Alimentos têm formas e cores, cheiros e sabores, atributos que emitem efeitos de sentido; e a culinária os transforma em outras configurações e cores; harmoniza – ou contrapõe – odores e sabores.1
Sandra Ramalho e Oliveira

1 Os hábitos alimentares vêm sendo tópico de longos debates nos últimos anos. Alimentos a serem ou não consumidos, saberes a serem ou não difundidos, lugares a serem frequentados e o compartilhamento frenético do que, como e onde se come/ se saboreia têm se tornado práticas cada vez mais comuns entre a população ocidental. Mais do que isso, as mídias incorporam o apelo do tema em seus programas de televisão, onde muito frequentemente competições culinárias ganham destaque e audiência. Com o acesso cada vez mais facilitado à internet, o descobrimento de novas receitas e sua relação com a construção de hábitos corporais ligados à alimentação está a uma pesquisa no Google de distância de cada um. Compartilhar o que se come virou sinônimo de status social. A alimentação como tópico de discussões acaloradas e a forma como vivemos em torno de como e do que comer vai ser considerada por Paolo Rossi2, historiador italiano, como uma obsessão e por Isabel Allende3“como um dos caminhos mais diretos para a luxúria e, se avançarmos um pouco mais, para a perdição da alma”.

2 Há diversas maneiras de se encarar a alimentação neste nosso início de século XXI: há os que praticam o vegetarianismo, os que seguem o veganismo, os macrobióticos, os consumidores de fastfood. Dentre todas as práticas, algo parece comum: o ato de comer envolve escolhas e é delimitado por práticas culturais. Tanto é que as questões até aqui levantadas são próprias deste nosso presente, mas, outros tempos passados apontam para diferentes formas de comer e de se relacionar com a comida e seus sabores. O contexto de certa abundância de alimentos4 no mundo ocidental é um fenômeno recente. Vencer a fome foi um dos principais desafios, seja durante o período pré-histórico, ou mesmo na modernidade. Driblar o apodrecimento de alimentos e sobreviver em meio a escassez são algumas das marcas da história.

3 Mas, além de vencer a fome, homens e mulheres dominaram produtos, inventaram, produziram e criaram formas de comer. Atribuíram sentidos para uma ação que carrega em si diversos significados que permitiram inventariar possibilidades de mobilização e educação dos sentidos corporais (olfato, visão, tato, paladar) como canal de desenvolvimento de novas sensibilidades ao ato de comer e de portar-se à mesa, por exemplo. Os pratos servidos no dia a dia da casa são diferentes das receitas dos dias festivos; a partilha do alimento em momentos de sociabilidades é diferente do comer sozinho; comer fora é uma experiência que se difere do comer em casa. Por isso comer e beber são práticas culturais, localizadas entre a natureza e a cultura, marcadas pela subjetividade, pelo simbolismo da ação, pelas escolhas deliberadas e pelos produtos e condições disponíveis em cada tempo e espaço. São, igualmente, maneiras de expressar pertencimentos e identificações além de serem elementos de sociabilidades e comunicações segundo Montanari5 (2016) para quem:

É por isso que toda narrativa sobre o alimento e a mesa possui uma densidade especial, uma trama de perspectivas que a enriquece de conteúdos e significados. (...) As narrativas sobre a mesa têm tanto a dizer porque é a própria mesa que narra. Ela narra a fome e as maneiras como o homem procurou transformá-la em ocasião de prazer (p. 11).

4 Uma das principais marcas da alteração da forma de consumir alimentos é a construção de lugares/instituições destinadas ao comer e ao beber. No Brasil, por exemplo, os restaurantes, sorveterias, cafés e confeitarias são exemplos de empreendimentos próprios datados do final do século XIX (ou início do século XX) e que marcam o aprofundamento do capitalismo e de uma forma de vida burguesa nas cidades brasileiras. Neste sentido, a vida na cidade era pulsante e viver na modernidade significava, dentre outras coisas, frequentar espaços de distinção social, tais como os restaurantes e cafés. Nestes casos, o comer e o beber marcam uma sociabilidade burguesa, especialmente da adoção de uma cultura francesa, que foi significativa na construção da modernidade brasileira, ou da Belle Époque tropical. Frederico Toscano destaca que “Cafés, restaurantes, confeitarias e mesmo o hábito de se comer fora de casa puramente pelo prazer acarretado pela sociabilidade do tal ato eram, afinal de contas, criações francesas”6. Comer fora estava relacionado, quase sempre, ao tempo do lazer e para isso estabelecimentos próprios foram criados e fomentados. Em contrapartida, as pensões, por exemplo, serviam almoços a baixo custo para a população trabalhadora. Neste caso onde comer promovia uma diferenciação social que tinha no alimento o cerne da questão.

5Essa formulação é mesmo subjetiva, mas conecta-se a uma questão marcada pelo recorte de classes e grupos sociais. Assim, o gosto, que à primeira vista parece fruto de uma escolha particular baseada em sensações, passa a ser interpretado como uma construção. Se na superfície da análise está a sensação de que algo causa a alguém, mais profundamente está uma teia de relações sociais, engendradas pela racionalidade, que marcam também as escolhas. Assim, “O gosto não é de fato uma realidade subjetiva e incomunicável, mas coletiva e comunicada”7. Em um primeiro plano, ao falar de sociabilidades em torno da alimentação, a primeira expressão que nos vem à mente são os restaurantes e cafés. Flandrin8 levanta uma importante reflexão nos seguintes termos “restaria saber se a noção de bom gosto – ou a de mau gosto, que é seu contrário – surgiu primeiro no campo da alimentação ou no domínio artístico e literário. O certo é que no começo do século XVII ela não existia nem em um, nem em outro.

6 O ato de comer - e o alimento como seu preliminar - é um bem cultural e, portanto, se modifica, transforma-se com o passar do tempo, como literariamente descreveu o personagem Pierre Arthens, no romance “A morte do Gourmet”,: “Tão longe quanto datam minhas lembranças, sempre gostei de comer. [...] No cardápio das festividades, houve, assim, carne com molho, batatas no molho e material para molhar tudo isso.[,,,]. Mas nunca mais degustei com tanta avidez quanto à mesa de minha avó batatas encharcadas de molho, pequenas esponjas deliciosas”9.

7As sociabilidades que aparecem em papéis são importantes elementos para vislumbrar histórias até então pouco vistas. A história da alimentação é um campo complexo. Se por um lado visa analisar as formas de alimentação de homens e mulheres, em determinados tempos e espaços, as fontes colocam um limite difícil de se cruzar. Como ter acesso a hábitos alimentares? Coleções de cardápios, anúncios de jornais, colunas de jornais sobre culinária e livros de receitas dão pistas de por onde caminhar. A História Oral também tem sido uma grande aliada daqueles que se dedicam a estes estudos, mas, boa parte desses exemplos nos dá acessos à vida pública, a práticas alimentares de consumo na rua. Como então chegar às formas subjetivas de cozinhar de mulheres comuns? Como perceber as táticas com que levavam a vida cotidiana? Mais ainda, como pinçar aspectos de um cotidiano? Como se sabe pesquisar o cotidiano se mostra como desafio para o historiador, especialmente porque as pistas deixadas pelas pessoas comuns se perdem facilmente com o passar dos anos.

8 Os cadernos de receitas são exemplos de documentos abertos para o historiador que se dedica a pensar a vida comum pois se incluem como objetos da cultura material de uma sociedade e por consequência, são tratados como patrimônios documentais assim descritos “ [...] a partir do qual podemos mapear e (re) constituir alguns espaços e topos ( como a casa, a cozinha, o corpo), [comportamentos] e relações sociais (homens, mulheres, relações de gênero, maridos, pais, donas de casa, mãe, esposa, casal, filhos, namorados, amantes, etc,) sentimentos e afetos”10.

9Assim, pode-se considerar que a construção de um caderno de receitas liga-se primeiramente, pela constatação de uma sociabilidade: um caderno de receitas é construído pelo reconhecimento do outro. São as receitas de outras pessoas que são repassadas a alguém, que as registra. Mostram sociabilidades, e mais marcadamente, sociabilidades femininas. O cuidado com as tarefas domésticas, a responsabilidade sobre os filhos, o mundo dos afetos e dos sentimentos, foram atribuídos à condição feminina em boa parte do século XX. Por isso, a escrita de um caderno de receitas é uma prática majoritariamente feminina. Mas, além de ser mulher, era preciso o letramento. Decodificar um caderno de receitas significava saber ler e interpretar. Por isso, há aí também um recorte de classe importante – especialmente se falarmos da primeira metade do século XX. Para Luce Giard: “Em cada caso cozinhar é o suporte de uma prática elementar, humilde, obstinada, repetida no tempo e no espaço, com raízes na urdidura das relações com os outros e consigo mesmo”11.

10 Cadernos deste tipo são formas que suas autoras, na maioria das vezes anônimas, encontraram para se marcar no tempo. Ou seja, “As práticas culinárias se situam no mais elementar da vida cotidiana, no nível mais necessário e mais desprezado”12. São registros de si, e de uma vida comum, mundana que mostram as “artes de fazer”13 cotidianas. Como às mulheres poucos foram os lugares deixados para sua expressão e inscrição no tempo, cadernos como os de receitas figuram como lugares de uma inventividade de si possível. Se as práticas culinárias do comum foram usualmente relacionadas ao saber popular, à memória e a vida prática, os cadernos podem nos mostrar que a racionalidade também marca o preparo de alimentos, e que cozinhar não é ação que está alheia a um campo de saber. É preciso o domínio de um conjunto de técnicas – como o fogo, a mais rudimentar possível – e de um saber-fazer construído não só pelo registro escrito, mas pela ligação estreita com a memória. Paolo Rossi destaca que “O alimento não é apenas ingerido. Antes de chegar à boca, ele é preparado e pensado detalhadamente. Adquire o que geralmente se chama de valor simbólico”14.

11 Neste sentido entende-se que, ao investigar traços de hábitos cotidianos – como morar e cozinhar, por exemplo – é possível compreender aspectos culturais da vida em sociedade, em um determinado tempo e em um determinado espaço. Por isso, para esta discussão que aqui se apresenta, optou-se por aprofundar os estudos sobre colunas de periódicos, no caso, revistas semanais com apelo (via colunas culinárias específicas) para o feminino cotejando-as com cadernos de receitas que compõem acervos pessoais.15

12No caso aqui estudado será promovida uma discussão sobre a coluna Lar, doce lar da revista O Cruzeiro, notadamente as edições publicadas entre as décadas de 1950 e 1960. Analisar esta coluna da revista O Cruzeiro implica, igualmente, destacar como, pelo ato da alimentação, educa-se um corpo considerando que o corpo também se transforma na medida em que sobre ele são sugeridas regras de comportamento e civilidade - como portar-se, manejar talheres, comer com elegância atendendo gestualidades próprias que caracterizam um intercâmbio permanente entre as dimensões físico-materiais e simbólico-culturais16.

13 A década de 1950, no Brasil, se caracterizou como um período que se convencionou chamar de Anos dourados. Um período democrático, marcado pelo crescimento da vida urbana e da classe média, de ascensão social e investimento na industrialização com investimentos na tecnologia doméstica (geladeiras, liquidificadores, fornos elétricos, máquinas de lavar louça etc.) eram motivo de propaganda nas revistas semanais e na televisão, iniciante no país. O nacional-desenvolvimentismo contribuía para o tom de otimismo presente na sociedade, que acreditava viver nos tempos modernos. É neste mesmo período que o Rio de Janeiro, em vias de deixar de ser a capital da República, consolida-se como importante centro cultural irradiador de novidades, ditando modas, gostos e costumes. Para Daniela Queiroz Campos17 neste momento há a consolidação de um mercado cultural, do qual fazem parte a moda, o corpo cuidado pela ginástica, o cinema, a música, mas também as publicações de revistas como O Cruzeiro.

14 No mundo privado o modelo familiar normativo burguês consolidava-se e os comportamentos e as subjetividades esperados para as mulheres – notadamente àquelas alfabetizadas, urbanas, de classe média - era definido não só pelo discurso médico, mas agora também pelas revistas voltadas para o público feminino, que apresentavam ilustrações, fotografias, cores e textos em tom leve, mas pedagógico e, não raro, com intenções formativas. É possível compreender que as publicações voltadas para este público feminino costumam ter “uma finalidade pedagógica: revelam a mesma vontade de expor e ensinar as maneiras legítimas”18. Revistas femininas, nestas condições, tinham por intenção evidente incentivar e estabelecer o lugar das mulheres para o cuidado do lar, dos filhos e do marido. As normas burguesas, o estilo de vida elegante e determinadas práticas sociais passam a ser divulgadas e estimuladas em O Cruzeiro, que vai agir como um meio de propagação de valores e regras de convívio social. “Os gestos são signos e podem organizar-se numa linguagem; expõem-se à interpretação e permitem um reconhecimento moral, psicológico e social da pessoa. Não há intimidade que não revelem”19. Assim, colunas com dicas de beleza, cuidados pessoais com o corpo, boas maneiras e receitas testadas e bem balanceadas compunham o conteúdo do periódico, consumido por tais mulheres que se entendiam como modernas.

15 A produção de um impresso periódico destinado exclusivamente às mulheres urbanas, alfabetizadas, de classe média e em sua maioria, brancas, ficava evidente não apenas pelo seu conteúdo, mas também, e principalmente, pelos anúncios publicitários. Se nos jornais diários as páginas eram ocupadas por anúncios de relógios, máquinas e carros, nas revistas femininas os anunciantes que tinham espaço eram os produtos de higiene e beleza para um corpo são, os eletrodomésticos, os jogos de panela e aparelhos de jantar, as máquinas para o serviço doméstico. O mundo da rua e da vida pública pertencia ao homem, enquanto às mulheres cabia o título de rainhas do lar, ou seja, o domínio da vida privada.20. A principal novidade era a construção de um modelo feminino de mulher moderna, que dominasse a vida privada, mas também todo o tipo de traquitanas, como enceradeiras, batedeiras, liquidificadores e máquinas de lavar, que entravam nas casas dos brasileiros.

16 Com a impressão de um tempo que corria mais rápido, o aprofundamento do modelo capitalista e a expansão das classes médias (que passavam a se entender como tal), e do acesso aos bens de consumo, aprofundou-se uma nova relação com o tempo e com o próprio corpo que poderia merecer mais atenção e cuidados. Nesse sentido, a gastronomia se converte em uma forma refinada de manter o corpo nos limites da elegância pois mobiliza o paladar, a visão e o tato. As colunas culinárias em jornais despertaram, pelas imagens, sentimento de desejo, de contenção e até de classificação de odores provavelmente porque educavam os sentidos para serem órgãos capazes de reconhecer e discriminar as emanações do meio ambiente. Mas, um outro fenômeno, também importante, vai marcar a vida das mulheres das classes médias, urbanas e alfabetizadas no período: o acesso ao mundo do trabalho. Se, por um lado, as mulheres pobres sempre estiveram inseridas nas relações de trabalho, as mulheres da classe média tendiam – e eram estimuladas – ao casamento. Neste sentido, o modelo de mulher de sucesso era a mulher casada, responsável pelos cuidados do lar, elegante e mantendo um corpo saudável e contido em suas pulsões.

17 A entrada de mulheres no mercado de trabalho, especialmente como professoras, foi efetivamente um fenômeno novo. Talvez por isso a sensação de um tempo acelerado e a consequente necessidade de se agilizar os trabalhos domésticos com a ajuda de máquinas. Ou de alimentos previamente processados. A revista O Cruzeiro, aqui analisada a partir de sua coluna de culinária Lar, doce lar, encontra-se neste lugar: entre a construção pedagógica para as esposas em tempo integral e as mulheres de classe média – igualmente esposas ou pretendentes a – mas que acessam o mercado de trabalho. Ao privilegiar receitas, anúncios de alimentos e ensinamentos sobre como servir e estar bem no ambiente doméstico, esse lugar fica bastante evidente. As colunas como suportes documentais da imprensa tanto em sua dimensão textual como imagética ressoaram nos processos de transformação das sensibilidades corporais de um tempo. Nesse sentido, consideram-se materiais impressos como jornais, revistas, panfletos, relatórios etc., como veículos portadores de vestígios da educação de sensibilidades corporais21.

18A coluna Lar, Doce Lar esteve na Revista O Cruzeiro22entre o final da década de 1920 e o início da década de 1970, ou seja, esteve presente durante todo o tempo em que a revista foi editada, entre 1928 e 197523. O Cruzeiro pertenceu ao grupo Diários Associados, de Assis Chateubriand, um dos principais nomes do jornalismo brasileiro.

19 À frente da coluna Lar, doce lar estiveram duas mulheres que marcaram a parte culinária da revista: Helena Sangiardi, autora do livro A Alegria de Cozinhar e Thereza Paula Penna, irmã do colunista Alceu Penna, um dos principais nomes do Cruzeiro e que junto com o fotógrafo Paulo Namorado ilustravam as receitas apresentadas com fotografias elaboradas. A coluna era trabalhada não só com textos, mas também, e principalmente, com imagens. Ilustrações e fotografias compunham o espaço de Lar, doce lar, tornando-a uma coluna atrativa e chamativa aos olhos. Com cores e mesas postas, a coluna não ensinava apenas receitas. Ela funcionava como um manual de como servir e receber em casa.

20 A escolha pelas revistas e cadernos que compõem um acervo pessoal foram deliberadas. Entende-se que, são esses documentos por vezes considerados menores que nos possibilitam olhar para o cotidiano, que pouco deixa rastros. Ao falar de tarefas e atividades do mundo feminino o acesso a elas é ainda mais dificultado. Como bem aponta Michel de Certeau24, poucos são os espaços deixados para o consumidor deixar suas marcas. Mais ainda, as ações diárias cotidianas, como cozinhar, estiveram afastadas do conhecimento dito racional. Isso porque considera-se que morar e cozinhar são ações instintivas, e que se localizam fora de um campo de saber. Mas, esta análise pode ser equivocada: para elaborar um prato é preciso o desenvolvimento de técnicas e conhecimentos. Mas, entra também no campo afetivo. O paladar é um dos principais elos com a memória. É um dos sentidos capazes de provocar uma memória e fazer com que ela se apresente, como Proust narra ao contar as histórias em torno de um tipo de biscoito conhecido como madeleines.25 “E mal reconheci o gosto do pedaço de madeleine molhado em chá de tília que minha tia me dava (...) eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, veio aplicar-se (...) e com a casa a cidade toda , desde a manhã à noite, por qualquer tempo, a praça.(,,,) tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardim, da minha taça de chá”.

21 Pelas páginas de O Cruzeiro é possível investigar não apenas a construção de um modelo feminino e de organização do lar, mas também inferir sobre produtos consumidos, construção do gosto e os tipos de alimentos consumidos – ou divulgados – no Brasil dos anos dourados, inclusive aqueles que seriam recomendáveis a uma saúde perfeita.

22 O acervo de revistas e cadernos de receitas pertenceu a uma mulher, de classe média, professora primária, com trânsito social entre as diversas camadas da população, moradora de Florianópolis/SC, colecionou recortes de Lar, doce lar recortados e encadernados em capa dura que estão na família há três gerações. Moradora de um centro urbano e atuando efetivamente como professora primária trabalhava, para aumentar a renda familiar, como doceira para as festas das elites florianopolitanas. Sua ocupação é uma demonstração do tom da época: embora se atribuísse aos maridos a responsabilidade pelo sustento do lar, muitas eram as mulheres de classe média que ganhavam o mundo do trabalho, atuando especialmente como professoras e, no circuito doméstico, por exemplo, como doceiras, costureiras e bordadeiras, o que garantia não só uma renda, mas também certa distinção social e trânsito entre as camadas mais abastadas da sociedade.

23Cabe ressaltar: para atuar nestas frentes era fundamental o saber se portar, ou seja, ter consolidado os considerados bons modos, tanto para atrair clientela como ara evidenciar distinção social, como bem sinalizou Pilla26:

A ostentação está tanto no efeito visual como na qualidade dos alimentos oferecidos. Os modos de vestir, de falar, as habilidades à mesa, a postura, a composição e as opções de cardápio e as predileções alimentares podem classificar os indivíduos. Qualidades do saber viver implementam-se a partir do saber fazer. E esse saber fazer reveste-se em valor distintivo quando as escolhas, de modo particular, traduzem-se em atos como destreza e percepção da arte da vivência social.

24 Assim sendo, o material reunido em vida era útil não apenas para a organização e o serviço da vida privada, mas também como um instrumento potente e importante de trabalho. E, por isso, analisar a parte que compõe o acervo pessoal é ação que difere de analisar as revistas em si, pois, ao mudar o suporte muda-se também as análises que empreendemos sobre ele.

25 Assim, entende-se que a coluna Lar, doce lar é um documento privilegiado para observar hábitos alimentares em meados do século XX no Brasil urbano. Por exemplo, a edição 1 do ano de 1957 traz a coluna nas páginas 93 e 94 e ensina, além de diversas receitas, as formas de bem servi-las, para ocasião de uma festa para uma menina-moça. Bolo de chocolate, glacê, manjar, canapés, rocamboles, docinhos e bombons formariam o menu informal. A sugestão do uso de guardanapo rendado é uma demonstração evidente do público-alvo para o qual se destinava a publicação.

26Os ingredientes das receitas chamam a atenção. Entre farinhas, ovos, bicarbonato e fermento, alguns elementos se destacam. É o caso do leite condensado27, um produto antigo, mas com novo uso à época. A estratégia de direcionar o leite condensado para o uso culinário foi uma novidade promovida pela Nestlé entre as décadas de 1940 e 1950. Até então o produto era voltado para a alimentação infantil28. Somente na década de 1940 com a promoção de campanhas pelo aleitamento materno e pela compreensão de novos parâmetros em relação à saúde da criança que o lugar do leite condensado na alimentação infantil foi revisto. Como produto de consumo, ele precisava ser reinventado. Por isso a Nestlé investiu na criação de receitas, na divulgação delas em seus livros e conseguiu a recolocação do Leite Moça no mercado, a partir de seu uso para fins culinários. Essa readequação fica evidente ao ver o produto listado como ingrediente de várias receitas, já desde a década de 1940, e que permanecem até os dias atuais na construção do paladar brasileiro.

27Ao mesmo tempo em que produtos processados e industrializados ganham espaços nas receitas divulgadas em Lar, doce lar, como é o caso do leite condensado, do Biscoitos Maria, dos patês e pepinos em conserva, por exemplo, por outro, alguns produtos continuavam sendo buscados e explorados em sua forma natural. É o caso do coco. Nos dias atuais encontrar o produto ralado e embalado nas prateleiras do supermercado é comum, mas as receitas encontradas na coluna sugerem que era preciso ralar o coco em natura para obter a matéria prima para a feitura dos doces.

28As peças publicitárias que aparecem em destaque na revista também são interessantes. O tom de agilidade e praticidade são tão visíveis quanto a tentativa de forjar uma aproximação com o produto natural. A gelatina Royal, com gostinho de fruta fresca, parece o usar do mesmo argumento que o extrato de tomate que tinha as mesmas qualidades do tomate maduro ou com o caldo de galinha Knorr-suíça com seu sabor caseiro inconfundível. A construção argumentativa das peças publicitárias leva a interpretação de que para vender o produto industrializado era preciso equipará-lo ao sabor natural da comida caseira.

29Em um contexto em que as mulheres das classes médias ganhavam espaço no mercado de trabalho foi preciso, através de diversas formas, garantir a estabilidade e segurança do modelo familiar. Assim, enquanto o maquinário desenvolvido para limpeza e conservação das casas – como enceradeiras e máquinas de lavar roupa – garantiam a agilidade do trabalho doméstico, os alimentos enlatados, processados e industrializados auxiliavam nas etapas de preparo das receitas, que em tempos demoravam muito mais para serem preparados, tempo que as mulheres não tinham mais a sua disposição. O fenômeno brevemente estudado aqui diz respeito não só a necessidade de trabalho como também à vontade de ocupar espaços na vida pública, garantindo a agência e a atividade de mulheres até então destinadas aos cuidados do lar.

30Para além do estudo dos alimentos e ingredientes é possível promover uma incursão no mundo social. A casa, além de espaço íntimo, era local de sociabilidade e confraternização, especialmente recebendo familiares, amigos e deixando a ver uma outra demanda de preparação, que não apenas aquela do dia a dia. Os eventos festivos apontam para as sociabilidades burguesas e Lar, doce lar não ensinava apenas receitas, mas também como servir, haja vista a decoração esmerada das mesas fotografadas para ilustrar a coluna.

31Decodificar os códigos sociais é tarefa delicada, precisa e que necessita do domínio da linguagem social. Assim, aprender a dispor os talheres à mesa, montar arranjos de flores e harmonizar as bebidas com os pratos é ação que exige um rol de conhecimentos prévios. Nota-se, portanto, que a revista e a coluna eram destinadas a um determinado público, ao propor mesas com guardanapos rendados, diferentes tipos de flores, uso de cristais. O refinamento faz parte de uma formação social de elite. Um lar saudável e feliz era, então, aquele que tinha acesso aos bens de consumo e que seguia o normativo familiar com os comportamentos e subjetividades de homens e mulheres bem definidos. Assim, O Cruzeiro e sua coluna Lar, doce lar estavam equalizados com o tempo, garantindo que acompanhavam o ritmo da vida moderna29, não só pelos produtos que anunciavam, mas também pelas colunas, conteúdo e modelos de mulher e de família que difundiam em suas páginas.

32 Uma coleção como esta, com exemplares de edições da Revista O Cruzeiro, é também um instrumento de trabalho. O domínio dos ingredientes, o saber-fazer alimentos com esta especificidade, a decoração refinada, aponta para uma questão: para trabalhar como doceira para as classes mais abastadas era preciso conhecer o meio, dominar os códigos. Norbert Elias dedicou-se a estudar as expressões da civilidade no mundo ocidental, considerada, segundo o mesmo como uma espécie de classe alta do jogo social, uma forma de determinar padrões de conduta fora do ocidente30. O termo civilidade está diretamente relacionado às atitudes dos habitantes da urbe. Assim, a própria noção de civilidade em seu significado primordial esteve relacionada à vida urbana. Para além do bom convívio social, a ideia remete a “transformação das sensibilidades e das práticas”31. Mais íntimos que os recortes de revistas, os cadernos de receita dão a ler uma vida privada, construída na intimidade do seio familiar, e o elo evidente com as memórias afetivas. Um caderno de receitas é, em si, um acumulado de memórias gustativas. Em suas páginas são registradas as receitas trocadas por gerações de mulheres: de mãe para filha, de avó para netas, tias, sobrinhas, cunhadas. É a troca de conhecimentos em papel e tinta, registrada e perpetuada por anotações comuns, que usualmente carregam manchas de chocolate, ovos, farinha e açúcar. A garantia de permanência de uma prática, de um saber, existe a partir da transmissão, de mãe para filha, por meio de um caderno de receitas. Santos32, um dos mais importantes historiadores da alimentação, salienta que:

No Brasil, os cadernos de culinária, ao longo da segunda metade do século XIX até os anos 70 do século XX, foram dirigidos especialmente para as mulheres, consideradas as rainhas do lar. Durante este período, era comum a passagem dos cadernos de mães para filhas (...)Esta forma de passagem das receitas revela a ideia de pertencimento a um grupo de “iguais’ para o repasse de um conhecimento que a princípio não estaria acessível à maioria.

Figura 1 - Na primeira imagem, o Caderno de Receitas de M., datado de 1968, escrito em agenda de 1956

Figura 2 - Na segunda imagem, Caderno de Receitas de V., datado de maio de 1984, ambos produzidos em Florianópolis/SC.

33Os cadernos de receitas pertencem à mãe e filha. Assim, mais do que guardar segredos culinários, o caderno de receita guarda memórias, afetos e sociabilidades. A História do Tempo Presente privilegia o acontecimento e o mundo político. Mas dá destaque também ao retorno dos testemunhos de um tempo passado, ainda presente. Seriam então os cadernos de receitas, transmitidos e adaptados a cada geração, testemunhos de uma prática social e cultural, que pode passar quase despercebida aos olhos mais ingênuos, mas que carregam em si significados e interpretações múltiplas sobre o nosso presente. Mais ainda, se o nosso presente é aquele do passado que não passa33, podemos compreender as permanências de práticas e hábitos alimentares, transmitidos por gerações de mulheres do passado, que chegam ao nosso presente, como vozes que ainda ecoam. Para além da continuidade desses saberes, a marca da industrialização e do aprofundamento do capitalismo se fazem presentes até os nossos dias, reverberando esse passado no nosso tempo presente.

34Folhear um caderno de receitas é ativar as lembranças. É sinestésico. Passar os olhos pelos ingredientes da receita de uma avó é sentir o cheiro da cozinha e o gosto do doce da infância, como enfatizou, pela literatura, o gourmet já citado. É uma construção subjetiva, mas ao mesmo tempo social. É o lugar das emoções ativadas por uma memória exercitada. O debate sobre o que Pierre Nora cunhou de lugares de memória parecem estar no centro dos debates historiográficos no presente. Uma reaproximação entre história e memória (relação estremecida por Nora, que tratou de separá-las bem, salientando suas diferenciações) faz com que as discussões em torno da questão da memória ainda estejam vivas. Paul Ricoeur34 tranquiliza, destacando que: “De fato, os lugares continuam a ser lugares de memória, e não de história”. Ao entender o caderno de receitas como um espaço de memória é preciso destacar que “Lembrar-se de algo é lembrar-se de si”35 e então, as projeções feitas sobre o outro são também as minhas. São esses elos afetivos que nos garantem a ligação com o nosso passado. Para este autor o fenômeno da memória é fundamental. É preciso encontrar uma terceira via de análise, que se situe entre a memória individual e a memória coletiva, polos em que ela opera. Ou seja, são os que Ricoeur36 chama de próximos que vão garantir esse caminho por uma terceira via: entre o social e o individual. “Os próximos, essas pessoas que contam para nós e para as quais contamos, estão situados numa faixa de variação das distâncias na relação entre si e os outros”.

35 Desta forma, novas sensibilidades são construídas, e dentre elas a formação do gosto passa por profundas transformações. Por isso, embora estejamos aqui falando sobre uma construção subjetiva e pessoal, pode-se compreender que o gosto é, também, e com potência, construído socialmente. Para Lipovetsky37, “Não há sociedade que não se empenhe, de uma maneira ou de outra, num trabalho de estilização ou de ‘artealização’ do mundo, trabalho esse que é o que ‘singulariza uma época ou uma sociedade’, efetuando a humanização e a socialização dos sentidos e dos gostos”. O autor ainda prossegue ao analisar certas práticas alimentares utilizadas não apenas para o seu fim natural – a alimentação – mas também para promover e engendrar um processo de distinção social, para ele: “O ideal do comer bem e do saber beber é ilustrado igualmente na maneira como a culinária se tornou um vínculo coletivo, um marcador social, ao mesmo tempo que um domínio capaz de favorecer os gostos individuais e a afirmação de si”38.

36 A socialização de receitas e a formação do gosto de forma coletiva podem ser interpretações possíveis ao analisar cadernos de receitas. A transmissão de receitas entre mulheres de uma mesma família atesta a circulação dos saberes culinários e a continuidade de práticas ao longo do tempo.

Figuras 3 e 4 - Imagens do Caderno de Receitas de M.P., provavelmente escrito na primeira metade do século XX, em Florianópolis

37 Mesmo sendo resultado do tempo, muitas das marcas presentes nos cadernos são marcas do uso. Manchas são comuns em um material que costuma ficar na cozinha, acompanhando o preparo de receitas. O caderno da Figura 5 apresentado acima pertenceu a uma mulher letrada, nascida em 1886, e que viveu até 1986. Suas receitas foram transmitidas às filhas e netas, como é possível observar nas imagens a seguir.

Figura 5 - Caderno de H., filha de M.P., escrito provavelmente na década de 1970

Figura 6 - Caderno de S., neta de M.P., escrito provavelmente na década de 1980

38 A partir das imagens expostas é possível observar a transmissão de um saber culinário, traços de uma rede de sociabilidades, familiar e afetiva. Na receita de Cuca presente nos três cadernos, a indicação da fonte da receita: Mercedes, que nos dois primeiros aparecem apenas com seu primeiro nome, e no terceiro com a indicação do parentesco, a partir do uso do substantivo tia. Os ingredientes são os mesmos, bem como o modo de fazer, embora algumas dicas sejam dispostas no segundo caderno. No primeiro, o mais antigo deles, as medidas são outras, com o uso de prato como medida.

39 A intenção deste texto foi apresentar uma incursão sobre uma coluna de culinária em uma revista semanal de grande circulação nas décadas de 1950/60 conectando-a com cadernos de receitas considerados como documentos da vida privada. Neles, foi possível investigar e problematizar hábitos e práticas sociais da intimidade no que se refere à alimentação e ao corpo, mas, especialmente, das marcas e registros deixados, no tempo presente, por mulheres e seus saberes, bem como a formação de circulação de ideias, normas e condutas sociais. Assim, entende-se que a história da alimentação está intimamente relacionada aos estudos sobre processos civilizatórios e sobre as formas de ser e estar no mundo, ou sobre a educação dos sentidos corporais para um novo tempo. Foi possível observar, através das colunas de revistas e dos cadernos de receitas, um processo de transformação de sensibilidades em um tempo. Dentre elas é possível destacar, por exemplo, como as matérias das revistas, ricamente ilustradas, atuaram na formação social (e, portanto, coletiva) dos gostos e incentivaram maneiras de se alimentar, servir e de se portar à mesa. Desejo, contenção e classificação são operações observáveis através dos documentos que foram analisados neste estudo. A educação dos sentidos foi uma forma de educar os corpos, incentivando certos comportamentos e desestimulando outros39. O suporte fundamental que fez emergir a pesquisa está ligado a uma coluna de um impresso destinado ao público feminino. Trata-se da coluna Lar, doce lar, da revista O Cruzeiro. Os estudos de Luca40 e de Martins41 (2001), foram leitura imprescindível por mostrarem a importância e as possiblidades da utilização da imprensa periódica na pesquisa historiográfica.

40 Entende-se que tanto o acervo de revista com a coleção de O Cruzeiro, como os cadernos de receita dão a ler aspectos interessantes que auxiliam no estudo sobre a história da alimentação e seus cuidados com o corpo, a construção do gosto, as marcas do consumo e da vida íntima de mulheres das classes médias urbanas, ao mesmo tempo em que reforçam a presença e atuação destas fontes/documentos da imprensa periódica aqui valorizados, como patrimônios documentais e testemunhos fundamentais na construção de uma História no Tempo Presente.