Apresentação
Texte intégral
1No século XX, as revistas portuguesas femininas, embora de temáticas variadas, tal como as suas congéneres de outros espaços, foram responsáveis pela circulação de ideias e de práticas em matérias diversas, quase todas intrinsecamente ligadas aos considerados interesses das mulheres, isto é, as preocupações com a casa (alimentação, higiene, decoração), com a família (educação dos filhos, cuidados com o marido) e com ela mesma (moda, beleza e mais raramente desporto). Quer estejamos perante publicações da responsabilidade do Estado, da Igreja, de associações ou de empreendimentos particulares, torna-se claro que a revista, como outras publicações, procurava informar e transmitir conhecimentos, difundindo de forma acessível um conjunto de dados a letrados e iletrados, ensinando e tentando disciplinar os leitores, formando opiniões e gostos, fornecendo normas de comportamento e incentivando ao consumo de bens e serviços das mais variadas áreas, através dos artigos e da publicidade, que constituía, certamente, uma relevante fonte de receita. A leitura deste tipo de publicações permitia aos leitores a obtenção de referentes para, desse modo, exercerem mais corretamente as suas funções sociais.
2O título e o conteúdo da obra O Corpo Feminino em Revista: Alimentação, Higiene e Cosmética em Portugal e no Brasil (séculos XIX-XX) pretenderam jogar com dois dos sentidos da palavra revista. No caso, sem prejuízo de outras fontes, as revistas foram escolhidas como a base dos textos que compõem a obra, procedendo-se à análise dos periódicos propriamente ditos, no intuito de melhor conhecer três realidades interligadas: alimentação, higiene e cosmética, bem como as suas relações com a saúde, em Portugal e no Brasil, durante os séculos XIX e XX, em especial durante a primeira metade da última centúria. Neste sentido, a temática acabou por abarcar também as matérias de género.
3Os autores foram desafiados a produzir análises e interpretações tendo em conta quer os textos escritos quer as imagens publicadas, isto é, desenhos ou fotografias utilizados para ilustrar os artigos, bem como publicidade a bens e serviços ligados ao corpo. No estado de desenvolvimento da investigação destas matérias, em que a esmagadora maioria do trabalho está por fazer, a opção recaiu em estudos de caso, os quais deram a possibilidade de equacionar problemas, colocar perguntas pertinentes, fazer as prospeções necessárias, para, finalmente, analisar, interpretar e dar a conhecer resultados, ainda que parciais, sugerindo outras linhas de investigação para futuros trabalhos. Num outro momento, poder-se-ão comparar, por exemplo, as estratégias editoriais, as opções das marcas e os comportamentos dos diferentes públicos leitores do Brasil e de Portugal.
4Ao folhear a obra, rapidamente o leitor ficará familiarizado com a presença de nove capítulos, cinco da autoria de autores portugueses e de uma autora polaca, que trabalhou sobre fontes portuguesas sob orientação de uma das coordenadoras do volume, e quatro da autoria de sete autores brasileiros. Ficaram representadas diversas instituições dos dois países, a saber Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PUC-PR), Universidade Aberta de Lisboa, através da Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos e a Globalização, Universidade de Coimbra, Universidade de Lisboa, Universidade do Estado de Santa Catarina e Universidade Nova de Lisboa.
5O livro abre com o texto de Irene Vaquinhas, “Oh! O rico almoço de morangos”: sedução, gastronomia e imaginário masculino nos finais do século XIX”. A autora partiu de fontes diversificadas para introduzir a questão do corpo feminino enquanto palco de metáforas gastronómicas que povoaram o imaginário masculino do final de Oitocentos, abrindo caminho para as realidades da centúria seguinte.
6João Rui Pita e Ana Leonor Pereira em “Traços de higiene e cosmética no Portugal novecentista” delinearam um quadro abrangente do tema em contexto internacional, tendo em conta os avanços da química e da medicina, para, em seguida, se fixarem no caso português, apresentando exemplos de produtos nacionais e de importação, usados em Portugal no final do século XIX e início da centúria seguinte.
7Abordagem diferenciada mereceu o texto de Sílvio Marcus de Souza Correa, “Dos corpos femininos na revista África Médica (1934-1947)”, no qual o autor abordou as questões dos conhecimentos médicos e de higiene tropical destinadas às mulheres brancas que migravam para África. Na revista África Médica, a população da metrópole, branca, foi tratada de acordo com a ideia de uma pretensa superioridade racial, abstraindo-se, consequentemente, a questão social. Por outro lado, a revista foi sempre celebrando os corpos brancos, o que contrastou com o anonimato que cobria os corpos negros, ao mesmo tempo que as ilustrações nem sempre tinham funções informativas.
8Cilene Ribeiro, Juliana da Silveira e Letícia Caroline dos Santos partiram da revista feminina Anuário das Senhoras para estudarem a crescente publicidade nas páginas do periódico em matérias alimentares dando origem ao texto “Anúncios de alimentos e condutas de beleza na revista Anuário das senhoras (1940-1960)”. O estudo da linguagem persuasiva da publicidade, permitiu reconstituir figuras femininas de mulheres, esposas e mães, que influenciadas por padrões europeus e norte-americanos, pautavam os seus comportamentos de acordo com uma trilogia que articulava comida, saúde e beleza.
9Paulo Drumond Braga deteve-se em questões de higiene, saúde e beleza em “O Corpo feminino na revista Menina e Moça (1947-1952)”. Tratando-se de uma publicação da Mocidade Portuguesa Feminina, os artigos ali publicados denotaram forte carácter normativo, procurando impor às raparigas modelos de comportamento claros de modo a formar uma pessoa ideal, pautada por valores como a modéstia e a discrição, num mundo em que, antes de mais, importava conseguir obter marido.
10“Corpos femininos conquistados ou corpos domesticados? Dietas e cultura física no Anuário das Senhoras na década de 1950” foi o título escolhido por Maria Cecília Amorim Pilla para o texto baseado num conjunto de artigos publicados no Anuário das Senhoras, no qual a autora abordou o mundo pouco estudado da ginástica feminina, vocacionada para a disciplina do corpo no sentido de o manter belo e esbelto, isto é magro e devidamente moldado, com intenções de sedução.
11Maria Teresa dos Santos Cunha e Ana Luíza Mello Santiago de Andrade em “Manjares do século: receitas, afetos e sabores na coluna “Lar, Doce Lar” na revista O Cruzeiro (1950-1960)” dedicaram-se a matérias de alimentação e sociabilidade à mesa, a partir de uma coluna da revista O Cruzeiro, complementada com referências a cadernos manuscritos de receitas.
12Numa cronologia que abrangeu quatro décadas, Isabel Drumond Braga consagrou algumas páginas a uma pioneira em “Empreendedorismo no feminino: Bertha Rosa Limpo e os cosméticos Thaber no Portugal dos anos de 1940 a 1970”. Trata-se de uma abordagem minuciosa que teve como base a revista Modas e Bordados, em que a protagonista colaborou mantendo colunas de culinária e de beleza, coadjuvada por fontes tão diversas como outras revistas da época, iconografia e entrevistas, permitindo traçar um quadro polimórfico da atividade de uma empreendedora de sucesso.
13A obra termina com o texto de Kamila Choroszewska e Isabel Drumond Braga em “Escrevo-lhe porque me parece a única pessoa capaz de me ajudar nesta afiliação...”: as colunas de conselhos pessoais em Modas e Bordados e Crónica Feminina (1970-1978)”. Pela primeira vez, foram estudadas cartas e respostas, sob a forma de conselhos, dados às leitoras de duas revistas femininas portuguesas, numa época de intensas mudanças comportamentais possibilitadas com o final do Estado Novo e o início da democracia em Portugal.
14Finalmente, uma chamada de atenção. Os textos apresentados respeitam o modo de escrever de cada autor, isto é, mantêm a grafia do português de Portugal e a do português do Brasil.
As coordenadoras
Lisboa, Curitiba, setembro de 2018
15Esta obra foi entregue para publicação em setembro de 2018 numa editora universitária brasileira. Passou pela habitual tramitação de avaliação cega por pares, foi aprovada e chegou a quartas provas tipográficas. A falta de profissionalismo editorial, para sermos contidas nas palavras, levou as coordenadoras a retirarem o manuscrito que, em 2021, foi sujeito a novo processo de avaliação de modo a poder ser publicado. Queremos salientar e agradecer a confiança e a paciência de todos os autores envolvidos neste longo e penoso processo. Ao CIDEHUS não podemos deixar de expressar o nosso reconhecimento por ter acolhido a obra na sua coleção.
Isabel Drumond Braga
Lisboa, outubro de 2021
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