Introdução

1As práticas devocionais, do foro pessoal ou de natureza coletiva, constituem uma componente importante das manifestações religiosas da sociedade do Antigo Regime, de tal forma, que algumas ainda hoje estão presentes na vivência religiosa popular portuguesa. As celebrações estavam dependentes do calendário litúrgico anual e funcionavam como a extensão ou antecipação dos rituais litúrgicos oficiais, podendo tomar a forma de tríduos, setenários, novenas, trezenas ou ainda expressões informais da religiosidade popular. Estas práticas poderiam ter vários modelos, estendendo-se desde cerimónias compostas por simples orações (rezadas ou entoadas em recto tono) até cerimoniais bastante mais complexos, geralmente preenchidos com numerosas intervenções de música vocal, incluindo frequentemente também a participação de instrumentos (FERNANDES, 2014, 213).

2Desde o início do século XVII, sobretudo a partir do período de D. João IV, que as práticas musicais de cariz devocional ganharam uma institucionalização régia, tendo como atividade central a prática do vilancico em várias festividades do ano litúrgico, como é o caso das festas da Imaculada Conceição, Natal, Epifania ou Corpus Christi (LOPES, 2007, 200). Este monarca adotou a tradição de se cantarem vilancicos na Capela Real, mantendo-se a mesma bem vincada até ao reinado de D. João V. Por volta de 1716, com a adoção da liturgia da Capela Papal, a prática de vilancicos na Capela Real portuguesa foi-se extinguindo, acabando por desaparecer gradualmente a partir de 1723 (Lopes, 2007, 200). Curiosamente, esta última data coincide com a regulamentação da prática da novena para a festa de São José na Patriarcal. Para além de constituir uma prática musical e devocional associada ao passado, a inclusão de vilancicos na liturgia oficial (que geralmente ocorria no ofício de Matinas e na Missa) não estaria certamente em consonância com o novo repertório introduzido na mesma, onde a predominância do cantochão, bem como repertório musical em estilo antigo e concertado, deixavam pouco lugar a géneros do passado.

3Ao longo da centúria de Setecentos, a celebração de novenas, trezenas e festas de vários santos constituíam momentos para a saída de membros da família real portuguesa a fim de assistirem aos mesmos nas principais igrejas e conventos de Lisboa. Esta dinâmica terá, em grande medida, acentuado a expansão da prática de novenas ao resto do reino. As devoções particulares de alguns membros da monarquia foram determinantes para o gradual crescimento de instituições religiosas que passaram a beneficiar do patrocínio real no domínio da sua atividade musical. A maior parte das visitas da família real eram acompanhadas por um vasto séquito o que proporcionava vários momentos de festa e espetáculo ao longo dos percursos que as mesmas tomavam (FERNANDES, 2014, 214).

4Grande parte do repertório musical e descrições referentes à celebração de novenas em Portugal data da segunda metade do século XVIII. No entanto, uma larga percentagem das devoções em vigor no final de setecentos tinha já lugar no reinado de D. João V, como testemunham os relatos da Nunciatura Apostólica em Lisboa ao longo da primeira metade do século XVIII (FERNANDES, 2014, 214). Partindo da informação que se conhece e já estudada sobre o contexto musical da segunda metade de setecentos, nomeadamente no respeitante à família real e à Patriarcal, constitui-se um modelo influenciador das práticas musicais deste tipo nas restantes catedrais e igrejas portuguesas ao longo desse século XVIII.

5Durante o século XVIII a Patriarcal, as capelas reais da Ajuda e Bemposta, entre outras instituições lisboetas sob a alçada real eram palco de frequentes práticas devocionais. As novenas de São José, do Santíssimo Coração de Jesus e de Nossa Senhora da Piedade eram de tal forma importantes no âmbito da atividade religiosa da Patriarcal na segunda metade de setecentos, que passaram a constar com caráter de obrigatoriedade nos estatutos dos padres capelães cantores em 1788 (FERNANDES, 2014, 216). Destacam-se ainda outras novenas, como a de São Francisco Xavier ou de Santa Margarida de Cortona, que contaram com composições de compositores como David Perez ou José Joaquim dos Santos (FERNANDES, 2014, 216).

6A partir dos relatos do Núncio Apostólico em Lisboa, D. Caetano Orsini di Cavalieri, percebe-se que a prática de novenas nesta cidade ocorria já com frequência nas primeiras décadas do século XVIII e, em vários casos (como a de São Francisco Xavier, na igreja de São Roque, ou a de São José, na Patriarcal), contava com a assistência do rei, da rainha e de outros membros da família real. Destes relatos, destacam-se quatro referentes à década de 1730, onde é mencionada a celebração da novena de São José na Patriarcal. Embora sem grandes detalhes, as notícias referem que nos últimos dias (sobretudo o tríduo) havia assistência da família real, com música e sermões panegíricos pelos jesuítas do Colégio de Santo Antão. É assim que em 16 de março de 1734 o Núncio reporta que nessa semana, terminada na Igreja de São Roque a novena da festa de São Francisco Xavier, à qual assistiu o rei e a rainha, iniciou-se outra na Patriarcal dedicada a São José, com sermão e música pela respetiva capela (DODERER e FERNANDES, 1993, 117). O mesmo é reportado a 13 de março de 1736, com o início da novena de São José na Patriarcal após terminada a de São Roque, contando com música pela capela e panegíricos diários recitados pelos padres jesuítas do Colégio de Santo Antão, com a presença de sua majestade e família real no coreto (DODERER e FERNANDES, 1993, 126). A 19 de março de 1737 noticiava que na terça-feira anterior havia-se concluído a novena de São Francisco Xavier na Igreja de São Roque tendo-se iniciado na manhã do mesmo dia a de São José, com missa cantada pelos músicos da Capela Patriarcal à qual assistiu a rainha (DODERER e FERNANDES, 1993, 129). Por fim, a 18 de março do ano seguinte o Núncio refere a realização da novena preparatória da festa de São José, após terminada a de São Francisco Xavier, cujo ofício de Primeiras Vésperas foi cantado nesse dia cantado com música dos mais ilustres compositores, não só na Patriarcal, como também em várias igrejas da cidade (DODERER e FERNANDES, 1993, 134).

7Particularmente no que diz respeito às novenas, um considerável número destas cerimónias era frequentado por membros da família real fora da área do Paço da Ribeira e paralelamente às celebrações realizadas na Capela Real. O modelo supremo emanava do poder monárquico e, como tal, existia uma constante preocupação com a sistematização e uniformização de práticas (FERNANDES, 2014, 215). O poder real procurava, assim, formular modelos estéticos e rituais do mais alto nível, suscetíveis de serem emulados por todo o sistema de produção litúrgico do reino (FERNANDES, 2014, 216). A publicação das Preces que se devem cantar nos dias da novena, e festa do Glorioso Patriarcha S. Joseph parece estar enquadrada nesse contexto, como dá a entender o respetivo prólogo. Para além das notícias do Núncio Apostólico em Lisboa, as Preces, cuja primeira impressão data do ano de 1724 na Oficina da Música (com uma segunda edição por José da Costa Coimbra em 1758) (ALBUQUERQUE, 2006, 34), constituem uma importante fonte de sistematização desta prática musical de cariz devocional e um importante contributo para a compreensão da respetiva composição de Pedro Vaz Rego para a Catedral de Évora.

Figura 1 - Folha de rosto das Preces que se devem cantar nos dias da novena, e festa do Glorioso Patriarcha S. Joseph (1724)

8No prólogo, afirma-se que a emulação com que as igrejas da corte e reino português, imitando a Basílica Patriarcal, celebravam a festa de São José “tem feyto taõ comum o uso da sua Novena, que para satisfazer à devoção dos Fieis […] foy preciso repetir nos tres annos próximos outras tantas impressoens do livro da mesma Novena” (ANÓNIMO, 1724, [i]). Para além do cantochão da novena, refere ainda o prólogo, “a falta da composição Musica dos Hymnos, e mais partes do exercício […] pareceo conveniente fazer aqui publica pela estampa a forma do canto, que se pratica na mesma Bazilica”, através da adição de várias composições polifónicas para quatro vozes a cappella. Deste modo, fazendo fé no que refere o prólogo das Preces, o cantochão e polifonia utilizados na celebração da novena na Patriarcal foi consagrado em impressão (com sucessivas reimpressões), sendo o modelo central desta celebração difundido a ser imitado pelas restantes igrejas do Reino. Como se verá mais adiante, enquanto o cantochão terá sido adotado em Évora, no que diz respeito às composições polifónicas, estas poderão ter sido substituídas por obras de produção local.

9Partindo da organização das Preces de 1724, pode-se caraterizar de forma sumária o ofício da novena como um conjunto de rubricas em cantochão (ou tons de recitação) intercalados com obras em canto de órgão (polifónicas), na sua maioria correspondendo aos hinos e antífonas. Os esquemas das novenas, particularmente as obras do contexto brasileiro setecentista, têm sido estudadas por André Guerra Cotta, salientando-se um trabalho que engloba as Preces como modelo para as composições locais. No estudo “Para além das barras duplas”, o autor refere que não havia encontrado nos arquivos portugueses composições de novenas anteriores à publicação das Preces de 1724 (COTTA, 2001, 2). Porém, baseando-se no prólogo desta edição, afirma que a prática de novenas parece apontar para ser anterior à data da sua publicação uma vez que o prólogo refere estar já a sua prática instalada (COTTA, 2001, 3).

10Cotta define uma estrutura básica para a novena, baseando-se nas Preces, bem como na análise de várias obras do contexto brasileiro. O autor chega, assim, a um esquema-base para a organização da novena, desenvolvendo uma terminologia para identificar cada um dos seus componentes. Deste modo, designa a novena como uma unidade cerimonial composta por várias unidades funcionais (COTTA, 2011, 10). No caso das Preces, Cotta identificou trinta unidades funcionais divididas em dois grupos identificados pelo incipit latino ou pela sua tipologia respetivamente (COTTA, 2011, 10-11). Estas podem ter extensões variáveis, desde simples orações entre o celebrante, músicos e povo, a unidades de maior fôlego musical como os hinos e antífonas. Para o presente estudo, a extensa e complexa estrutura das Preces elaborada por André Guerra Cotta foi abreviada, com uma atenção particular às unidades postas em música por Pedro Vaz Rego e a relação entre ambas, bem como as hipóteses no respeitante à sua utilização na Catedral de Évora.

11Tomando como modelo a edição de 1724, pode-se sintetizar o conteúdo musical desta coleção à luz da composição de Rego iniciando com um invitatório, cantado pelo coro dos músicos em canto de órgão, seguindo-se uma oração proferida pelo celebrante em recto tono, à qual responderia o coro, também em recto tono. O coro iniciava, então, o hino em canto de órgão, que utiliza o texto da sequência para o Domingo de Pentecostes Veni Sancte Spiritus, tomando os versos ímpares do mesmo, em alternatim com dois cantores, que entorariam metade dos versos pares em cantochão, prosseguindo o povo na outra metade. A obra é bastante rica quanto a indicações de performance das várias rubricas que a compõem, nomeadamente nos versos e orações seguintes. Entre estes há a destacar, por estarem em canto de órgão, o verso Ave Joseph fili David, atribuído ao coro dos músicos, assim como mais um hino, Caelitum Joseph, que deveria ser interpretado da mesma forma que aquele mencionado anteriormente. É também de destacar a primeira de quatro jaculatórias, breves invocações ou orações a determinado santo (neste caso, São José), como um dos vários exemplos de convivência entre texto latino e português. A natureza devocional desta celebração, paralela à liturgia oficial (fiel aos textos do Breviário e Missal), permita-se a estes momentos invocativos de cariz popular. Existem ainda mais três jaculatórias com que encerra musicalmente a novena, normalmente repetindo o mesmo texto musical da primeira. As rubricas seguintes de central importância são a Litania de Beata Virgine Maria, com as invocações postas em canto de órgão interpretado pelo coro dos músicos, respondendo o povo em cantochão e uma antífona mariana em canto de órgão pelo coro dos músicos.¹ Finaliza com o hino Tantum ergo Sacramentum, também em canto de órgão pelo coro dos músicos seguindo-se, as já mencionadas, três jaculatórias em português entre o coro dos músicos e o povo.

A Novena para a Festa de S. Joseph de Pedro Vaz Rego

12Pedro Vaz Rego (1673-1736), mestre de capela da Catedral de Évora entre 1700 e 1736, compôs uma coleção de música para os dias da novena da festa de São José, cujo manuscrito encontra-se atualmente conservado no arquivo musical da Catedral eborense. Esta obra foi escrita para dois coros, o primeiro de vozes agudas (dois sopranos, alto e tenor) e o segundo composto por soprano, alto, tenor e baixo. Além das partes vocais, existem ainda partes para baixo contínuo (possivelmente órgão) e violino. A coleção de Pedro Vaz Rego encontra-se organizada de acordo com o esquema das Preces, embora o compositor eborense não tenha escrito todas as rubricas de canto de órgão que se encontram na edição de 1724. Rego escreveu o invitatório, hino Veni Sancte Spiritus, o verso Ave Joseph fili David e as jaculatórias em canto de órgão. No caso do invitatório, o compositor optou por um tipo de escrita policoral tradicional, combinando os dois coros em homofonia (como é o caso da primeira seção, com o texto “Christum Dei filium”, seguindo-se um breve momento de imitação no primeiro coro, ocorrendo trocas antifonais com o segundo coro (HENRIQUES, 2019, 29).

Figura 2 - Rego, Novena para a Festa de S. Joseph (Invatório), cc. 1-8 (P-EVc Diversos nº 226), transcrição Luís Henriques

13No caso do hino, o compositor optou por simplificar o texto musical, reduzindo também a textura para cinco vozes e a alternância entre versos ímpares, em canto de órgão, pelo coro de músicos, subdividindo-os, por sua vez, entre dois sopranos (que iniciam em duo a primeira parte do verso) e as restantes vozes (que prosseguem na segunda parte) e um “coro”, provavelmente englobando os restantes músicos e o povo. Cada voz repete a mesma frase musical tanto na primeira parte do verso, como na segunda, contendo todos os versos o mesmo texto musical. O verso Ave Joseph fili David, para cinco vozes, encontra-se escrito em imitação, embora de forma muito simplificada. As jaculatórias aparecem escritas numa textura a oito vozes (HENRIQUES, 2019, 29).

14Descritas as unidades funcionais da Novena de Rego, foram as mesmas comparadas às respetivas rubricas presentes nas Preces de 1724 de modo a perceber se as mesmas poderiam funcionar em conjunto e, assim, serem interpretadas pela capela da Catedral de Évora, que possui no seu arquivo um conjunto de nove livros da edição de 1724 (Livros Impressos de Polifonia n.º 8). Numa primeira análise, percebe-se rapidamente que, no âmbito das unidades funcionais em canto de órgão, as Preces e a Novena de Rego são composições distintas não existindo qualquer tipo de imitação por parte do mestre eborense (imitação entende-se neste contexto como composição decorrente da técnica de paródia) relativamente às unidades de 1724, nem tão pouco parafraseando qualquer das melodias de cantochão nelas presentes. No entanto, parece evidente uma relação entre ambas as obras no que diz respeito às tonalidades utilizadas por Rego nas suas unidades funcionais, nomeadamente aquelas que necessitam do recurso às unidades de 1724 para serem completadas. Isso ocorre, por exemplo, no hino Veni Creator Spiritus onde a composição de Rego surge com o âmbito Si bemol – Mi (com final em Si bemol) e a de 1724 com o âmbito Lá – Fá (com final em Lá). O meio tom de diferença entre as duas composições é facilmente resolvido através da prática musical transpondo a unidade de 1724 para a tonalidade da unidade de Rego, uma vez que o cantochão é na verdade mais um tom recitativo que propriamente uma melodia. Mais direto é o caso das jaculatórias em que o Si bemol final da composição de Rego é a mesma nota do início do cantochão da resposta dos músicos e povo na coleção de 1724, sendo o âmbito idêntico.

15A presença da Novena de Rego no contexto da atividade musical da Catedral de Évora na primeira metade de setecentos remete para algumas questões relativas aos efetivos musicais da capela, bem como ao espaço dentro da Catedral onde a obra terá sido interpretada, e ainda o período em que a mesma terá sido composta, fatores importantes no entendimento da paisagem sonora que a terá envolvido.

16Até à primeira década de setecentos, a capela da Catedral de Évora era constituída, para além dos cantores, por um grupo de músicos instrumentistas que incluíam órgão, harpa e conjunto de instrumentistas de sopro composto por corneta, charamelas, sacabuxas e baixão (ALEGRIA, 1973, 78). Todavia, a partir de cerca de 1722, estes instrumentos de sopro (à exceção do baixão, que se mantém em uso até ao início de oitocentos) começaram a dar lugar a um grupo de instrumentistas de corda – rabecas, viola e rabecão – em certa forma influenciando também a composição de novas obras musicais no âmbito da Catedral, como é o caso de Pedro Vaz Rego, bem como do seu sucessor no cargo de mestre de capela, Ignácio António Celestino que incluem já instrumentos de corda em algumas das suas obras. Assiste-se, deste modo, a uma importante transformação ao nível da sonoridade instrumental na Catedral. Embora esta transformação possa ser já identificada nos registos de pagamentos aos músicos (ALEGRIA, 1973, 94), a mesma demorou ainda alguns anos a refletir-se na composição de obras pelos mestres em serviço na Catedral. Para além de José Pinheiro, viola, que surge no registo de pagamentos de 1719, em 1723 aparecem ao serviço da capela um Fr. Francisco Xavier, rabecão, e Francisco Xavier Belinque, rabeca, este último recebendo vinte mil réis pelo desempenho do seu ofício (ALEGRIA, 1973, 92) e, 1729, surge António Bequer Guzman a receber quarenta mil réis anuais por tanger violim (ALEGRIA, 1973, 93).

17A partir dos dados referidos acima, nomeadamente no que se refere à presença de Francisco Xavier Belinque na Catedral (primeira referência na documentação desta instituição sobre a presença de um violinista), poder-se-á avançar a hipótese da Novena de Pedro Vaz Rego não ter sido composta antes de 1723. Muito provavelmente não terá sido composta antes de 1729, uma vez que entre as folhas soltas que compõem a obra encontram-se duas cópias da parte para violino realizadas pelo mesmo copista. Isto pressupunha, à partida, a participação de dois instrumentistas, o que apenas se constata na documentação a partir de 1729. É precisamente nesse ano que Pedro Vaz Rego pede a aposentação do cargo de mestre da Claustra, sendo o mesmo deferido em sessão capitular de 9 de setembro desse ano (HENRIQUES, 2019, 23).

18A análise da Novena de Rego permite também avançar algumas hipóteses no respeitante aos possíveis espaços onde a obra poderá ter sido interpretada, assim como aos meios musicais nela envolvidos. Partindo das unidades funcionais descritas anteriormente, encontram-se momentos de escrita policoral, de escrita tendencialmente mais imitativa e outros em que a escrita musical se assemelha a um tom recitativo. Cada um destes estilos requeria efetivos musicais diferentes. No invitatório, por exemplo, os coros funcionam de forma independente, com a voz mais grave do primeiro coro (que, embora intitulada de tenor, é na prática uma parte de baixo ou barítono) a desenvolver-se em espelho com o baixo do segundo coro (Fig. 2). Esta unidade requeria no mínimo oito cantores (para assegurar cada uma das oito vozes), ou moços de coro para as três partes de soprano e cantores adultos para as restantes. Requeria ainda um ou dois violinistas (como anteriormente mencionado) e instrumentistas para realizar a parte de baixo contínuo estando certamente presente o órgão. As várias cópias da parte do contínuo sugerem ainda a participação de outros instrumentos que geralmente também asseguravam essa parte como é o caso do baixão ou da harpa, ambos representados no efetivo instrumental da Catedral à época de Rego (ALEGRIA, 1973, 99-100).

19Quando comparadas ao invitatório, as restantes unidades funcionais da Novena de Rego refletem uma economia de meios por parte do compositor, nomeadamente no que diz respeito à textura. A textura foi reduzida em unidades como o hino Veni Sancte Spiritus ou o verso Ave Joseph, juntando-se os dois coros num coro de cinco vozes, com a união do soprano II do primeiro coro com o soprano do segundo coro, o altus do primeiro coro com o altus do segundo coro bem como o tenor do primeiro coro com o tenor do segundo coro, permanecendo o baixo do segundo coro independente. A união dos dois coros logo a partir da segunda unidade funcional sugere que os dois coros não estariam muito afastados um do outro durante a interpretação da obra. Isto leva a considerar a localização da capela musical no interior da Catedral durante a celebração desta novena.

20O primeiro local mais provável para a interpretação da obra é o coro-alto da Catedral, junto a um dos dois órgãos aí existentes,² onde uma considerável percentagem da música era feita, nomeadamente o canto dos ofícios das horas canónica diárias. No entanto, a celebração da novena na Catedral era precedida pela exposição do Santíssimo Sacramento, o qual continuava exposto durante a cerimónia. Esta exposição era feita no altar-mor e, por conseguinte, no coro-baixo da Catedral. Perscrutando o regimento quinhentista da capela da Catedral coligido em 1634, percebe-se que os cantores estavam habitualmente “na capella da Cruz não estando nella o S.mo Sacramento, e se estiver estarão fora da capella no cruzeiro em hum repartimento de bancos” (ALEGRIA, 1973, 138). Os cantores não poderiam sair da capela ou outro lugar onde estivessem sem a autorização do Chantre ou do seu apontador “saluo ao leuantar a Deos despois de ditos os Santos ate o Pater noster” não pondendo ir mais longe “que ate de fronte da capella mor pera ver a nosso Sõr” (ALEGRIA, 1973, 135). Assumindo que que o regimento compilado em 1634 ainda estivesse em vigor na primeira metade do século XVIII, poderá colocar-se como hipótese que a música das novenas fosse interpretada pela capela no coro-baixo da Catedral uma vez que o Santíssimo Sacramento estaria exposto e deste modo poderiam os músicos “ver a Deus” estando localizados no cruzeiro.

21Reforça a hipótese da localização dos músicos no coro-baixo da Catedral o próprio impresso das Preces de 1724. Trata-se da relação musical entre o celebrante, coro dos músicos (e cantores isolados) e o povo. Um exemplo notório da interação (teórica, pelo menos) entre estes três tipos de intervenientes é o hino Caelitum Joseph, escrito em alternatim de canto de órgão e cantochão (Fig. 3). Após o celebrante terminar o colóquio da meditação do terceiro ponto, começariam os músicos a cantar o primeiro verso do hino em canto de órgão, ficando este grupo encarregado dos versos ímpares do hino. No respeitante aos versos pares, estes são entoados por dois cantores do coro dos músicos em cantochão, prosseguindo o povo (ANÓNIMO, 1724, 12).

Figura 3 - Preces que se devem cantar…, p. 12

22Enquanto a parte destes versos pares atribuída ao povo pode ser teoricamente enquadrada na publicação emanada da Patriarcal, na prática, o efeito da sua interpretação na Catedral eborense seria quase certamente diferente. No caso das jaculatórias (que também possuem uma parte interpretada pelo coro dos músicos à qual responde o povo em cantochão), a resposta atribuída ao povo é constituída por um tom recitativo, cuja primeira nota é a última em que termina o coro dos músicos, ocorrendo apenas um intervalo de segunda ascendente e segunda descendente na terminação do verso. Na parte do hino Caelitum Joseph, apesar do cantochão se mover sobretudo por graus conjuntos, o surgimento de alguns intervalos mais difíceis em termos de memória auditiva, como acontece na palavra “pudicae” com um intervalo ascendente de segunda seguido por um descendente de quarta, seria algo certamente mais complexo de assimilar pelo povo. Esta parte dedicada ao povo seria quase certamente também interpretada pelos músicos, clérigos e outros agentes musicais e eclesiásticos com formação para ler o texto musical.

23No caso particular deste hino, o mesmo não foi posto em música por Rego na sua Novena. Todavia, a partir do hino Veni Sancte Spiritus, poderá ver-se a estratégia utilizada pelo compositor para ultrapassar a possível dificuldade de interação musical entre os músicos e o povo. Em Veni Sancte Spiritus, como referido anteriormente, Rego reduziu a textura policoral do hino para cinco vozes. Nas Preces de 1724, ocorre a mesma distribuição de partes entre o coro dos músicos, dois cantores do coro dos músicos e o povo, tal como acima descrito no hino Caelitum Joseph. O compositor colocou dois cantores do coro dos músicos a entoarem o início de cada verso, seguindo o coro dos músicos com o restante. Para além disto, utilizou também o mesmo texto musical para todos os versos do hino.

24Existem dois fatores no respeitante à análise de obras em contexto semelhante ao da Novena de Pedro Vaz Rego, com um forte caráter devocional e envolvendo a classe popular, que se orientam em termos do espaço onde poderão ter sido interpretadas e o tempo onde poderão ter sido estreadas/compostas, nomeadamente a ocasião cerimonial.

25No que diz respeito ao tempo em que poderá ter sido interpretada, juntando à já discutida questão da composição da obra, com hipótese para que tenha sido composta entre a década de 1720 e 1736, ano da morte do compositor, há ainda a questionar se a mesma terá sido encomendada para alguma ocasião especial no calendário festivo da Catedral. À partida esta terá sido a instituição onde a obra terá sido feita, uma vez que o manuscrito aí se encontra depositado, não se tendo encontrado quaisquer marcas que apontassem para outra instituição (como subtítulo ou dedicatória), tendo Rego feito a sua carreira musical como mestre de capela e mestre da Claustra nesta instituição desde 1700. Não subsistem dúvidas sobre qual a ocasião do Ano Litúrgico a que a obra se destinava, devendo a mesma ser interpretada ao longo dos nove dias que precedem a festa de São José, celebrada a 19 de março.

26Uma vez que não faziam parte da liturgia oficial, a celebração de novenas implicava pagamentos adicionais aos capelães cantores, músicos e restantes ministros da Patriarcal. Os custos oscilavam conforme a importância das festas e em função do repertório interpretado. No topo encontrava-se a novena para a festa de São José, que usualmente incorporava a participação de largo número de cantores italianos (FERNANDES, 2014, 216). No que respeita à Catedral de Évora, para o período aqui estudado (c.1720-1736), os livros de despesa da Fábrica não revelaram quaisquer pagamentos ou dispêndios adicionais com a celebração desta festa tal como acontecia na Patriarcal. Depreende-se, portanto, que a novena estaria enquadrada no calendário anual festivo da Catedral, não havendo, por isso, lugar a pagamento extraordinário aos músicos e restantes oficiais da capela para além do respetivo salário anual, pago em quartéis, estando esta festa incluída no pagamento do primeiro quartel. Também não foram encontradas quaisquer referências nos acórdãos do Cabido quanto a indicações para a celebração desta festa na Catedral. A única menção da festa de São José ocorre no ano de 1733 e relacionada com o convento feminino de carmelitas de São José da Esperança. A 14 de março desse ano foi determinado em sessão capitular que o Cabido iria celebrar Te Deum no convento a 18 de março e “assistir a missa q se hade celebrar na d.^ta egreja no dia da sua dedicação”³. De acordo com o regimento dos cantores da Catedral compilado em 1634, os mesmos eram obrigados a cantar sempre “que o Prelado mandar, e naquelas missas, horas, procissões, e festas que o Cabido ordenar, e fizer per dua deuação na Sé, ou fora da Sérevista” (ALEGRIA, 1973, 134). Desde modo, se o Cabido fosse ao convento das carmelitas descalças, seria a capela também obrigada a segui-lo disponibilizando os seus préstimos. Todavia, o acórdão capitular é específico ao mencionar que a ação desta corporação no convento seria cantar o Te Deum e assistir à missa, não envolvendo a celebração de qualquer novena que, a realizar-se, implicaria a assistência durante os nove dias que precediam o dia da festa.

27Em termos da influência que a Novena de Pedro Vaz Rego poderá ter tido na comunidade que acorria à Catedral pelos dias da festa de São José, desconhece-se a dimensão do seu impacto emocional, assim como da força que a própria festividade teria nessa mesma comunidade uma vez que, até ao momento, não se conseguiu encontrar qualquer relato desta celebração em particular para o período histórico aqui tratado. No entanto, a sua importância no calendário anual da Catedral parece evidente, uma vez que o Cabido estava obrigado a comparecer nos dias da novena e respetiva festa, sendo ambas as celebrações solenizadas com canto de órgão (ESPANCA, 1964, 99). O facto desta festa ser solenizada não com cantochão (ou canto de estante, como surge designado no regulamento capitular), mas com canto de órgão é, por si só, sinónimo de destaque entre as outras duas festas de março a que estava o Cabido obrigado a assistir – São Gregório e a Anunciação – cuja música seria de canto de estante. É necessário lembrar que o mês de março geralmente coincidia com o período quaresmal e uma redução nas celebrações musicais em termos da utilização de recurso, destacando-se no quotidiano da Catedral a festa de São José e respetiva novena, pela utilização de música policoral com acompanhamento de violinos e baixo contínuo.

28É ainda importante assinalar que Pedro Vaz Rego conheceu durante grande parte da sua carreira como mestre de capela a Catedral em obras. Estas obras referem-se à construção da nova capela-mor, iniciadas em 1716, com as primeiras demolições a ocorrerem dois anos depois, tendo apenas terminado em 1746, dez anos após a sua morte. A Catedral esteve, assim, em obras durante cerca de vinte anos. Em termos da organização do espaço interior do templo durante este período, o serviço litúrgico-musical no coro-alto deve ter permanecido inalterado durante as obras, uma vez que essa zona da Catedral não foi alterada. Todavia, no que diz respeito ao coro-baixo, origem da construção da nova capela-mor, pela sua dimensão ser insuficiente ao desenvolvimento da atividade nesse espaço, foi o mesmo transferido temporariamente para a nave central tendo aí permanecido por trinta anos (HENRIQUES, 2018, 88). Se se atender a que o aspeto interior atual da Catedral não corresponde ao que seria na primeira metade de setecentos, nomeadamente no respeitante às atuais naves laterais, cujo espaço à época era preenchido de ambos os lados com capelas, demolidas no início do século XX. Deste modo, a comunidade estaria totalmente concentrada na nave central pelo que, com a transferência do coro para a mesma, terá o respetivo espaço disponível para o povo diminuído consideravelmente.

Considerações finais

29Deste modo, tanto a coleção de Preces para a Novena de São José emanada da Patriarcal em 1724, como as composições de Pedro Vaz Rego, terão estado em uso na Catedral de Évora desde a década de 1720. A festa deste santo terá tido alguma importância na dinâmica religiosa da Catedral, sendo aí celebrada do mesmo modo que o era nas restantes igrejas do reino, contando com a presença obrigatória do Cabido e sendo solenizada com canto de órgão que, como se viu, não era prática usual nesse período do Ano Litúrgico. O plano da Novena de Pedro Vaz Rego combina rubricas de alguma complexidade com outras de maior simplicidade, bem como, em termos de extensão e economia de meios. Assim, estamos em crer que este seria um momento de particular importância nos festejos catedralícios e que a composição de Rego terá vindo corresponder à exigência desses mesmos festejos. O compositor, para além de corresponder utilizando dois coros, algo raro na sua produção musical que sobreviveu e pouco usual na música para momentos fora da liturgia oficial, incluiu também partes para violinos, que embora estejam ainda enquadrados no tipo de escrita vocal, constituem uma novidade em termos de sonoridade na capela da Catedral. Todo este aparato contrasta com um período em que a Catedral esteve em obras, nomeadamente no que respeita à construção da nova capela-mor, que, por sinal, também correspondeu praticamente ao tempo que o compositor desenvolveu o seu ofício nesta instituição. Deste modo, a interpretação da obra terá sido condicionada pelo espaço disponível no interior do templo, em concreto, com a colocação do coro na nave, ocupando grande parte do seu interior. A Novena para a Festa de S. Joseph constitui-se como uma obra escrita no âmbito da atividade musical na Catedral de Évora, especificamente destinada a uma prática religiosa de cariz devocional, e que testemunha este tipo de práticas nesta instituição nas primeiras décadas do século XVIII.