao ar livre no Jardim de Diana, em 1948, e no Jardim Público do Palácio de D. Manuel, em 1949 (JORGE, 2014, 93). Neste mesmo sentido de ir ao encontro dos leitores e promover a leitura pública, a Biblioteca passou a realizar exposições e participar noutras de outros institutos ou entidades. Em 1937, a Biblioteca fez uma exposição bibliográfica nas festas da cidade de Évora e, em 1941, uma Exposição de livros do século XVI para figurar na Exposição de Arte do Liceu Nacional André Gouveia e uma Exposição Bíblica na própria biblioteca em 1957 (JORGE, 2014, 92). Participou enviando exemplares de espécies em diversas exposições em outras localidades e instituições, nomeadamente, para exposições promovidas pelo Arquivo Histórico e Ultramarino: a Exposição Documental relativa a Moçambique e à Rodésia, em 1955, e a Exposição Histórica Comemorativa do III Centenário da Restauração Pernambucana, em 1954 (JORGE, 2014, 98). Do mesmo modo, a Biblioteca enviou espécies bibliográficas para a estar representada na exposição comemorativa do VII centenário da Tomada de Lisboa, em 1947.

35A Biblioteca passou também a oferecer o espaço para eventos e iniciativas culturais, sobretudo conferências, como, por exemplo, em 1942, a realização de conferências na Biblioteca pelo Instituto Francês em Portugal (JORGE, 2014, 96). Em 1950, a Biblioteca solicitava autorização à Inspeção para realizar conferências na Biblioteca. Em 1954, na biblioteca realizou-se uma conferência do escritor e erudito, Augusto Krusse Afflalo.1 Também o Instituto de Cultura Alemã solicitou as instalações da Biblioteca para realizar um concerto de música medieval, no ano de 1944. Portanto, é de supor que este tipo de eventos tenha passado a ser regular, dando assim a possibilidade de publicitar não só a investigação e divulgação literária e científica, mas também o património bibliográfico da casa e promover a leitura pública.

36A fonte que vimos seguindo permite ver a lista de melhoramentos e as ações de conservação do património bibliográfico que a partir de então foram feitas, tais como obras no edifício e dependências anexas e ações de desinfestação. No primeiro caso há registo e documentos sobre as obras no telhado da Biblioteca, em 1933 (JORGE, 2014, 93), e a caiação das fachadas da Biblioteca em 1954 (JORGE, 2014, 90). Para conservação do património, a Biblioteca adquiriu, em 1948, uma câmara de desinfeção e de extermínio de bibliófagos e realizou ações desinfeção dos volumes da Biblioteca (1951) e Desinfestação dos Depósitos (1957).

37A nível de donativos de beneméritos locais, durante o século XX, destaca-se a integração da Biblioteca Manizola do Visconde da Esperança, José Bernardo da Baraona Fragoso Cordovil Gama Lobo (1841–1931). Esta coleção incluía um magnífico espólio de manuscritos, impressos, incunábulos, medalheiro e várias peças de arqueologia (BARATA, 1897). O visconde da Esperança manifestou em vida e depois no seu testamento a vontade de doar a sua biblioteca à Biblioteca Pública de Évora, mas os herdeiros impugnaram esta determinação testamentária, que viria a ser considerada nula pelo facto de a Biblioteca Manizola ter valor superior a mais de metade dos bens do Visconde da Esperança. O litígio prolongou-se por vários anos, com grande impacto nas elites locais, que intervieram no sentido de fazer cumprir a vontade do benfeitor. A solução encontrada passou pela compra deste fundo bibliográfico pela Fazenda Nacional, em 1953, e pela sua integração na Biblioteca Publica de Évora, em 9 de abril de 1955.

38Ainda no ano de 1955, a Biblioteca recebeu um donativo do Engenheiro Agrónomo Joaquim Manuel dos Santos Garcia e que nesse ano foi incorporado na Biblioteca (JORGE, 2014, 92).

As Comemorações do Bicentenário

39Em 2005, a Biblioteca comemorou o seu bicentenário, com o lema «Comemorar com os olhos no futuro». As comemorações foram coordenadas pelo Diretor da Biblioteca, José António Calixto, e tiveram o patrocínio do Presidente da República, Jorge Sampaio. Iniciaram-se em 1 de março de 2005, com a realização do Simpósio, «D. Frei Manuel do Cenáculo Construtor de Bibliotecas», organizado por Francisco Vaz e José António Calixto, que reuniu especialistas da História do Livro e da Leitura e com estudos sobre a obra do fundador da biblioteca. As atas do simpósio foram publicadas em 2006. Seguiram-se diversas iniciativas culturais, que culminaram com a realização de uma conferência internacional: «Bibliotecas para a Vida: Literacia, conhecimento, Cidadania» nos dias 27, 28 e 29 de outubro de 2005. As conferências seriam, posteriormente, publicadas pelo Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CALIXTO, 2016).

40Merece também uma referência a exposição inaugurada em 23 de junho de 2005 e intitulada «Um Tesouro de Sabedoria - Biblioteca Pública de Évora: Passado, Presente e Futuro», que esteve patente no Palácio D. Manuel, aberta ao público até finais de outubro. A exposição evocou a História da Biblioteca e abrangeu mais de 500 peças das suas coleções, nomeadamente, a Bíblia de pergaminho do século XIII, os mapas de Bocarro, incunábulos e outros livros raros dos séculos XVI, XVII e XVIII, o Pentateuco Hebraico, bem como alguns exemplares de produtos naturais e raridades do «Gabinete de Curiosidades» de Frei Manuel do Cenáculo.

41Na inauguração da exposição, o Diretor da Biblioteca deu uma entrevista à RTP, que demonstra que as comemorações do bicentenário pretendiam, com base no conhecimento histórico, preparar a instituição para os novos desafios da sociedade da informação em que vivemos, para colocar a Biblioteca ao serviço da comunidade e dar-lhe a projeção nacional e internacional que merece. Assim, José António Calixto anunciou para outubro desse ano o novo serviço de empréstimo domiciliário de livros aos leitores e considerou: «A criação do novo serviço vai constituir um dos marcos das comemorações dos 200 anos da BPE». Relativamente à coleção, destacou a importância da existência de depósito legal, desde 1931, que segundo as suas palavras: «tem contribuído para a sua riqueza e abrangência em termos de bibliografia corrente, ascendendo as suas coleções a mais de 612 mil volumes». (RTP, 2005). A nível qualitativo destacou os «664 incunábulos e 6445 livros impressos do século XVI, além de vários núcleos de documentos manuscritos, de cartografia, música impressa e mais de 20 mil títulos de publicações periódicas» (RTP, 2005).

42As comemorações, bem como o projeto que coordenámos entre 2005 e 2009, intitulado: «Os Livros e as Bibliotecas no espólio de D. Frei Manuel do Cenáculo», financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, permitiram dar a conhecer à comunidade académica e ao público em geral a história da instituição, as suas valiosas coleções, bem como o alcance e significado do papel desempenhado pelo seu fundador.

43No ano das comemorações do bicentenário era dado adquirido que o poder político daria em breve início à construção de um novo edifício para a Biblioteca: o «Fórum do Conhecimento Frei Manuel do Cenáculo». Além da Biblioteca Pública, o novo edifício albergaria o Arquivo Distrital e a então pensada biblioteca municipal. Havia mesmo orçamento para o novo edifício: cinco milhões de euros. Reconhecia-se a urgência de novas instalações para a biblioteca e arquivo, dado o estado dos edifícios e as novas exigências no contexto da era da informação. Contudo, como é do conhecimento público, o edifício não passou do papel e era certamente uma bandeira que o poder central e autárquico agitaram para angariar votos, um dado estruturante da nossa democracia e que nos leva a considerar que em vez de pensar que vivemos em democracia, é mais correto – para dar razão a Aristóteles – conformarmo-nos com a realidade de que vivemos numa demagogia.

44Este projeto de criar um novo fórum do conhecimento, albergando a Biblioteca Pública de Évora e o Arquivo Distrital, parecia então fundamental para dar às duas intuições as condições necessárias e assim cumprirem as finalidades do serviço público e salvaguarda das coleções. Contudo, consideramos que ainda bem que não foi levado a cabo, pelo menos no que diz respeito à Biblioteca Pública de Évora, que ao ser transferida para um novo edifício perderia o essencial do seu ser, o seu espaço físico, as magníficas salas, pensadas e construídas no século XIX e testemunho vivo da história do livro e da leitura, durante 200 anos. Ou seja, consideramos que fazia sentido e continua a fazer sentido construir um «Fórum Frei Manuel do Cenáculo» para uma nova Biblioteca Municipal e albergar também o Arquivo Distrital, mas que a bem do conhecimento histórico e memória da nação deixem a Biblioteca Pública no edifício em que se encontra. O que, felizmente, parece já ter sido assumido, pois em 2019 iniciaram-se obras de recuperação e conservação do edifício, que foram concluídas em janeiro de 2021.

Conclusão e novos desafios

45Esbocemos algumas conclusões sobre este percurso de 200 anos da Biblioteca Pública de Évora. A Biblioteca Pública de Évora nasceu num contexto marcado pelo iluminismo em que as ideias de razão, ciência e progresso davam novos rumos para o poder político e sociedade, retomando o humanismo e anunciando uma nova era para os povos, em que os homens deixavam de ser «súbditos» e passavam a ser cidadãos, dotados de direitos e não apenas deveres. Neste contexto, a instrução, como principal meio para adquirir o conhecimento, adquiria um lugar de destaque e, por isso, as bibliotecas e museus eram chamadas a desempenhar um papel de relevo, ao abrir as portas ao público leitor e de visitantes. À semelhança de outras instituições dessa época, a Biblioteca Pública de Évora foi pensada por Frei Manuel do Cenáculo como biblioteca-museu e dotada de uma valiosa coleção, quer de livros impressos e manuscritos, quer de antiguidades, pinturas, raridades e produtos da natureza. Por outro lado, o fundador, bem de acordo com as ideias e projetos biblioteconómicos que ao longo da vida defendeu e implementou (VAZ, 2002 e 2009), deixou bem vincada a vocação da nova instituição, como casa da sabedoria ao serviço do público.

46Nascida na dependência da Mitra e Diocese de Évora, a Biblioteca passaria para a esfera do poder político, com o triunfo do liberalismo, quando o governo passou a pagar os vencimentos dos funcionários, em 1835, e depois, volvidos três anos, com a nomeação do primeiro bibliotecário civil, Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara em 1838. No longo século XIX, a Biblioteca evoluiu de biblioteca-museu para biblioteca erudita, com a criação do Museu de Évora, em 1915, e com a criação do arquivo distrital na sua dependência, nesse mesmo ano. Essa faceta de biblioteca erudita terminou em 1997 com a autonomia das duas instituições.

47As coleções foram crescendo, com incorporações das livrarias das casas religiosas, com donativos de beneméritos e bibliófilos eborense e, sobretudo, com o depósito legal, a partir de 1931. Uma das incorporações de grande valor foi a Biblioteca da Manizola do Visconde de Esperança que, após a compra pela Fazenda Nacional, foi integrada na Biblioteca Pública de Évora em 1955.

48A criação da Inspeção Geral das Bibliotecas e Arquivos em 1887 constituiu um marco para a biblioteconomia nacional e consequentemente para a Biblioteca de Évora. Marco que possibilitou, através da centralização e fiscalização, garantir a conservação e bom funcionamento das bibliotecas e arquivos. Estes itens foram reforçados com a política biblioteconómica e arquivística do Estado Novo, que exerceu um maior controle sobre a documentação existente em Arquivos e Bibliotecas e iniciou um curso de formação de bibliotecários e arquivistas. Foi neste contexto que a Biblioteca de Évora, durante este período, sofreu mudanças significativas, quer nas instalações, com introdução de melhoramentos, como água canalizada, luz elétrica e telefone, quer no acesso à leitura pública, promovendo a leitura noturna na biblioteca e nos espaços públicos (nos jardins da cidade) e realizando eventos, nomeadamente exposições e conferências.

49Em 2005, a Biblioteca comemorou os 200 anos da sua criação, com diversos eventos que deram a conhecer o seu valioso património bibliográfico e a ação do seu fundador. As comemorações ficaram também marcadas pela vontade de preparar a biblioteca para os novos desafios da era da informação em que vivemos. Medida de especial significado foi o início do empréstimo domiciliário.

50De facto, a biblioteca de Évora, tal como outras intuições biblioteconómicas centenárias e com coleções valiosas, enfrenta nos dias de hoje novos desafios marcados pelas novas funções que as bibliotecas têm na era da informação em que vivemos. As transformações operadas são muitas, mas não devem deslumbrar. Neste domínio, ontem como hoje, os discursos acabam muitas vezes por assumir um pendor utópico ou distópico. Como historiador, procuramos no passado respostas para as questões do presente. Já em 1771, Louis Sébastian Mercier, numa obra visionária, L’An 2440, pensou uma biblioteca real que, «em vez dessas quatro salas de um comprimento enorme e que continham milhares de volumes» (MERCIER, cit. CHARTIER, 1997, 105), estava reduzida a um pequeno gabinete, onde estava o essencial de todos os livros publicados. Este discurso visionário de Sebastien Mercier, com o seu modelo de biblioteca para o ano 2440, tem para nós a vantagem de diagnosticar dois aspetos de atualidade. O primeiro é que tal como há 200 anos o excesso de livros implica uma organização dessa massa documental, uma orientação e literacia da informação que a biblioteca deve assumir. O segundo é que pensar uma biblioteca sem espaço físico ou reduzi-la a um mero gabinete é condenar o leitor à solidão, o que está nas antípodas da essência dos livros, que foram escritos com a finalidade de partilhar ideias, sentimentos, ou estados de alma, o que só se consegue sendo lidos, discutidos e analisados pelos leitores. Mais do que nunca, numa era ameaçada pela virtualidade, a biblioteca deve ser um polo de sociabilidade, promovendo o encontro físico dos leitores e as formas orais de leitura. Neste sentido, a Biblioteca Pública de Évora deve preservar a vocação que o fundador lhe deu: ser a Casa da Sabedoria, preservando não só as suas coleções para as pôr à disposição do público, mas também as suas instalações, as magníficas salas de leitura que são testemunho vivo da sua longa história e valioso património.