Desenhos, plantas e mostruários de mobiliário da antiga «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.» preservados no Arquivo Municipal de Gondomar
Résumés
A antiga «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.» foi fundada em Valbom, concelho de Gondomar (limítrofe da cidade do Porto, Portugal) na década de sessenta do século XX, pelos irmãos Mário Giesta, Hernâni Giesta e Virgílio Giesta. Nos primeiros anos da década de setenta, esta fábrica, liderada por Mário Giesta, era já um dos principais centros de empregabilidade de Valbom. Rapidamente, este centro fabril tornou-se referência a nível nacional na indústria do mobiliário, pela excelência técnica e pela transmissão aos mais jovens do conhecimento da arte da marcenaria em contexto oficinal. Partindo da apresentação dos desenhos deste rico acervo, pretende-se demonstrar a importância e o impacto desta oficina na produção de mobiliário no concelho de Gondomar, na segunda metade do século XX. O valor patrimonial deste legado permite, igualmente, enquadrar a oficina Giesta na herança da arte da marcenaria, atividade que marcou a história deste Município no decurso dos séculos XIX e XX.
The former “Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.” was founded in Valbom, municipality of Gondomar (bordering the city of Porto, Portugal) in the 1960s, by the brothers Mário Giesta, Hernâni Giesta and Virgílio Giesta. In the early seventies, this factory, led by Mário Giesta, was already one of the main employment centers in Valbom. Quickly, this manufacturing center became a national reference in the furniture industry, for its technical excellence and for transmitting to the youngest the knowledge of the art of carpentry in a workshop context. Starting from the presentation and analysis of the drawings of this rich collection, our aim is to demonstrate the importance and impact of this workshop in the production of furniture in the municipality of Gondomar, in the second half of the 20th century. The heritage value of this legacy also allows the Giesta workshop to be part of the heritage of the art of carpentry, an activity that marked the history of this municipality in the course of the 19th and 20th centuries.
Entrées d’index
Keywords : Giestas Factory, drawing, furniture, art of joinery, Valbom
Palavras chaves : Fábrica Giestas, desenho, mobiliário, arte da marcenaria, Valbom
Note de l’auteur
Este artigo integra-se no projeto de doutoramento em Estudos do Património, Especialização em História da Arte, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, intitulado «A arte dos ofícios da madeira: Gondomar como uma “grande fábrica” (século XIX-XXI)», financiado pela FCT (Ref. SFRH/BD/06909/2020) e sob a orientação da Prof. Doutora Ana Cristina Sousa (FLUP-DCTP/CITCEM).
Texte intégral
Introdução
1Com o encerramento da «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.», nos finais da década de noventa, o espólio ficou ao encargo da família Giesta. Anos mais tarde, concretamente em 2018, por vontade do antigo proprietário Mário Giesta, foi doado parte do acervo documental da «Fábrica Giestas» ao Arquivo Municipal de Gondomar. Dos itens doados destacam-se os desenhos de pormenor e à escala, as plantas com anotações (medidas, nome das madeiras) e os desenhos de amostra aos futuros compradores. Atualmente, o espólio já se encontra devidamente inventariado e acondicionado. Pretende-se, com a exposição deste estudo, partilhar o panorama que contribuiu para o nascimento da marcenaria e da «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.» e, sobretudo, divulgar os desenhos de mobiliário concebidos nesta fábrica.
O eclodir da marcenaria em Gondomar
2Gondomar é um município de grandes dimensões circunscrito pela cidade do Porto, Vila Nova de Gaia, Valongo, Paredes, Maia, Penafiel, Castelo de Paiva, Arouca e Santa Maria da Feira. Este território acompanha em toda a sua extensão o rio Douro, que deteve um papel crucial para a história económica, social e cultural do município, como meio alimentício e como rota de circulação de mercadorias e pessoas1. A par da pesca e da navegação pelo Douro, era ainda prática as atividades agrícolas e pecuárias distribuídas por todo o concelho, destinando-se a maioria destes bens alimentares a abastecer a cidade do Porto. Este ambiente agrícola prevaleceu até finais do século XX, altura em que ocorreu o recuo dos campos agrícolas para dar lugar a áreas urbanizadas, a maioria das quais como dormitórios do Porto2.
3Foi a partir desta paisagem, predominantemente rural, que emergiu a indústria do setor secundário em diferentes áreas. Assim o informa o Anuario Commercial do Porto, de 1953, com a seguinte descrição: «[…] tem curiosas tradições históricas esta vila, […] as mais variadas indústrias das quais se destacam as de marcenaria, serração, botões, tecidos e a antiga e famosa Arte, manufactura as tão admiradas filigranas de ouro e prata»3.
4O registo mais antigo encontrado, que atesta a presença da marcenaria em Gondomar, encontra-se num testamento de 1838. Neste testamento de Maria de Castro foram testemunhas «José Alves, filho de António Francisco Alves Afonso, marceneiro (…) Henrique de Castro, marceneiro, filho de João de Castro (…) todos deste lugar do Pinheiro de Além, freguesia de Valbom»4. Os testamentos do município são ainda relevantes na medida em que fornecem a identificação de bens manufaturados em madeira, desde as usuais cadeiras em pinho e as caixas de madeira de castanho ou pinho, para guardar a roupa, ao mobiliário de excelente qualidade, como uma cómoda de pau-preto, cadeiras de couro, uma mesa de pau-amarelo, mesas de pau-preto, um baú, uma caixa pequena e vários santuários e imagens sacras5.
5Em 1874, Pinho Leal faz alusão à marcenaria nas freguesias de S. Cosme e Valbom. Em S. Cosme, para além do fabrico de obras em filigrana de ouro e prata, também eram produzidos muitos «artefactos de marcenaria»6. No tocante a Valbom a informação é mais precisa, uma vez que é indicada a existência de «35 officinas de marceneiro»7 que empregavam oficiais e aprendizes. Após oito anos, com a publicação do Inquérito Industrial, não só se confirma as «35 officinas»8 com 120 operários em Valbom, como também são indicadas «2 officinas e 6 operários» em S. Cosme e «10 officinas e 30 operários» em Fânzeres9, sendo estas as freguesias mais ativas no concelho.
6Este desenvolvimento industrial precoce é resultado da proximidade entre as freguesias de S. Cosme e Valbom e a respetiva adjacência ao rio Douro, mas principalmente devido aos limites territoriais de Valbom com Campanhã, freguesia pertencente à cidade do Porto, que se encontrava igualmente em plena expansão no mesmo ramo da ourivesaria e da marcenaria10. À data de 1874, Campanhã já escoava os artefactos de marcenaria para o Porto11, enquanto que para Valbom só se confirma o fornecimento de «todos, ou pelo menos a maior parte dos trabalhos produzidos, destinados ao Porto»12, em 1904.
7É a partir da década de sessenta do século XIX que se verifica o eclodir do desenvolvimento da produção de mobiliário em Gondomar, perpetuando-se ao longo do século XX. Os registos paroquiais de Valbom elucidam para uma realidade migratória de indivíduos que, detentores do conhecimento especializado (marceneiros, entalhadores, envernizadores, estofadores, empalhadeiras, polidores e torneiros), deslocavam-se no interior do próprio concelho ou davam entrada em Gondomar oriundos de outras localidades com o objetivo de trabalhar nas freguesias com os núcleos de produção mais desenvolvidos. A proximidade entre Valbom, S. Cosme, Fânzeres e Campanhã, a par do desenvolvimento nas mesmas atividades industriais, proporcionou ainda a união entre várias famílias por meio do matrimónio.
8O progresso da marcenaria, embora significativo, foi pontuado por duas crises: a primeira nas décadas de 1870 e 1880 e a segunda na década de 1920. A primeira crise teve início por volta de 1876 devido a dois fatores basilares: as dificuldades agrícolas em Portugal, fruto da proliferação da filoxera no vale do Douro e a importação de mobílias estrangeiras para Portugal. A maioria destas mobílias eram importadas segundo «um contrabando escandaloso que mais de uma pessoa denuncia a voz baixa»13. As oficinas de marcenaria, em especial as de Gondomar, não tinham como revidar, pois, para além do desenvolvimento avançado da indústria estrangeira e dos capitais abundantes para abastecer os depósitos com madeiras nas suas oficinas, os operários eram qualificados técnica e artisticamente14. De facto, a quebra na indústria da marcenaria foi tal que o número de operários reduziu significativamente – «aquelles eram 700 ou 800, estes serão 200»15 –, acabando muitos dos profissionais por dedicar-se à agricultura, enquanto outros optaram por emigrar para o Brasil, como é possível constatar no seguinte trecho:
«[…] compareceu Serafim Pereira, solteiro, […], marceneiro, filho de José Pereira e Maria de Jesus, do logar da Colmieira, freguesia de Valbom, d’este concelho […] disse que pretendia embarcar, como emigrante, para o Rio de Janeiro, império do Brazil, por entender que ali melhor poderá conseguir os meios de sua subsistência.»16
9Para fazer face à concorrência foram tomadas duas medidas: primeiro, as oficinas que resistiam ao problema dedicaram-se ao contínuo fabrico de mobiliário, por esta altura escasso, cadeiras e sobretudo caixas para charutos para as fábricas de tabaco do Porto – coincidindo com o irromper da indústria tabaqueira17 –; e segundo, sendo a esmagadora maioria dos trabalhadores oficinais analfabetos e sem conhecimento de desenho técnico, deram início à cópia dos modelos das mobílias estrangeiras, através da observação e da execução técnica que tão habilmente dominavam, para fazer frente à situação18. Já a crise de 1929 foi referida por João Couto, da seguinte forma:
«Quase o mesmo podemos dizer da marcenaria, que, embora hoje atravesse uma crise bastante acentuada, ainda assim ocupa um lugar importante na vida económica do concelho. […] Os mobiliários da cidade do Porto e doutras terras estão hoje abastecidos com móveis manufacturados em Valbom, Vila de Gondomar [S. Cosme], Fânzeres e alguns de S. Pedro da Cova. Pode dizer-se que os melhores fornecedores deste género são de Gondomar.»19
10Tratando-se a marcenaria de uma importante atividade para a economia do concelho, foram fundadas três associações e um sindicato como apoio aos trabalhadores entre 1877 e 1939. Em 1921, foi fundada a Escola Industrial de Gondomar «Marques Leitão» onde, entre os vários ofícios, eram lecionadas as artes da marcenaria e da talha. Mais tarde, em 1932, foi inaugurado o 1.º Armazém de Vendas da «Cooperativa de Mobiliário de Gondomar». No ano seguinte, esta cooperativa e a «Associação dos Industriais de Marcenaria de Gondomar» representavam Gondomar na Grande Exposição Industrial Portuguesa de 1933 e no Palácio de Cristal no Porto, respetivamente20.
Oficina vs fábrica
11Em pleno século XVIII, os ofícios eram geridos por corporações que defendiam um monopólio na aprendizagem e na produção, assim como na fiscalização do comércio e do mercado de trabalho21. Os regimentos corporativos determinavam ainda que os mestres apenas podiam concretizar nas suas oficinas as obras que competiam ao seu ofício, ou seja, um ensamblador tinha de recorrer a mestres de outros ofícios como entalhadores, torneiros, douradores, entre outros, para finalizarem o mobiliário, processo moroso e um entrave para uma produção em maior escala22. Porém, as corporações viram-se ameaçadas pelas medidas implementadas pelo Estado, nas quais isentava os artífices, nacionais ou estrangeiros, «do controlo corporativo da respetiva bandeira, dos encargos que lhe eram anexos e da inspeção dos juízes»23. Com o alvará de 1809, os artífices podiam requerer a isenção de direitos de importação das matérias-primas e das exportações das manufaturas, bem como a exclusividade de uma nova criação por quatorze anos24. Estas novas medidas permitiram a criação das «fábricas de móveis» que podiam empregar oficiais e aprendizes de diversos ofícios necessários para as novas criações, indo contra os regimentos das corporações que impediam os mestres de executar obras de outros ofícios ou de albergar artesãos de outras especializações na sua loja25. Nas três primeiras décadas de Oitocentos, as corporações ainda lutavam pela sua sobrevivência, mas sem sucesso, tendo sido extinguidas em 1834.
12Na segunda metade do século XIX, após o término das corporações, a cidade do Porto já integrava certas oficinas na categoria das «grandes oficinas», dado que eram constituídas por várias especializações. A título de exemplo apresenta-se a «grande oficina» de Cipriano de Oliveira e Silva constituída «com 53 officiais, sendo 33 marceneiros, 4 entalhadores, 10 polidores, 2 torneiros, 4 palheireiros e 8 aprendizes […] o fabricante tem anexa uma oficina de estofador […]»26.
13Ao contrário da invicta, Gondomar manteve as «oficinas menores», ou seja, oficinas familiares em que cada oficina continuava a desempenhar apenas uma especialidade, tal como sucedia no tempo das corporações. Deste modo, o serviço era distribuído pelas diferentes oficinas para possibilitar a concretização integral do mobiliário. O crescimento da produção de mobiliário e a respetiva procura proporcionou o envolvimento da comunidade, inclusive das mulheres e jovens raparigas «empalhadeiras» que aplicavam a palhinha no mobiliário no domicílio27. Esta realidade permaneceu praticamente imutável desde a segunda metade do século XIX até finais do século XX, em parte devido à presença dos núcleos oficinais pré-existentes, que impossibilitava a criação de novas infraestruturas aptas para albergar as várias especialidades num único recinto, e também devido à paisagem predominantemente agrícola. É neste cenário oficinal, artesanal e familiar que despontou a prestigiada «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.».
A origem da «Fábrica Giestas»
14Na verdade, a «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.», designada entre os gondomarenses simplesmente como «Fábrica Giestas», não é uma criação isolada e sem antecedentes. Pelo contrário, é o culminar de uma tradição familiar no ramo da marcenaria em Valbom.
15Tudo começou em 1918, quando Joaquim Giesta fundou a «Oficina de marceneiro de Joaquim de Sousa Giesta» na antiga freguesia de Valbom. No entanto, até à data, apenas é possível acompanhar documentalmente a existência desta oficina de 1929 a 1964, a partir dos registos publicitários do «Anuário do Commercio do Porto». Assim, durante quarenta e cinco anos o nome de Joaquim de Sousa Giesta manteve-se presente nos anuários, inserido na categoria de «marcenarias», de 1929 a 1959, e, posteriormente, em «marcenarias e móveis de madeira (fabricantes)», de 1960 a 1964. Ao longo deste período, a publicidade restringiu-se simplesmente ao nome e morada (1929–1934), nome (1937–1956) e nome e telefone (1957–1964)28. Em todos estes anos foi publicado apenas um anúncio integral em 193029 que permite entender superficialmente as práticas do mobiliário desta oficina (Fig. 1). Não se sabe ao certo quando ocorreu a passagem desta oficina da «Rua Fonte Pedrinha, 56, Valbom» (Fig. 2) para a «Rua Dr. Joaquim Manuel da Costa, 1413, Valbom» (Fig. 2), porém, em 1963 já se encontrava instalada nesta última30.
Figura 1. Anúncio publicitário da «Oficina de Marceneiro de Joaquim de Souza Giesta».

Fonte: Anuario Commercial do Porto, de 1930, sob a direção de Alexandre Barros, p. 777.
Figura 2. Mapa com a localização da oficina de Joaquim Giesta (1 e 2) e da «Fábrica de Móveis Giesta de Valbom, Lda.» (3), com as respetivas imagens dos locais onde outrora laboraram as oficinas e fábrica.

Fonte: Imagens Google Maps.
16Joaquim de Sousa Giesta foi progenitor de três filhos: Hernâni de Sousa Giesta (mais velho), Mário de Sousa Giesta e Virgílio de Sousa Giesta (caçula). A partir do testemunho de Mário Giesta ao jornal local VivaCidade, onde referiu que «de dia tinha que estudar e trabalhar na oficina do seu pai»31, depreende-se que todos os filhos de Joaquim Giesta tiveram contacto com a produção de mobiliário desde muito novos, prática comum à época.
17Foi no início da década de sessenta de Novecentos que tudo mudou, com o regresso de Mário de Sousa Giesta à terra Natal (Valbom) para se dedicar à indústria de mobiliário da família, após uma temporada em Lisboa como trabalhador nas funções públicas do Ministério da Indústria32. Assim, em 1964 é publicitado pela última vez o nome de «Joaquim de Sousa Giesta» para dar lugar à nova designação como «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.», fundada pelos três irmãos neste mesmo ano e publicitada pela primeira vez no Anuário Commercial do Porto de 1965, na categoria de «marcenaria e móveis de madeira (fabricantes)». De 1970 a 1974, para além da permanência na categoria anteriormente identificada, também passou a ser inserida, simultaneamente, em «madeiras e serrações». Isto significa que esta fábrica também concebia o devido tratamento da madeira antes de a usar no fabrico do mobiliário.
18Apesar de existir publicidade relativa à «Fábrica Giestas» nos anuários comerciais do Porto, a sua localização inaugural é desconhecida. Todavia, é possível que esta fábrica tenha sido fundada na «Rua Dr. Joaquim Manuel da Costa, 940, Valbom, Gondomar» (Fig. 2), permanecendo na mesma até ao seu encerramento. Esta imensa e prestigiada fábrica, das poucas existentes em Gondomar com tal dimensão, encerrou nos finais da década de noventa do século XX devido à crise já instaurada, resultado do implemento das grandes superfícies estrangeiras em Portugal que disseminavam um mobiliário com preços módicos, feito em série e de fácil transporte e montagem.
Ofícios integrados na «Fábrica Giestas»
19A partir do «Livro de Férias [Folha de Salários], ano 1950» de Joaquim de Sousa Giesta e do livro de «Imposto Profissional, ano 1973» da «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.», preservados no Arquivo de Gondomar, foi possível comparar a dimensão entre as duas empresas de mobiliário.
20Em dezembro de 1949, a «Oficina de marceneiro de Joaquim de Sousa Giesta» era constituída apenas por: sete marceneiros de 1.ª; oito marceneiros de 2.ª; um marceneiro de 3.ª; um marceneiro ajudante; um entalhador de 1.ª e dois entalhadores de 2.ª. Salienta-se ainda que Hernâni Sousa Giesta e Virgílio Sousa Giesta trabalhavam na oficina do progenitor como marceneiros de 1.ª categoria.
21À data de 1975, segundo o Imposto Profissional33, a «Fábrica Giestas» concentrava um elevado número de especializações e categorias, perfazendo um total de 130 trabalhadores. Neste documento consta: um desenhador; um entalhador; quatro entalhadores de 1.ª; dois entalhadores de 2.ª; dois entalhadores de 3.ª; cinco entalhadores-aprendizes; um marceneiro; sessenta marceneiros de 1ª; doze marceneiros de 2.ª; cinco marceneiros-aprendizes; um serrador de 1.ª; oito polidores de 1.ª; três polidores de 2.ª; três polidores de 3.ª; dois polidores-ajudantes; um torneiro de 1.ª; um torneiro-ajudante; dois tupieiros de 1.ª; um tupieiro de 3.ª; três sócios-gerentes; três empregados de escritório; um trabalhador de carga-descarga; um motorista; seis trabalhadores indiferenciados e uma empregada de limpeza. Importa evidenciar que os serviços de talha e marcenaria são os únicos ofícios que têm ao seu encargo a formação dos jovens aprendizes. Também são estes ofícios que reúnem o maior número de trabalhadores.
Desenhos, plantas e mostruários
22De um modesto espaço oficinal, semelhante a muitos outros dispersos pelo território de Gondomar, a «Fábrica Giestas» eclodiu com vigor para dar continuidade à tradição familiar de produção de mobiliário clássico, mas também predisposta a acompanhar as últimas inovações no fabrico de mobiliário contemporâneo. Tratando-se de um fabrico de excelência, eram empregues madeiras «ricas» como pau-santo, pau-rosa, pau-cetim, nogueira, mutene, sucupira, entre muitas outras, e respetivos folheados, devidamente tratadas e secas em estufa própria, que satisfaziam as exigências da clientela. Esta fábrica era ainda vocacionada na execução de vários serviços, dos mais simples aos mais delicados, como reproduções, boiseries e serviços especiais por medida. A par da grande variedade de matéria-prima estão também os diversos móveis que eram concebidos: armários de sala de jantar; cadeiras, sofás, bergers, banquinhos; camas; chiffoniers; cómodas e arcas; estantes; gueridons; meias-cómodas, mesas de cabeceira, toucadores; mesas de jogo; mesas de sala de jantar e reuniões; mesinhas baixas; móveis de bar, carros de chá; móveis diversos de apoio para escritório; móveis para televisão e aparelhagem; papeleiras, escrivaninhas; roupeiros; secretárias, mesas de abas; sideboards, consolas, trinchantes; vitrines, cantoneiras; entre muitos outros artigos.
23Para cada peça de mobiliário era concebido um desenho, que por sua vez era registado no livro de desenhos. Neste livro eram assentes o nome do cliente/empresa, a numeração do desenho, a designação e características do móvel representado e o tipo de papel utilizado (cenário, vegetal) (Fig. 3). A título de exemplo apresenta-se o registo número «687 – cama d’orelhas, empalhada»34 e a respetiva fotografia da peça já finalizada35 (Fig. 3). A partir deste documento foi ainda possível verificar que os primeiros desenhos respeitavam os modelos franceses, ingleses, holandeses, italianos e nacionais – Renascença, Regência, Luís XV, Luís XVI, Império, Queen Anne, D. João V, D. José, D. Maria, Arte Nova, entre muitos outros36.
Figura 3. Livro de desenhos (esquerda), pormenor da descrição do mobiliário no livro de desenhos (direita) e fotografia de «cama d’orelhas, empalhada» finalizada.

Fonte: Fotografias superiores de Cecília Cardoso. Livro de Desenhos da «Fábrica Giestas» e fotografia (baixo) integrados no espólio da «Fábrica Giestas», preservado no Arquivo Municipal de Gondomar.
24De acordo com os desenhos de mobiliário doados ao Arquivo Municipal de Gondomar, confirma-se que estes eram elaborados em diferentes tipologias: esboços, plantas, desenhos de pormenor, desenhos ao tamanho real e mostruários.
25Os esboços, também designados pelo desenhista da fábrica como «apontamentos» (Fig. 4), podiam representar simplesmente uma peça de mobiliário ou a organização de um conjunto de móveis no espaço. Na Figura 4 são expostos dois esboços, uma mobília de sala de jantar e outra de quarto. Apesar de meros apontamentos elaborados à mão livre, é possível observar a noção de volume e espacialidade, devido ao recurso da perspetiva. Estes primeiros esboços eram cruciais, quer para a execução dos desenhos futuros, quer para o comitente visualizar a disposição do mobiliário no espaço.
Figura 4. Esboços / «Apontamentos» da organização do mobiliário de sala e quarto no espaço.

Fonte: Fotografias de Cecília Cardoso, 2021. Desenhos (s/d) integrados no espólio da «Fábrica Giestas», preservado no Arquivo Municipal de Gondomar.
26As plantas, mais numerosas em todo o espólio, apresentam um desenho técnico, direcionado para os operários como guias de execução. Nestas plantas são comuns as indicações respetivas à matéria-prima a ser utilizada, a anotação das medidas reais, os pormenores de ensamblagem, o implemento de outros materiais (vidro, latão), as ferragens pormenorizadas (puxadores), bem como outras anotações necessárias à execução final do móvel. A título de exemplo são exibidos apenas três exemplares. A primeira planta (Fig. 5) corresponde ao desenho técnico de uma cómoda com espelho embutido. Foi desenvolvida a vista frontal e lateral do móvel, bem como os pormenores dos cantos da base, da ensamblagem do espelho e o modelo dos puxadores. Já a segunda planta diz respeito a um par de armários para depósito de chapéus, bengalas e guarda-chuvas (Fig. 6). Neste par de armários geminados, cada um com as dimensões de 195×54 cm, sobressai a conjugação dos materiais: madeira de nogueira, rede de latão e vidro velho. Por último, é apresentado um armário (roupeiro) de grandes dimensões, 320×260 cm, que se diferencia pela representação da vista exterior e interior no mesmo plano (Fig. 7). As linhas contínuas representam a visão exterior, enquanto as linhas tracejadas remetem para a organização interna do armário. Destaca-se ainda as indicações para a colocação da folha de madeira, onde é referido «raiz» e a localização dos varões para as gravatas, do espelho interior ao centro, e o calceiro. Nesta planta é ainda representado o pormenor decorativo em formato de flor.
Figura 5. Planta em desenho técnico de uma cómoda com espelho embutido (visão frontal e lateral) e respetivos pormenores.

Fonte: Fotografias de Cecília Cardoso, 2021. Desenhos (s/d) integrados no espólio da «Fábrica Giestas», preservado no Arquivo Municipal de Gondomar.
Figura 6. Planta em desenho técnico de par de armários, com duas portas e uma gaveta fingidas, para guardar chapéus, bengalas e guarda-chuvas.

Fonte: Fotografias de Cecília Cardoso, 2021. Desenhos (s/d) integrados no espólio da «Fábrica Giestas», preservado no Arquivo Municipal de Gondomar.
Figura 7. Planta em desenho técnico de armário (roupeiro) e respetivo pormenor decorativo floral.

Fonte: Fotografias de Cecília Cardoso, 2021. Desenhos (s/d) integrados no espólio da «Fábrica Giestas», preservado no Arquivo Municipal de Gondomar.
27Embora tenha sido doado um número considerável de desenhos ao tamanho real, optou-se por expor apenas o pormenor de um espelho, devido à qualidade técnica. O presente pormenor corresponde ao remate de um espelho do estilo Luís XV (Fig. 8), constituído por elementos vegetalistas (folha de acanto) e por duas figuras com características humanas e fantásticas (grutescos). A nível técnico, este pormenor está secionado em duas partes, uma parte pormenorizada e com tratamento plástico (esquerda) e a outra surge como um breve apontamento dos motivos. Apesar da harmonia entre as figuras e os elementos vegetalistas, o desenho apresenta uma «falsa simetria» visível sobretudo pela disposição de registos pontuais das folhas de acanto. Este pormenor escultórico ficava ao encargo do entalhador. Neste sentido, o tratamento plástico referido anteriormente serve como indicação para a profundidade que o entalhe deve adquirir. Por fim, salienta-se os quatro espaços que contêm a palavra «roto», a qual significa que o entalhador responsável por esta obra tem de retirar toda a madeira por forma a que estes espaços sejam totalmente abertos.
Figura 8. Desenho ao tamanho real de espelho estilo Luís XV (pormenor do remate).

Fonte: Desenho a grafite (s/d) integrado no espólio da «Fábrica Giestas», preservado no Arquivo Municipal de Gondomar, cota: Giestas/3526.
28Entre os vários desenhos já enunciados foram também descobertos desenhos avulso de mobiliário que, dadas as suas caraterísticas, muito possivelmente integravam uma espécie de mostruário aos futuros clientes. Estes registos de amostra apresentam três técnicas distintas: o desenho à mão, o desenho impresso e a fotografia a cores. Os desenhos elaborados à mão são demarcados a caneta preta e muito rigorosos quanto ao pormenor e à sugestão para uma possível organização decorativa (Fig. 9). Já os desenhos impressos apresentam especialmente diversos modelos de guéridons (Fig. 9). A fotografia ao contrário dos processos anteriores possibilitou a amostra final do móvel bem como a coloração das madeiras, folheados e ferragens (Fig. 9). Os desenhos à mão e os desenhos impressos são avulsos e sem datação, o que dificulta a perceção de como eram constituídos estes mostruários. Por outro lado, as fotografias já integram um catálogo completo das várias peças de mobiliário concebidas na fábrica, com a respetiva referência, descrição e modelo (Fig. 9). Pela datação que certas fotografias apresentam, este catálogo de mobiliário terá sido desenvolvido nos primeiros anos da década de 1990. Estes exemplares são importantes na medida em que permitem delinear o processo evolutivo da publicidade que era praticada nesta fábrica, desde a projeção final até às fotografias a cores.
Figura 9. Mostruários de mobiliário (desenho, desenho impresso, fotografias a cores).

Fonte: Imagens (s/d) integradas no espólio da «Fábrica Giestas» e preservadas no Arquivo Municipal de Gondomar.
29A procura pelos serviços desta fábrica chegava de vários pontos do país, desde pedidos de orçamento, de outras empresas de mobiliário como «Móveis Olinda, Lda. – Decorações, Estofos, Alcatifas», sediada em Lisboa, a pedidos de encomenda por iniciativa de particulares. Contudo, a produção não se circunscreveu a nível nacional, mas expandiu-se para vários países. Para isso, a oficina concebeu o «Catálogo de exportação» (Fig. 10) onde era divulgado o mobiliário, com a devida descrição em inglês por forma a facilitar a entrada no mercado internacional.
Figura 10. Exemplos de peças de mobiliário que constitui o «Catálogo de exportação».

Fonte: Fotografias pertencentes ao espólio da «Fábrica Giestas» preservado no Arquivo Municipal de Gondomar.
Considerações finais
30O concelho de Gondomar apresenta um crescimento industrial gradual na segunda metade do século XIX. Na década de 1920, são várias as oficinas em plena atividade, entre as quais a de Joaquim Giesta, progenitor dos três irmãos que viriam a fundar uma das maiores e mais prestigiadas fábricas do município: a «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.». Esta fábrica concentrou um elevado número de especializações e ainda promoveu a formação em contexto oficinal dos mais jovens, nos ofícios de marceneiro e entalhador. Foram vários os estilos de mobiliário do passado reproduzidos nesta fábrica, assim como a criação de novos modelos. As técnicas artesanais relativas à montagem e à decoração do mobiliário perpetuaram até à década de noventa do século XX, como a ensamblagem, a marchetaria, a tornearia e a talha. Mesmo mantendo a tradição, a «Fábrica Giestas» procurou acompanhar as soluções de mobiliário contemporâneas.
31Atendendo à participação ativa de Mário Giesta no concelho de Gondomar, entre as quais como Presidente da Junta da antiga freguesia de Valbom, Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Gondomar e fundador e líder da «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.», será inaugurada a exposição «Móveis Giesta: a memória de uma fábrica» a 2 de outubro de 2021, com o intuito de apresentar o percurso biográfico de Mário Giesta e a exibição pública de parte do acervo da fábrica doado ao município. Esta iniciativa permite não só prestar a devida homenagem a este benemérito, mas também valorar uma atividade outrora muito próspera e fundamental para a economia concelhia, fazendo recordar ou dar a conhecer aos mais jovens um património que marcou a identidade do concelho.
Bibliographie
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Notes de bas de page
1 Sousa et al., 2021, 276.
2 Sousa et al., 2021, 276.
3 Viseu Júnior et al., 1954, 893.
4 Arquivo Municipal de Gondomar, Testamento de 1838, Gondomar, Liv. 4, n.º 26, fl. 54v.
5 Informação consultada nos testamentos de 1838 a 1843 preservados no Arquivo Municipal de Gondomar.
6 Pinho Leal, 1874b, 308.
7 Pinho Leal, 1882, 40.
8 Teixeira et al., 1881, 47.
9 Teixeira et al., 1881, 47.
10 Cardoso, 2019, 143.
11 Pinho Leal, 1874a, 59.
12 Pereira et al., 1915, 253.
13 Teixeira et al., 1881, 48.
14 Cardoso, 2019, 146.
15 Teixeira et al., 1881, 48.
16 Arquivo Municipal de Gondomar, Termos de consentimento de identidade para obter passaporte para fora do reino, de 1881, Liv. 4, n.º 14, fl. 36f.
17 O levantamento desta temática está a ser desenvolvido no âmbito da tese de doutoramento em curso.
18 Teixeira et al., 1881, 48.
19 Oliveira, 1979, Vol. IV, 85.
20 Oliveira, 1979, Vol. IV, 186.
21 Bastos, 2016, 189.
22 Bastos, 2016, 190.
23 Bastos, 2016, 189.
24 Bastos, 2016, 189.
25 Bastos, 2016, 190.
26 Teixeira et al., 1881, 256.
27 Cardoso, 2021, 284.
28 Informação recolhida a partir dos Anuários Comerciais do Porto de Alexandre Barros e Santos Viseu de 1929 a 1964.
29 Barros et al., 1930, 777.
30 Arquivo Municipal de Gondomar, Livro de Compras, outubro de 1963.
31 Giesta, o nome que ficará eternizado em Gondomar, 2021, 16.
32 Giesta, o nome que ficará eternizado em Gondomar, 2021, 16.
33 Arquivo Municipal de Gondomar, Imposto Profissional, ano 1975, Fábrica de Móveis Giesta de Valbom, Lda.
34 Arquivo Municipal de Gondomar, Livro de desenhos, S/d, espólio «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.».
35 Arquivo Municipal de Gondomar, Banco de imagens, espólio «Fábrica de Móveis Giestas de Valbom, Lda.».
36 Para mais informação sobre os referidos estilos de mobiliário consultar Aussel, 1974; Champeaux, 1885; Freire et al., 2001; e Guimarães et al., 1924.
Auteur
-
Cecília Mónica dos Santos Cardoso
Faculdade de Letras da Universidade do Porto / CITCEM
ceciliamscardoso@gmail.com

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