História e Relações Internacionais
| ,A diplomacia papal ao serviço de uma consciência planetária
Texte intégral
- 1 “Relações internacionais. Embaixada canadiana na Santa Sé” (www.canadaeuropa.gc.ca/hollysee/int_rel (...)
1A 24 de Janeiro de 2002, na sequência do ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001, João Paulo II reuniu em Assis os mais altos dignitários das várias religiões – “mais de 200 líderes religiosos incluindo imãs, patriarcas, rabinos, padres e cardeais”1 – numa oração colectiva pela paz. Desta acção sairia condenado “qualquer recurso à violência e à guerra, em nome de Deus ou da religião”.
- 2 Paul Blanquart cit. em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?» (...)
- 3 João Paulo II, “Papal Diplomacy Is Service to Humanity”, L'Osservatore Romano, 25 Novembre 1998.
- 4 Catholic Contributions to International Peace, United States Institute of Peace, 9 Abril 2001 (www. (...)
2João Paulo II, considerado por muitos ο maior porta-voz da paz, tem para a Igreja Católica Romana um projecto de acção à escala global, uma geopolítica2. Esta traduz-se fundamentalmente num empenhamento na construção de uma paz à escala planetária – “cada pessoa é um irmão a respeitar e a amar”3 – que chega a superar ο esforço para garantir ο exercício da liberdade religiosa, entenda-se católica, e a salvaguarda dos interesses da Igreja. Esta atitude reflecte-se nos novos acordos estabelecidos pela Igreja com os diferentes Estados, que parecem colocar os direitos humanos acima quer dos interesses religiosos em geral quer das necessidades específicas da Igreja: são disso exemplo ο Acordo Fundamental com Israel (1993) e ο Acordo Básico com a OLP4.
- 5 Entre 1522-1523 reinou ο Papa holandês Adriano VI.
- 6 Émile Poulat cit. em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?», (...)
- 7 Recorde-se a ida de Paulo VI à Assembleia Geral das Nações Unidas, a concretização de uma ostpoliti (...)
3Deste modo, como testemunha também a eleição do próprio João Paulo II, a 16 de Outubro de 1978, ο primeiro Papa não italiano em quatro séculos e meio5, a visão geopolítica da Santa Sé não se confina ao Ocidente. Assim, muito embora, “durante muitos séculos, a Igreja estivesse estreitamente associada ao governo das sociedades ocidentais”6, hoje ο Papa intervém em todos os principais conflitos mundiais, e é-lhe reconhecida legitimidade para tal intervenção. Trata-se, aliás, de uma atitude que surge na continuidade dos pontificados de João XXIII (1958-1963) e de Paulo VI (1963-1978), os quais tentam consumar a pretensão à universalidade do catolicismo, abrindo-se à Igreja do Oriente e mudando a sua atitude relativamente ao Bloco de Leste7.
- 8 Cf. Catholic Contributions to International Peace, United States Institute of Peace, 9 Abril 2001 ( (...)
- 9 Jacques Mercier, Le Vatican. Capitale de l'Eglise, Paris, Éditions Lavauzelle, 1984, p. 427.
- 10 Catholic Contribuerctions to International Peace, United States Institute of Peace, 9 Abril 2001 (w (...)
- 11 Idem.
4Pode considerar-se que tal ênfase na paz tem a sua génese nos esforços desenvolvidos por Bento XV (1914-1922) no sentido de pôr cobro à Primeira Guerra Mundial – através do apelo à arbitragem internacional, ao desarmamento e à imposição de sanções colectivas8 – e de salvaguardar as populações vítimas do conflito9. Mas, tudo aponta para que ο verdadeiro início da mediação pela paz caiba a João XXIII, cuja encíclica Pacem in terris (1963) contém “os primeiros ensinamentos católicos sobre a paz”10. Esta encíclica terá não só importantes consequências na abertura do Concílio Vaticano II ao mundo como será também bem recebida pelo mundo secular não-católico11. Já com a encíclica de João Paulo II Centesimus annus (1991), reforça-se ο aval à não-violência proclamada na encíclica de João XXIII, acrescentando-se que, “se não existe uma verdade última para guiar e dirigir a actividade politica, então as ideias e as convicções podem ser facilmente manipuladas por razões de poder”. A encíclica de João Paulo II celebra os 100 anos da Rerum novarum de Leão XIII, e, reiterando as criticas ao liberalismo, nela ο Papa afirma que a queda do comunismo não se traduz na vitória do capitalismo, que esta hoje afastado das suas raízes cristas, tudo reduzindo à dimensão económica.
- 12 Idem.
- 13 Intervenção do Chefe da Delegação da Santa Sé no Encontro Mundial de Joanesburgo sobre ο desenvolvi (...)
5João Paulo II, empenhado em devolver à Igreja Católica a sua autoridade sobre a sociedade, concebeu então um projecto de evangelização e reevangelização à escala planetária, agindo contra a disseminação do ateísmo e a favor da propagação da doutrina da Igreja, para assim alcançar a paz. Ο seu principal meio de acção é a diplomacia papal, que ο subsecretário de Estado para as relações entre Estados, Monsenhor Celestino Migliore, designa como uma “diplomacia de consciência”, pois coloca a tónica na defesa dos direitos humanos12 e “no bem da família humana”. Família humana porque a palavra família remete para “mais do que simples relações de funcionalidade ou uma mera convergência de interesses”, “uma comunidade fundamentada na confiança recíproca, no apoio mútuo e no respeito sincero”, onde “os fortes não dominam; pelo contrário, em virtude da sua debilidade, os membros mais frágeis são ulteriormente ajudados e servidos”13.
Ο reencontro da unidade com a universalidade
- 14 João Paul II, “Papal Diplomacy Is Service to Humanity”, L'Osservatore Romano, 25 Novembre 1998.
- 15 Jean George, “Le Vatican Urbi et Orbi. La Politique Internationale de la Papauté», La Pensée, n.° 2 (...)
6Baseada na própria unidade da Igreja Católica, a diplomacia papal é também unitária. Diz João Paulo II que “a comunhão que assegura as relações entre as diversas Igrejas e ο Bispo de Roma, somada ao facto de ser um princípio eclesiológico inviolável, é também um recurso internacional”14. A Igreja Católica está assim dotada de um poder único centralizado, ο Papa, ο qual detém a primazia sobre todos os católicos, incluindo os bispos, “e a primazia da iniciativa de Roma nas aproximações com as outras religiões”. Por esta razão, a Santa Sé procura afastar as correntes que no seio da própria Igreja podem comprometer essa unidade, como por exemplo, a Teologia da Libertação, que concebe Pedro como um entre os apóstolos, e deste modo “o seu sucessor não deveria ser (...) senão ο primeiro entre os seus pares”, e que “funda a unidade no pluralismo, na diversidade e nos movimentos dos fiéis”15.
- 16 Sergio Quinzo cit. em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?»,(...)
- 17 Um empenho apostólico conjunto: o Sínodo da Unidade. Discurso do Cardeal Angelo Sodano durante a XV (...)
7É também para garantir a unidade da Igreja Católica que João Paulo II viaja incessantemente, procurando que a união de todos os católicos se realize em torno da sua imagem, criando, pela sua presença, obstáculos “às fortes tendências centrífugas das várias Igrejas, cada vez mais afastadas e diferenciadas entre si”16. São também frequentes os apelos à unidade de todos os bispos: “é fundamental que ο Colégio dos Bispos mantenha uma unidade vital e activa, através de vínculos afectivos e efectivos de profunda colaboração com ο Bispo de Roma e com todos os Irmãos. (...) os 25 bispos responsáveis pelas respectivas Congregações da Cúria Romana estão constantemente empenhados no fomento deste espírito de fraterna colaboração com todos os Bispos do mundo inteiro, seguindo as directrizes que ο Santo Padre nos indicou na Constituição Apostólica sobre a Cúria Romana, de 28 de Junho de 1988 com ο título muito significativo: Pastor bonus’. É ainda este “o espírito com que trabalham geralmente os Bispos enviados pelo Papa como Seus Núncios e Delegados Apostólicos às varias Nações”17.
- 18 Idem.
- 19 Bruno César Santos Cardoso Reis, Portugal e a Santa Sé, da Paz ao Conflito? As Relações Diplomática (...)
- 20 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 59.
8A par da unidade, pela sua própria natureza a Igreja Católica aspira também à universalidade – “antes da Igreja particular existe a Igreja universal, isto tanto ontológica como temporalmente.”18 Com efeito, a universalidade é intrínseca ao próprio Cristianismo, na medida em que, segundo os Evangelhos, Cristo terá incumbido os apóstolos de espalhar a nova fé por todos os povos19. Ora, esta aposta na universalidade reflecte-se na crescente internacionalização da Cúria Romana, na própria complexificação da acção diplomática, nas inúmeras deslocações internacionais empreendidas pelo Papa (para quem “o Este e ο Oeste, ο Norte e ο Sul” foram sempre “pontos cardeais e não linhas de forças políticas antagonistas”), as quais fazem de João Paulo II “o mais popular dos dirigentes do mundo” e justificam que o próprio use o título de “Pastor universal”. Ο Sumo Pontífice, diz Joel-Benoît d'Onorio, encarna, assim, “o reencontro da unidade com a universalidade”20.
- 21 João Paul II, “Papal Diplomacy Is Service to Humanity”, L'Osservatore Romano, 25 Novembro 1998.
9Tendo por base a convicção de que a pobreza extrema, os desequilíbrios sociais, as tensões étnicas, a degradação do ambiente, a falta de democracia e ο desrespeito pelos direitos humanos21 constituem as verdadeiras ameaças à construção da paz, a acção diplomática de Joao Paulo II unifica-se em torno de algumas ideias-chave:
-
- 22 Intervenção da Delegação da Santa Sé na Reunião Anual da OSCE, Varsóvia, 9 de Setembro de 2002 (www (...)
- 23 Address of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/ (...)
- 24 Resposta de Sua Excelência Arcebispo Jean-Louis Tauran, Secretário do Vaticano para as Relações com (...)
a defesa dos direitos humanos, ainda que numa perspectiva religiosa que tende a afastar-se da sua origem revolucionária (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789). No que respeita ao direito à liberdade é normalmente privilegiado ο direito à liberdade religiosa. Diz-se assim que “a liberdade religiosa continua a ser um elemento essencial para a segurança e para a coexistência pacífica dos povos, uma condição para qualquer prevenção efectiva de conflitos e um poderoso instrumento para a construção de uma paz duradoura”22. E não apenas no seu aspecto individual e ritual, mas também na sua dimensão social e corporativa”23. A Igreja empenha-se assim na promoção de um maior respeito pelos valores espirituais e morais (educação, cultura e religião), valores estes que considera essenciais à construção da paz. No domínio dos direitos humanos introduz-se ο direito à vida em todos os estádios do seu desenvolvimento biológico, rejeitando ο aborto, a eutanásia e a clonagem humana. Proclama-se ainda ο direito ao trabalho, a uma justa remuneração e à liberdade de consciência24;
-
- 25 Mensagem para ο Dia Missionário Mundial, 19 de Maio de 2002 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat (...)
a afirmação de que não há política sem moral (cuja fonte é o Evangelho). É a moral que se opõe ao ódio, ao materialismo, à falsa liberdade dos instintos (o que conduz à defesa da família, à indissolubilidade do casamento, à recusa da contracepção). É a defesa da supremacia da ética sobre a política e a economia. Por esta razão, diz-se, “só ο amor de Deus” poderá fazer desaparecer as divergências entre os homens, as desigualdades económicas, etc.25;
-
- 26 Centesimus annus.
a defesa da democracia, porque esta corresponde ao desejo de participação dos cidadãos na vida politica e procede a uma avaliação constante dos governantes26;
-
- 27 Intervenção do Chefe da Delegação da Santa Sé no Encontro Mundial de Joanesburgo sobre ο desenvolvi (...)
a promoção do desenvolvimento sustentável, com ο fim de erradicar a pobreza, “que não pode ser definida em termos económicos”, mas que se define enquanto “incapacidade que as pessoas têm de realizar a sua potencialidade, recebida como dádiva de Deus”27;
-
- 28 Carta do Cardeal por ocasião da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) (www.v (...)
- 29 Address of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/ (...)
- 30 Resposta de Sua Excelência Arcebispo Jean-Louis Tauran, Secretário do Vaticano para as Relações com (...)
a solidariedade entre as nações (“globalização da solidariedade"28) porque “toda a gente tem ο direito de receber uma justa parcela dos bens deste mundo” e “ todos nos devemos sentir responsáveis pelo crescimento e a felicidade de todos”29. Se a miséria pode conduzir à violência e ao isolamento, a solidariedade conduz à promoção e defesa da paz e à recusa da guerra como uma solução para os conflitos entre os Estados, consequentemente, à defesa do desarmamento efectivo30;
-
- 31 Adress of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/h (...)
Ο estabelecimento de uma ordem internacional fundada na Justiça e no Direito, ο que implica também ο desarmamento e uma cultura de não-violência. Diz ο Santo Padre: “ο mundo seria totalmente diferente se se começasse a aplicar firmemente os acordos já assinados” no âmbito do direito internacional31.
10Para disseminar estes ideais, ο Papa repete-os incessantemente no decorrer das suas viagens, procurando assim mobilizar a comunidade de fiéis e apoiar a hierarquia local na sua aplicação prática. Para este efeito, dado que a Santa Sé é sujeito soberano do direito internacional, ο Sumo Pontífice conta ainda com a diplomacia bilateral e multilateral.
A Santa Sé, sujeito soberano do direito internacional
- 32 Jacques Mercier, op.cit., p. 426.
11No Congresso de Viena (1815) consagrou-se ο estatuto da Santa Sé como sujeito pleno do direito internacional, e “a nova regra protocolar da precedência por antiguidade reconheceria uma excepção no caso dos Estados católicos, a quem era dada a faculdade de manterem a precedência de honra para com ο representante da Santa Sé”32. Esta situação foi reafirmada pela Convenção de Viena sobre ο Direito dos Tratados (1961). Os núncios são assim em muitos países, entre os quais Portugal, decanos do Corpo Diplomático.
- 33 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 56.
12Ο autor Joel-Benôit d'Onorio faz remontar as primeiras relações internacionais da Igreja Católica Romana à visita dos Reis Magos vindos do Oriente à gruta de Belém, marcando a Epifania “a revelação do Senhor às nações” e lembra depois que ο Papa na Idade Média era já “uma espécie de chefe e árbitro entre Nações cristãs”. Porém, os Descobrimentos, confrontando as Nações cristãs com novos povos pagãos, abririam brechas à unidade da fé, enquanto que a Renascença e a Reforma “subtraem uma parte da Europa à influência da Santa Sé”. Com a Paz Vestefália (1648), consagrou-se uma nova ordem internacional, em que os Estados soberanos estavam ligados entre si “sobre uma base contratual de autonomia da vontade e não mais sobre a de uma norma superior revelada”. Ο declínio do poder papal culminaria com a perda dos Estados pontificais (1870) e consequente marginalização política da Santa Sé33.
- 34 Idem, p. 14.
- 35 Idem, p. 18
13Destituída do seu poder temporal, a Santa Sé continuava, porém, a agir como se conservasse as bases da sua soberania temporal, isto é, mantendo, entre 1870 e 1929, quando deixaram de existir os Estados papais e até que os acordos de Latrão resolvessem a Questão Romana, ο direito de representação diplomática, activo e passivo. Alias, ο número de Estados representados na cúria de Roma em 1870 era de 14, atingindo os 30 em 1929, ano em que viria a ser assinado ο Tratado de Latrão. Mais ainda, realizaram-se visitas oficiais de chefes de Estado ao Vaticano, foram assinados muitos documentos entre os Estados e a Santa Sé (concordatas, convenções, acordos, etc.) e foram feitos vários esforços para intervir no plano das relações internacionais: um apelo junto da Sociedade das Nações a favor do povo russo (1922); esforços para regular a situação jurídica dos lugares santos de Jerusalém (1923); um memorando sobre ο projecto de convenção internacional para a supressão da escravatura (1926)34. Neste período, a Santa Sé demonstrou desse modo que continuava “a usufruir de prerrogativas que relevam plenamente do direito internacional”, e “que era a Igreja sociedade espiritual que estava em causa e não um antigo Estado. A este respeito, podemos dizer judiciosamente que, durante estes dois terços século, «a experiência foi também prova» “35.
- 36 Gérard Descotils, “La Diplomatie du Saint-Siège», Relations Internationales et Stratégiques, n.° 9, (...)
- 37 Ivan Vallier, “The Roman Catholic Church: A Transnational Actor”, Transnational Relations and World (...)
- 38 Idem, ibidem.
- 39 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 20.
14Assim, se tal lhe foi consentido devido ao peso da tradição, porque os Estados evitavam tomar atitudes que poderiam ser tidas como anticlericais e ο governo italiano não se opôs36, parece inegável de que se trata sobretudo do reconhecimento por parte da comunidade internacional do poder espiritual do Papado, que assim se revelava independente do seu poder temporal. A “apropriação do Estados papais por Vítor Emanuel II em 1870” permitiu que Papado se afirmasse para lá “das bases temporais e territoriais de poder”. De facto, foi entre 1870 e 1929 que a Santa Sé “fez ο seu caminho nas relações internacionais como um soberano espiritual, ο que significa, no direito internacional que beneficia de um estatuto jurídico pleno”37. Com os acordos de 1929, é devolvida a esta autoridade espiritual a soberania territorial sobre a Cidade do Vaticano, ο que acabou por facilitar ο estabelecimento de uma extensa rede de relações com os outros Estados: a Igreja é uma organização transnacional, com um centro visível a partir do qual os princípios podem ser comunicados38. Esta duplicidade de funções do Papa, que é simultaneamente chefe de Estado e chefe da Igreja Católica Romana, trás alguma ambiguidade à diplomacia papal. Contudo, ο facto de ter subsistido enquanto potência, impede que a mesma seja “confundida institucionalmente com ο Estado da Cidade do Vaticano”39.
- 40 Ivan Vallier, op. cit., p. 133.
- 41 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 12.
- 42 Jean George, op.cit., p. 96.
- 43 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 20.
15Na verdade, ο Vaticano não pode ser caracterizado como um Estado nação: 1) embora a Santa Sé seja soberana temporal, cerca de um bilião de pessoas estão sobre a sua autoridade – religiosa e moral, não política – vivendo “dentro das fronteiras de outras entidades soberanas ou Estados-nação”40. Por isso se diz que ο Papa é “chefe de um Estado «que é ο mais pequeno do mundo quanto à superfície, mas ο maior segundo ο espírito”41. Como ο provam os diferentes documentos diplomáticos que a Santa Sé conclui – as concordatas, por exemplo – a sua soberania exerce-se não sobre um território mas sobre as pessoas, quanto à sua vida religiosa e moral. 2) “Eleito pelos homens da Igreja, dita universal, ο Papa vai ao estrangeiro a convite de uma comunidade religiosa, com ο necessário acordo, mas sempre secundário, das autoridades estatais locais. Ele atravessa uma fronteira, mas ele está ao mesmo tempo em sua casa, sempre no seu reino universal”42. A Santa Sé é apenas “o governo central e supremo da Igreja na qual há que ver ο verdadeiro sujeito do direito internacional” afirma, não sem controvérsia, Jean Benoît d'Onorio43.
- 44 Ivan Vallier, op.cit., pp. 129-152.
- 45 Pierre Valin, “Le Saint-Siège dans les relations internationals” in Études, Tomo 385, n.° 3 (3853), (...)
- 46 Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence of the Holy See in the internati (...)
16A acção da Santa Sé nos Estados depende da sua capacidade de se autolegitimar junto dos governos nacionais, e por isso ο reconhecimento da sua autoridade espiritual “está altamente dependente das suas capacidades políticas e diplomáticas”44. Sendo no plano da ética que encontra a legitimidade da sua actuação, é também por essa via que procura ver reconhecido ο seu estatuto internacional. Ο sujeito soberano do direito internacional, de natureza religiosa e moral, não é ο Estado do Vaticano, mas a Santa Sé, ou a Sé Apostólica – “a autoridade espiritual que personifica ο Pontífice Romano, autoridade que inclui também, pelo menos em parte, os administradores que rodeiam ο Papa na sua Cúria”45. É este ο entendimento do direito público internacional, confirmado pela prática dos Estados e suas organizações. De facto, “desde ο final da Idade Média, ninguém contesta a legitimidade internacional da Santa Sé; nem os soviéticos no passado recente, nem os chineses hoje. Não há dúvida de que a Santa Sé pertence inteiramente à comunidade internacional”46.
- 47 Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence ofthe Holy See in the internatio (...)
- 48 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 20.
- 49 Idem, ibidem.
- 50 Idem, ibidem.
17É a Santa Sé – e não ο Vaticano – que detém ο estatuto de observador das Nações Unidas (o que lhe permite assistir às sessões das Nações Unidas debater as resoluções e dirigir-se à Assembleia Geral, embora não vote nem participe nas conferências das Nações Unidas, e assim deter uma influência muito significativa na política internacional) e acredita embaixadores (núncios) junto dos Estados. Tal situação não é partilhada por mais nenhuma outra religião, e é justificada pelos representantes do Vaticano dado ο papel da Igreja Católica enquanto força moralizadora nas relações internacionais, devendo-o à sua organização universal e transnacional e, acima de tudo, à sua história47. Daí também que esteja representada em muitas outras organizações internacionais como a FAO (Food and Agriculture Organization), ο Conselho da Europa, as Comunidades Europeias, a Organização para a Segurança e Cooperação Europeia, a Organização dos Estados Americanos, a Organização para a Unidade Africana, a Agência Internacional da Energia Atómica. Foi aliás esta emergência de organizações internacionais governamentais que acabou por atenuar a discussão da personalidade jurídica internacional da Santa Sé. Sendo ο Papa “reconhecido como «a mais alta força moral» mesmo pelos não crentes” (o que faz com que a sua presença na cena internacional também não seja confessional), ele é, então, “um soberano de natureza espiritual, sem reino visível, mas não menos real” e daí advém a sua designação habitual de “soberano pontífice”48. Na realidade, se ainda hoje “tanto as grandes potências como os micro-Estados solicitam o estabelecimento dessas relações, é porque há nesse «organismo atípico» qualquer coisa de irredutível, de inevitável e indispensável à comunidade das Nações”49. Assim transparece no artigo 2.° do Tratado de Latrão que declara a soberania internacional da Santa Sé como “inerente à sua natureza”50. É, portanto, a única organização religiosa que tem estatuto de Estado e representação nas organizações internacionais. Ora, este estatuto especial merecia ser questionado à luz da ideia de uma liberdade religiosa planetária.
A diplomacia papal
- 51 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 12.
- 52 Jean George, op.cit., p. 99.
- 53 Gérard Descodls, op.cit., p. 59.
- 54 H. E. Cardinale, The Contribution of the Holy See to World Peace, (Adaptado da comunicação dada pel (...)
- 55 Idem.
18Ο Papado hoje, poder neutro sem quaisquer aspirações de natureza temporal – ο que significa que “é totalmente independente e livre de todos os laços humanos que ο constrangem e obrigam”51–, tem um lugar quase consensual nas relações internacionais. Importante força de persuasão acima de qualquer sistema político (embora com preferência pelo sistema democrático), aposta na moralização das relações internacionais. Mgr. Renato Martino, observador permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, afirma que “a sua «missão essencial», bem como a dos outros representantes do Papa, «não é afirmar ο direito internacional» mas «indicar os valores»“52. Por essa razão Paulo VI terá dito que a diplomacia papal é “a arte de criar a paz”53, paz política, social e religiosa. E com este objectivo, é dever dos diplomatas papais “pôr em marcha (...) toda a maquinaria da Igreja nas suas respectivas áreas, através de conferências episcopais, do clero e dos fiéis”54. Dito de forma mais clara, “o objectivo último da diplomacia papal é ο estabelecimento do Reino de Deus entre os homens através da salvaguarda da prática da fé onde ela já existe e estendendo ο seu conhecimento onde ela é fraca ou ausente”55.
- 56 Paul Blanquart, op.cit., p. 31 e Ivan Vallier, op.cit., p. 133.
- 57 Ivan Vallier, op.cit., p.133.
- 58 Gerard Descotils, “La Diplomatie du Saint-Siège», Relations Internationales et Stratégiques, n.° 9, (...)
- 59 Jean George, op.cit., 94.
19Autoridade moral por excelência, a Igreja Católica procura assim contribuir para a criação de uma nova ordem social, baseada na lei divina e nos ensinamentos cristãos contidos no Evangelho56. A diplomacia papal é um instrumento desta pretensão, faz parte da organização transnacional da Igreja concebida para “exercer influência e controle social”57, e compreende as relações com os Estados mas também os assuntos internos da Igreja e as relações com as outras religiões. Os objectivos da diplomacia vaticana são, assim, distintos dos outros Estados, mas a diplomacia, enquanto técnica, serve bem estes objectivos58. Mesmo que para isso os diplomatas ao serviço do Papado, tal como os outros seus colegas, tenham que recorrer a “finesse, realismo, pragmatismo,59 mesmo que a diplomacia pareça contraria ao sacerdócio, e mesmo que ο catolicismo seja a única religião do mundo a ter uma organização diplomática e que considera deter uma preponderância que a distingue das outras confissões religiosas”, numa época em que ο ecumenismo poderia ter conduzido a Igreja a abandonar a ideia da universalidade.
- 60 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 51.
- 61 Gérard Descotils, p. 60.
20Com a instituição das conferências episcopais após ο Concílio Vaticano II, a existência de nunciaturas tem sido colocada em causa. Mas, como defende d'Onorio, dado “que os bispos, autênticos chefes das suas dioceses, não são de modo algum os representantes do primeiro dos bispos, e ainda menos seus delegados”, e que ο Papa tem “o direito de imprimir a sua vontade hierárquica em todo ο lugar e todas as coisas segundo a sua linha de pensamento e de acção que ele é ο único habilitado a definir para toda Igreja, com ou sem ο concurso do Colégio dos bispos”, ο aparelho diplomático da Santa Sé subsiste60. A Igreja Católica encontra, como justificação para a diplomacia papal quer uma espécie de “delegação espiritual” quer a “herança de um poder temporal”61, com raízes históricas muito recuadas.
- 62 Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence of the Holy See in the internati (...)
21A origem dos delegados do Pontífice romano é, de facto, muito antiga: primeiro, os papas faziam-se representar nos concílios por legados e no episcopado local por vigários apostólicos, ambos com prerrogativas exclusivamente religiosas. Já em 453, no final do Concílio de Calcedónia, surge a figura do Núncio Apostólico, no sentido moderno do termo, isto é, um embaixador do Papa acreditado junto de um Governo, mas também “investido com uma missão eclesial” (junto da Igreja local). No final do concílio, “o Papa Leão, ο Grande, pediu ao seu legado, Julian de Cos, que tinha seguido os trabalhos do Concílio, para aí permanecer e aplicar as decisões da assembleia. Para este fim, deu-lhe duas cartas credenciais: uma acreditando-o junto da hierarquia local, representada pelo Patriarca Marcion, e outra para o Imperador de Constantinopla, Teodosius”62.
- 63 Vide, por exemplo, Henry Kissinger, Diplomacy, New York, Simon & Schuster, 1994, p. 58.
- 64 Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence of the Holy See in the internati (...)
- 65 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 35-36.
22Com a emergência do Estado Moderno, e com o surgimento do conceito de raison d'Etat (o bem-estar de um Estado justifica os meios empregues para ο satisfazer, sejam eles quais forem)63, os governos inspirar-se-iam nas instituições de crédito e agências comerciais venezianos: cria-se um sistema de recolha de informação de carácter permanente, em que ο representante diplomático tenta também obter a confiança do Estado onde se encontra acreditado. Este modelo viria a ser adoptado também pelo Papado e a primeira nunciatura apostólica, encabeçada por um arcebispo enviado de Roma, surge em 1500, nas cidades de Veneza e Paris; e em 1513 em Viena64. No final do séc. XVI “o sistema de nunciaturas recebe de Gregório XIII a sua organização geral que, nas suas grandes linhas, ο governa ainda hoje”65.
23Hoje, para além de estar representada nas organizações internacionais, a Santa Sé faz-se representar em todo ο mundo através do envio permanente de núncios ou legados junto dos Estados soberanos e, simultaneamente, junto das hierarquias católicas das diversas nações.
Ο Papa e a Secretaria de Estado
- 66 Jean George, op.cit., p. 95.
- 67 João Paul II, “Papal Diplomacy Is Service to Humanity”, L'Osservatore Romano, 25 Novembro 1998.
24Ο Papa é ο principal agente da diplomacia vaticana. Segundo ο dogma católico, ao Papa, vigário de Cristo sobre a Terra e Servo dos servos de Deus, cabe conduzir ο homem à verdadeira realização. João Paulo II, “cuja humildade não parece ser a sua principal virtude, entende desempenhar plenamente este papel”66. Afirma assim exercitar “a sua missão diplomática como um serviço concreto à humanidade”, ajudando os indivíduos “a cumprirem ο seu destino em paz e harmonia, com vista ao bem comum e ao desenvolvimento integral dos indivíduos”67.
- 68 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., pp. 35-36.
25Não obstante ο destacado papel do Sumo Pontífice, a condução da política internacional da Santa Sé é sobretudo emanada da Secretaria de Estado. Esta instituição é herdeira da chamada Secretaria Apostólica, criada em 1487 e composta por 24 secretários, um dos quais, ο Secretarius Domesticus, ocupava lugar de destaque junto do Sumo Pontífice. Leão X criaria um outro cargo, ο Secretarius Intimus, com funções essencialmente político-diplomáticas. Já no século XVII, sob Inocêncio X (1644-1655), aparece ο primeiro Secretário de Estado. Trinta anos mais tarde, com Inocêncio XII (1691-1700), ao cardeal Secretário de Estado é atribuído todo ο poder em matéria diplomática. A partir de Pio IX (1846-1878), ο Secretário de Estado é transformado no principal conselheiro e colaborador do Papa, e Paulo VI coloca-o no topo da hierarquia do governo central da Igreja68.
- 69 “Secretaria de Estado” (www.vatican.va/curia_romana/secretariat_state).
- 70 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 37.
- 71 Idem, p. 36-37.
- 72 Idem, p.37.
26Ο Cardeal Secretário de Estado é considerado “o máximo expoente da actividade diplomática e política da Santa Sé”, podendo até representar ο Sumo Pontífice69. É ele ο responsável pela diplomacia pontifical, representando a Santa Sé nas negociações e nas relações com os Estado s70. “Verdadeiro Estado-Maior do Soberano Pontífice”, a Secretaria de Estado é dirigida por um cardeal nomeado “directa e discricionariamente” pelo Papa71 não estando ο secretário de Estado “submetido ao mandato quinquenal que governa a nomeação dos chefes de decastério: ele exerce funções ad tempus indefmitum “72.
- 73 Henri Tincq, cit em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?», P (...)
27Desde 1991 é Secretário de Estado Mons. Angelo Sodano, que embora sem ο carisma de Agostino Casaroli, seu antecessor (a quem a imprensa deu ο título de Mons. Perestroika), se destacou como núncio no Chile, quer na mediação do conflito fronteiriço entre este país e a Argentina, quer no processo de transição democrática depois da queda de Pinochet: “os vaticanistas pensam que ele poderá desempenhar na América Latina ο papel decisivo que teve, na Europa de Leste, ο cardeal Casaroli”73.
- 74 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 37.
- 75 Henri Tincq, op.cit., p. 47.
28Após a reforma empreendida por João Paulo II (1988), a Secretaria de Estado é dividida em duas secções: a Secção dos Assuntos Gerais e a Secção das Relações com os Estados. A primeira compreende os Serviços Linguísticos e de Cifras, a Secção dos Organismos Internacionais (que faz a ligação com os representantes pontificais nestes organismos e prepara as conferências internacionais), ο Serviço de Pessoal (“responsável pelas nomeações na administração pontifical, incluindo nunciaturas”) e a Secção do Protocolo74. Esta secção é dirigida por um Arcebispo, ο Substitute para os Assuntos Gerais, assistido por um Assessor para os Assuntos Gerais. Tal função é hoje desempenhada por Mons. Giovanni Battista Ré, sucessor do cardeal Benelli, antigo Substituto do Papa Paulo VI, de quem se diz que “seria ο sucessor não fosse a cabala montada contra ele pelos cardeais italianos conservadores que repugnaram ο seu brio intelectual e a sua autoridade”75.
- 76 Idem, Ibidem.
29Já a Secção das Relações com os Estados trata da actividade diplomática da Santa Sé (a política concordatária, por exemplo), participa nas nomeações episcopais, e prepara as viagens do Papa João Paulo II. A secção é dirigida por um Arcebispo, ο Secretário para as Relações com os Estados, coadjuvado pelo Subsecretário para as Relações com os Estados. Este cargo, segundo em ordem de importância na diplomacia da Santa Sé, é hoje desempenhado pelo francês Mons. Tauran, tendo antes sido ocupado por Casaroli e Silvestrini. Tauran terá sido escolhido por dominar as questões da segurança europeia e do Próximo Oriente76.
- 77 Constance Colona-Césari, Urbi et Orbi. Enquête sur la géopolitique vaticane, Paris, Editions La Déc (...)
30Segundo Constance Colona-Césari, “a nova composição da Secretaria de Estado, decidida um anos depois da vinda a Roma de Mikhaïl Gorbatchev e apenas um mês antes dο início da guerra do Golfo, reflecte uma mudança muito significativa da diplomacia vaticana: depois da frente russa, é em direcção do Próximo-Oriente que Roma concentra doravante os seus esforços”77.
Os diplomatas da Santa Sé
- 78 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 39.
31Em 1701, ο Papa Clemente XI (1701-1721) instituiu a Academia dos Nobres Eclesiásticos, responsável pela formação dos diplomatas da Santa Sé. A partir de 1939, a instituição passara a chamar-se Academia Pontifical Eclesiástica. Considerada de altíssimo nível, tendo por antigos alunos cinco papas, entre os quais Pio XII e Paulo VI78, a Academia é dirigida por um arcebispo nomeado pelo Sumo Pontífice.
- 79 Idem, p. 40.
32Para aceder a esta instituição, os clérigos são escolhidos pelos seus superiores e, depois, com ο acordo do bispo, são chamados pela direcção da Academia. Reservada ao clero diocesano, a Academia exige, pelo menos: a posse de uma licenciatura em direito canónico ou um doutoramento em teologia ou outra ciência sagrada; preferencialmente ο domínio de duas línguas estrangeiras; não ter mais de 30 anos; e já ser padre79. Ο jovem diplomata terá depois de percorrer as diversas etapas da carreira: attaché de nunciatura; secretário de nunciatura; auditor de nunciatura; conselheiro de nunciatura e por fim, embora nem todos atinjam tal nível, chefe de missão (núncio ou pro-núncio), função reservada à dignidade episcopal.
- 80 Contance Colona-Césari, op.cit., pp. 227-228.
33Chefe de missão permanente e ordinário, ο núncio apostólico corresponde a um embaixador extraordinário e plenipotenciário de primeira classe, com ο título de decano do corpo diplomático. Ο pro-núncio distingue-se do núncio apenas por não ser decano do corpo diplomático. Nenhuma das nunciaturas dá acesso ao barrete cardinalício como era ο caso de Paris, Viena, Madrid e Lisboa. Embora prestem à Igreja uma contribuição no que diz respeito a informação política e religiosa recolhida localmente, transformando a Igreja Católica num “centro de informação único no mundo”, os núncios actuam de modo muito discreto, não contando nada do que se passa na Cúria nem comentando os acontecimentos, ο que faz com que sejam praticamente desconhecidos junto grande público80.
- 81 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 47-48.
34Com funções mais religiosas do que diplomáticas, existem também chefes de missão extraordinárias e temporárias. Era ο designado legado a latere, cardeal da Cúria romana que representa ο Papa numa celebração solene ou numa assembleia. Por pertencerem à entourage do Papa tinham ο título da latere e cabiam-lhes as honras soberanas e protocolares devidas ao Sumo Pontífice. Esta função cabe hoje ao cardeal-legado, que embora desempenhando as mesmas funções, nem sempre provém da Cúria romana: “pode ser um cardeal bispo de uma diocese ou reformado; mais raramente, ο representante extraordinário do Papa pode não ser membro do Colégio dos cardeais. Trata-se de um núncio, pronúncio ou delegado apostólico, ou ainda um arcebispo ou bispo diocesano”81.
- 82 Idem, p. 46-47.
35Já os regentes e encarregados de negócios, cargo que não esta reservado à dignidade episcopal, estão acreditados junto dos ministros dos negócios estrangeiros para colmatar a longa ausência de um núncio. Para as organizações e conferências internacionais, a Santa Sé nomeia delegados (com direito a voto) ou observadores (sem direito a voto), que só são de nível episcopal nas Nações Unidas e na FAO, e que não beneficiam de um estatuto diplomático, excepto no primeiro caso, porque esta organização ο concedeu aos países que têm relações diplomáticas com Washington. Por fim, há ainda ο delegado apostólico nomeado para países que não têm relações oficiais com a Santa Sé. Este bispo titular representa ο Papa apenas junto do episcopado local, já que a sua missão é exclusivamente religiosa. Contudo, em muitos países os delegados apostólicos acabam por ser praticamente integrados no corpo diplomático, “prefigurando, muitas vezes, a transformação da delegação em nunciatura como foi ο caso do Japão, do Líbano, da Grã-Bretanha em 1982 e dos Estados Unidos da América em 1984”82.
- 83 Idem, p. 48-49.
36As funções dos representantes papais são actualmente regulamentadas pelo motu proprio de Paulo VI, Sollicitudo Onmim Ecclesiarum (24 Junho 1969), e pelo Código de Direito Canónico. Aí se diz que as suas funções são essencialmente eclesiais: representam ο Papa, informam a Santa Sé sobre a situação religiosa local, colaboram com os bispos e a conferência episcopal, preparam as nomeações das dioceses vagas, etc. Contudo, no caso dos núncios e pro-núncios, estes devem ainda representar ο chefe da Igreja junto dos Estados e das autoridades públicas. Para tal, “devem promover e manter relações com os poderes públicos nacionais e tratar de todas as questões das relações entre a Igreja e ο Estado, designadamente as concordatas e outras convenções do mesmo género”83.
37A diplomacia papal socorre-se ainda de uma vasta rede internacional de bispos (4500 prelados, entre bispos residenciais, titulares e eméritos), que por sua vez tem a sua rede de padres, religiosos e leigos, os quais mantém a Cúria romana e concretizam os interesses católicos nos seus países. As comunidades de missionários, com casas em Roma, são outra fonte de informação crucial para a Curia e missões diplomáticas.
Actividade diplomática pontifical
- 84 Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence of the Holy See in the internati (...)
- 85 Bruno César Santos Cardoso Reis, op.cit., p. xliii-xliv.
- 86 “Relações internacionais. Embaixada canadiana na Santa Sé” (www.canadaeuropa.gc.ca/hollysee/int_rel (...)
- 87 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 59.
38Em 1978, à data da eleição de João Paulo II, a Santa Sé tinha relações diplomáticas com 84 países; hoje, em 2002, este número cresceu para 17284. João Paulo II torna assim ainda mais vasto ο papel do Papado nas relações internacionais: “quanto ao século presente (...) também no caso da diplomacia papal se confirma a adequação da designação que lhe colocou Eric Hobsbawm: ο século XX foi uma Época de Extremos para ο Vaticano. Começou pelo que nos parece ser um limiar mínimo na sua existência, e terminou com ο que parece no campo especificamente diplomático ο seu limiar máximo até ao presente85. A acção diplomática concreta e as inúmeras viagens do Papa são disso um exemplo claro. Utilizando “o seu estatuto de líder moral e espiritual”86, e por conseguinte, com um discurso “predominantemente moral”87, a Santa Sé intervém por toda a parte, denunciando conflitos, defendendo os seus interesses e propagando ο seu ideal de sociedade, tendo sempre presente que cerca de 17,3% da população mundial é católica. A Europa de Leste e Ocidental, ο Médio Oriente e a América Latina são algumas das principais frentes da diplomacia vaticana. Ο desarmamento mundial é também uma das áreas onde a Santa Sé tem procurado e tem conseguido, fazer ouvir a sua voz.
a) Europa de Leste
- 88 Jean George, op.cit., pp. 98-99.
- 89 Gérard Descotils, op.cit., p. 69.
- 90 Idem, p. 68.
- 91 Catholic Contributions to International Peace, United States Institute of Peace, 9 Abril 2001 (www. (...)
39A importância da acção diplomática de João Paulo II para ο colapso do comunismo na Europa de Leste (1989) tem sido amplamente destacada. A revista Time noticiou um encontro entre João Paulo II e Ronald Reagan, a 7 de Junho de 1982, no Vaticano, no qual terá sido decidido ο financiamento do Solidariedade pelo Nacional Endowment for Democracy. Embora na revista se afirme que esta “Santa Aliança” não pode ser entendida como a causa da queda do comunismo, porque “nem Reagan nem ο Papa podiam prever ο acesso ao poder de um dirigente soviético como Mikhaïl Gorbatchev (...) cujos esforços para a reforma libertaram forças poderosas que escaparam ao seu controle e que terão conduzido ao afundamento da União Soviética”88, é inegável que João Paulo II e a Igreja Católica iriam influir na evolução do regime polaco, nomeadamente, na resistência moral contra os constrangimentos de um Estado totalitário89: “o clero sentiu-se encorajado, ο povo acompanhado e ο líder do Solidarnosc integrava naturalmente a sua fé no combate”90. A generalidade dos autores minimizam a audiência de Gorbachev com o Papa, que teve lugar a 1 de Dezembro de 1989, poucas semanas após a queda do Muro, numa breve passagem do Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética em Roma, quando este se ia encontrar em Malta com ο presidente George Bush, para aí discutir ο destino da Europa de Leste, ο desarmamento e os conflitos na América Central. Contudo, assim se manifestou ο reconhecimento soviético da influência do catolicismo na política mundial e do papel dos valores morais e religiosos nas sociedades. Há ainda quem diga que as conversas do Papa com Jaruzelski (chefe do Estado polaco) e Gorbachev podem ter contribuído para evitar a confrontação militar entre a União Soviética e os seus satélites da Europa de Leste91.
- 92 Jean George, op.cit., p. 101.
40Após ο desmoronamento da União Soviética, ο Santo Padre empenhar-se-ia tenazmente em “preservar a Europa de Leste das perversões do Ocidente”. Não tendo a Europa de Leste outras referências senão as do “materialismo ocidental”, ο Papa tudo faz para aí alcançar a “verdadeira liberdade”, procurando estabelecer e restabelecer nunciaturas, recuperar os seus bens, reorganizar a hierarquia católica, adquirir liberdade de ensino religioso, etc. A Igreja Católica polaca é por muitos considerada exemplar na sua batalha contra ο aborto, pelo ensino da religião nas escolas públicas e pelo reconhecimento civil do matrimónio católico92.
b) Europa Ocidental
- 93 Time, vol. 151, n.° 15, April 13, 1998.
- 94 Jean George, op.cit., p. 97
- 95 Idem, p. 98
- 96 Idem, p. 97.
- 97 Address of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/ (...)
- 98 L'Intervento del Cardinale Secretario di Stato Angelo Sodano al vertice dell'OSCE a Istanbul, 18 no (...)
- 99 Paul Ladrière cit. em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?»,(...)
- 100 Address of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/ (...)
- 101 Paul Ladrière, op.cit. p. 9.
41Se a Igreja Católica se regozija com a queda do comunismo, criticado não pelos seus defeitos económicos mas porque “violava ou ameaçava a dignidade humana”93, tal não significa que celebre ο triunfo do capitalismo. Embora ο considere ajustado à doutrina social da Igreja, “conforme à ordem natural, que faz corresponder a hierarquia social das classes desiguais mas complementares à hierarquia eclesial neste mundo e à daquela dos eleitos no outro”94, entende que este sistema perpetua “muitas formas de injustiça, exploração, violência e arrogância”, que devem ser condenadas95, como é também condenável ο materialismo consumista e a descristianização que ameaça a Europa. Ο Papa lembra assim que a Europa é cristã nas suas raízes96, que “o cristianismo está na génese do humanismo que permeou a história e as instituições europeias e, por isso, reclamando essa herança, a Santa Sé e as Igrejas Cristãs recomendam aos que elaboram a futura Constituição Europeia para nela incluírem uma referência às Igrejas e instituições religiosas”97. Para João Paulo II é, aliás, no reavivar dessa herança que reside a segurança da Europa, já que a mesma depende de “uma base moral segura”, isto é, do “reconhecimento de uma lei natural reguladora de todas as relações entre os homens, anterior a uma lei positiva dos Estados” (já vimos porquê); do “reconhecimento do direito inalienável da pessoa e dos povos”, porque segurança e respeito pelos direitos humanos são reciprocamente causa e efeito, isto é, a segurança favorece ο respeito pelos direitos humanos e ο respeito por tais direitos favorece a segurança; do “respeito pelas minorias, étnicas ou religiosas”, porque todas as minorias têm ο direito a preservar e a manifestar a sua cultura, e por isso também ο apelo liberdade religiosa na Europa98. A unidade europeia depende deste modo da religião, que deve assumir a sua “função estruturante, servindo de fundamento à sua coesão”99. Para João Paulo II “uma Europa que renega ο passado, que nega a religião, e que não tem uma dimensão espiritual ficará extremamente empobrecida face ao ambicioso projecto que reclama para si todas as suas energias: construir uma Europa para todos”100, logo “o projecto de unidade europeia está [assim] totalmente dependente do da nova evangelização da Europa”101.
c) Médio Oriente
- 102 Brian Hehir, cit. em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?», (...)
- 103 Constance Colona-Césari, op.cit., p. 240.
- 104 Intervention by Card. Angelo Sodano, Meeting on the issue “The future of Christians in the Holy Lan (...)
- 105 Constance Colona-Césari, op.cit., p. 240.
- 106 Catholic World News, 09/17/1996.
- 107 Constance Colona-Césari, idem, ibidem..
42São quatro os principais objectivos prosseguidos pela Santa Sé no Médio Oriente: “proteger as comunidades cristãs da região; salvaguardar ο estatuto religioso de Jerusalém e garantir ο acesso aos lugares santos; defender ο povo judeu e ο Estado de Israel, mas também os direitos dos Palestinianos, nomeadamente ο seu direito a uma pátria”102. A estes objectivos estão subjacentes os próprios interesses da Igreja103, designadamente, a defesa dos “117.000 católicos [residentes] em Israel e nos territórios palestinianos, mais alguns grego-ortodoxos”, perfazendo 3% do total população, sobretudo de origem palestiniana104. Com vista a defender as minorias árabes cristãs, “directamente ameaçadas por Israel, a Arábia Saudita e os emiratos do Golfo, mais do que pelo partido Baas iraquiano”105, ο Vaticano tudo fez para impedir a intervenção militar no Iraque, e ainda hoje se manifesta frequentemente contra ο embargo internacional, “que não contribuiu para a justiça, mas ao contrário tornou ainda mais insuportável ο fardo para ο povo iraquiano”106. Tratam-se de “razões de táctica apostólica, pois há evidentemente bem mais cristãos no mundo árabe do que no pequeno Estado hebreu”. Para a Santa Sé impunha-se “dissociar a Igreja de Roma de uma ofensiva de uma frente estratégica do Ocidente contra ο Iraque; uma distinção tanto maior quanto a necessidade de evitar que esta guerra se tornasse a do Judaísmo-Cristianismo contra ο Islão. E também assim, temendo a reacção dos Estados árabes, se explica a recusa persistente da Santa Sé em reconhecer Israel”107, ο que só faria a 30 de Dezembro de 1993, concretizando um “acordo fundamental”.
- 108 Address of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/ (...)
43Tais argumentes parecem igualmente válidos para a explicar a posição da Igreja Católica face à actual crise iraquiana. Na sua mensagem de Bom Ano Novo dirigida aos diplomatas acreditados na Santa Sé, e naquela que foi a primeira alusão directa à actual conjuntura iraquiana, João Paulo II opôs-se claramente a uma possível guerra contra ο Iraque, negando a inevitabilidade do conflito e sublinhando as suas consequências para as populações civis, já suficientemente penalizadas pelas sanções das Nações Unidas, impostas após a invasão do Kuwait (1990)108. Como alternativa, apela para ο direito internacional, a diplomacia e ο diálogo e em consonância envia um enviado especial para ο Iraque e recebe ο vice-Primeiro Ministro do Iraque, Tariq Aziz, a 14 de Fevereiro de 2003. Deste modo dá ο mote para a mobilização do clero e dos fiéis em acções contra uma intervenção militar no Iraque. Veja-se em Portugal a preparação de homilias dominicais nesse mesmo sentido e a participação de grupos católicos – Comissão Nacional Justiça e Paz, Pax Christi e Metanoia – na manifestação contra guerra que, tendo sido organizada pelo Partido Comunista Português, Bloco de Esquerda e CGTP, entre outros, se irá realizar no dia 15 de Fevereiro.
d) América Latina
- 109 Jean George, op.cit., p. 101.
44A miséria generalizada e as gritantes desigualdades entre classes sociais na América Latina, onde habitam cerca de metade dos católicos de todo ο mundo, conduziu a que parte significativa do clero local tivesse optado pela defesa dos pobres. Como reacção, com vista a manter a unicidade da Igreja Católica na região, nomeadamente a primazia do Bispo de Roma, a Santa Sé preenche as vagas episcopais com homens do Vaticano e combate a Teologia da Libertação. Certos autores acusam ο Vaticano de ter levado a sua colaboração com os Estados Unidos contra a teologia da libertação longe demais: não protestou “contra ο assassinato de personalidades religiosas” e não reagiu “vigorosamente à disseminação de seitas protestantes que Washington e Bona financiaram para fazer contrapeso à Igreja dos pobres”. Só mais tarde, quando, a 12 de Outubro de 1991, a “Igreja Universal do Reino de Deus reuniu 200 000 pessoas no Rio de Janeiro no momento em que [João Paulo II] chegava ao Brasil, é que ο Papa convidou ο clero local a combater as seitas mais activamente”109.
- 110 Homily at Santa Clara, Thursday, 22 January 1998 (www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/documents
- 111 Farewell Address in Havana, Sunday, 25 January 1998 (www.vatican.va/holy_farher/john_paul_ii/travel (...)
- 112 Constance Colona-Césari, op.cit., p. 225.
- 113 Brian Hehir, op.cit., p. 14.
- 114 Idem, ibidem.
45No campo diplomático, são inúmeras as intervenções da Santa Sé, quer através do enviados pessoais do Papa quer pela sua acção diplomática directa na mediação dos conflitos na região. Em 1998, ο Papa viaja para Cuba, encontrando-se por diversas vezes com Fidel Castro e outros governantes. Aí celebra missa na presença do mais alto dignitário do país, a quem parece advertir que se a Igreja “não busca nenhuma forma de poder político para desenvolver a sua missão” ela necessita, contudo, “de um espaço de liberdade e meios suficientes” para agir110. Sem deixar de se referir também à necessária promoção da liberdade e do pluralismo, critica “os sistemas ideológicos que pretendem reduzir a religião à esfera meramente individual”, fala abertamente do “neoliberalismo capitalista” que tudo subordina “às forças cegas do mercado”. Afirma ainda, referindo-se às “medidas económicas opressivas impostas do exterior”: “nos nossos dias, nenhuma nação pode viver em isolamento. Ao povo cubano não pode ser negado ο contacto com os outros povos necessário ao desenvolvimento económico, social e cultural”, sobretudo porque as consequências desse “isolamento imposto” recaem principalmente sobre os mais fracos111. Foi também ο Vaticano que, em 1993, mediou a questão do canal de Beagle, desacordo entre a Argentina e ο Chile sobre a soberania da zona austral do subcontinente latino americano, considerado “um dos sucessos mais significativos da diplomacia vaticana destes últimos decénios”112. Também a forma como a Igreja Católica interveio aquando da invasão do Panamá por tropas americanas em Dezembro de 1989 “é reveladora da importância e da complexidade das atitude da Igreja na América Latina”. Para limitar os combates, ο Vaticano ofereceu asilo temporário a Noriega. Tal atitude não foi compreendida pela opinião pública americana, em parte face à sua desconfiança quanto à diplomacia do Vaticano113. Nesta situação ο Vaticano agiu sobretudo “inspirado por considerações humanitárias, sem renunciar às suas prerrogativas de Estado; ο que implica a capacidade de ocupar um «espaço» no meio das confrontações políticas e militares, onde as exigências humanitárias sejam salvaguardas e onde a acção diplomática reencontra os seus direitos”114.
e) Desarmamento
- 115 Intervenção da Delegação da Santa Sé na Conferência da ONU sobre ο “Desarmamento Geral e Completo” (...)
- 116 Jean George, op.cit., p. 99.
- 117 “Relações internacionais. Embaixada canadiana na Santa Sé” (www.canadaeuropa.gc.ca/hollysee/int_rel (...)
46“Não pode existir uma aceitação moral das doutrinas militares que promovem a subsistência das armas nucleares, porque elas são incompatíveis com a paz que, em conjunto, procuramos para ο século XXI e, por isso, não podem ser justificadas. Tais armas são instrumentos de morte e de destruição”, afirma a Delegação da Santa Sé na Conferência das Nações Unidas sobre ο “Desarmamento Geral e Completo”115. Nesta ordem de ideias, a Igreja Católica considera insuficiente a redução das armas nucleares e apela para uma “interdição universal e não discriminatória”116. Com vista ao cumprimento deste objectivo são inúmeros os documentos internacionais já subscritos pela Santa Sé: a 13 de Junho de 2001 aderiu ao Tratado sobre a Proliferação Total dos Testes Nucleares (CTBT); a 4 de Janeiro de 2002 a Santa Sé subscreveu a Convenção sobre as Armas Biológicas (BWC); a influência do Vaticano foi ainda particularmente útil para a assinatura e ratificação, em 1997, da Convenção de Octava para a eliminação das minas anti-pessoais117, e em 1971 havia já assinado ο Tratado de Não-Proliferação.
Conclusão
- 118 Cit. em Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence of the Holy See in the i (...)
- 119 www.library,saint-mike.org/churchstate/unsupport.
47É inegável ο esforço de João Paulo II e da Curia Romana para estabelecer a paz no mundo e a sua luta pela defesa dos direitos humanos. Algumas organizações católicas, como a Comunidade de Santo Egídio, em Moçambique, e alguns bispos, como Samuel Ruiz, no México e Ximenes Belo, em Timor Leste, destacaram-se também pela mediação de conflitos e por promoverem a conciliação entre os povos. Contudo, a paz defendida pela Igreja Católica não corresponde ao conceito universal, civil, de paz. Trata-se de um conceito de paz segundo ο qual “só ο amor de Deus” pode pôr um fim às dissidências entre os homens. Faz-se dos direitos humanos a pedra de toque para a construção da paz, mas ignora-se a sua origem revolucionária e fundadora do Estado moderno, querendo apelar sobretudo, no plano da liberdade, e para lá dos direitos económicos, políticos e sociais, para ο direito à liberdade religiosa e ο direito à vida desde a concepção à morte natural. Fala-se em liberdade de consciência, mas afirma-se que qualquer poder, não remetendo para Deus, conduz inevitavelmente ao abuso. A paz de João Paulo II implica, assim, a ideia de evangelização e reevangelização. Atente-se na seguinte afirmação de João Paulo II, proferida a 9 de Janeiro de 1995, quando se dirigia ao corpo diplomático acreditado no Vaticano: “a razão porque a Santa Sé tem um lugar no meio da comunidade das Nações é por ser a voz porque espera a consciência humana”118. Poder-se-á então questionar ο sentido do uso da diplomacia papal para promover, no mundo das relações internacionais, uma paz concebida nestes moldes. Relativamente ao estatuto de observador permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, diz uma resolução do Congresso dos Estados Unidos da América (H. Cons. Res. 253 aprovada em 11/07/2002): “a Santa Sé é uma presença moral e ética com que os Estados membros das Nações Unidas podem efectivamente trabalhar para uma aproximação humanitária dos problemas internacionais”119. Sendo assim, porque não conceder ο mesmo estatuto às outras confissões religiosas que poderiam deste modo desempenhar semelhante função?
Notes
1 “Relações internacionais. Embaixada canadiana na Santa Sé” (www.canadaeuropa.gc.ca/hollysee/int_rel_vat).
2 Paul Blanquart cit. em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?», Problèmes politiques et sociaux n.° 658, 7 Junho 1991, p. 28.
3 João Paulo II, “Papal Diplomacy Is Service to Humanity”, L'Osservatore Romano, 25 Novembre 1998.
4 Catholic Contributions to International Peace, United States Institute of Peace, 9 Abril 2001 (www.usip.org/pubs/specialreports)
5 Entre 1522-1523 reinou ο Papa holandês Adriano VI.
6 Émile Poulat cit. em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?», Problèmes politiques et sociaux n.° 658, 7 Junho 1991, p. 5.
7 Recorde-se a ida de Paulo VI à Assembleia Geral das Nações Unidas, a concretização de uma ostpolitik (encontros com os dirigentes comunistas – Podgorny em 1967 e Tito em 1971 – e acordos, como ο protocolo assinado em Belgrado, em 1966, sobre ο reconhecimento da Igreja e a nomeação dos bispos), as suas viagens à Terra Santa, à América Latina, a África e ao Extremo Oriente. Recorde-se ainda a audiência papal aos dirigentes dos movimentos de libertação das então colónias portuguesas (PAIGC, Frelimo, MPLA), concedida a 1 de Julho de 1970.
8 Cf. Catholic Contributions to International Peace, United States Institute of Peace, 9 Abril 2001 (www.usip.org/pubs/specialreports); Joel-Benoît d'Onorio, “La Saint-Siège et le Droit International” in Joel-Benoît d'Onorio (dir.), Le Saint-Siège dans les Relations Internationales, Paris, Éditions du Cerf et Cujas, 1989, p. 57.
9 Jacques Mercier, Le Vatican. Capitale de l'Eglise, Paris, Éditions Lavauzelle, 1984, p. 427.
10 Catholic Contribuerctions to International Peace, United States Institute of Peace, 9 Abril 2001 (www.usip.org/pubs/specialreports)
11 Idem.
12 Idem.
13 Intervenção do Chefe da Delegação da Santa Sé no Encontro Mundial de Joanesburgo sobre ο desenvolvimento sustentável, 2 de Setembro de 2002 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
14 João Paul II, “Papal Diplomacy Is Service to Humanity”, L'Osservatore Romano, 25 Novembre 1998.
15 Jean George, “Le Vatican Urbi et Orbi. La Politique Internationale de la Papauté», La Pensée, n.° 298, Abril-Maio-Junho 1994, p 101.
16 Sergio Quinzo cit. em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?», Problèmes politiques et sociaux n.° 658, 7 Junho 1991, p. 57.
17 Um empenho apostólico conjunto: o Sínodo da Unidade. Discurso do Cardeal Angelo Sodano durante a XVI Congregação Geral (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
18 Idem.
19 Bruno César Santos Cardoso Reis, Portugal e a Santa Sé, da Paz ao Conflito? As Relações Diplomáticas (1940-1968), Tese de Mestrado em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1999, p. xxxiv.
20 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 59.
21 João Paul II, “Papal Diplomacy Is Service to Humanity”, L'Osservatore Romano, 25 Novembro 1998.
22 Intervenção da Delegação da Santa Sé na Reunião Anual da OSCE, Varsóvia, 9 de Setembro de 2002 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
23 Address of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/2003/January/documents).
24 Resposta de Sua Excelência Arcebispo Jean-Louis Tauran, Secretário do Vaticano para as Relações com os Estados após ο doutoramento honoris causa em Relações Internacionais, Manila, em 5 de Junho de 2001 (www.dlsu.edu.ph/offices/mco/publications/newlet-ter/volume33).
25 Mensagem para ο Dia Missionário Mundial, 19 de Maio de 2002 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
26 Centesimus annus.
27 Intervenção do Chefe da Delegação da Santa Sé no Encontro Mundial de Joanesburgo sobre ο desenvolvimento sustentável, 2 de Setembro de 2002 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
28 Carta do Cardeal por ocasião da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
29 Address of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/2003/January/documents).
30 Resposta de Sua Excelência Arcebispo Jean-Louis Tauran, Secretário do Vaticano para as Relações com os Estados após ο doutoramento honoris causa em Relações Internacionais, Manila, em 5 de Junho de 2001 (www.dlsu.edu.ph/offices/mco/publications/newlet-ter/volume33).
31 Adress of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/2003/January/documents).
32 Jacques Mercier, op.cit., p. 426.
33 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 56.
34 Idem, p. 14.
35 Idem, p. 18
36 Gérard Descotils, “La Diplomatie du Saint-Siège», Relations Internationales et Stratégiques, n.° 9, Primavera 1993, pp. 73.
37 Ivan Vallier, “The Roman Catholic Church: A Transnational Actor”, Transnational Relations and World Politics, 5.a ed., USA, Harvard University Press, 1981, p. 133.
38 Idem, ibidem.
39 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 20.
40 Ivan Vallier, op. cit., p. 133.
41 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 12.
42 Jean George, op.cit., p. 96.
43 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 20.
44 Ivan Vallier, op.cit., pp. 129-152.
45 Pierre Valin, “Le Saint-Siège dans les relations internationals” in Études, Tomo 385, n.° 3 (3853), Setembro 1996, p. 223.
46 Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence of the Holy See in the international organizations”, Catholic University of the Sacred Heart, Milan, 22 Abril 2002 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
47 Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence ofthe Holy See in the international organizations”, Catholic University of the Sacred Heart, Milan, 22 Abril 2002 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
48 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 20.
49 Idem, ibidem.
50 Idem, ibidem.
51 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 12.
52 Jean George, op.cit., p. 99.
53 Gérard Descodls, op.cit., p. 59.
54 H. E. Cardinale, The Contribution of the Holy See to World Peace, (Adaptado da comunicação dada pelo Delegado Apostólico no Reino Unido, Arcebispo H. E. Cardinale, no Boston College, 27 Março 1968).
55 Idem.
56 Paul Blanquart, op.cit., p. 31 e Ivan Vallier, op.cit., p. 133.
57 Ivan Vallier, op.cit., p.133.
58 Gerard Descotils, “La Diplomatie du Saint-Siège», Relations Internationales et Stratégiques, n.° 9, Primavera 1993, pp. 59.
59 Jean George, op.cit., 94.
60 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 51.
61 Gérard Descotils, p. 60.
62 Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence of the Holy See in the international organizations”, Catholic University of the Sacred Heart, Milan, 22 Abril 2002 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
63 Vide, por exemplo, Henry Kissinger, Diplomacy, New York, Simon & Schuster, 1994, p. 58.
64 Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence of the Holy See in the international organizations”, Catholic University of the Sacred Heart, Milan, 22 Abril 2002 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
65 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 35-36.
66 Jean George, op.cit., p. 95.
67 João Paul II, “Papal Diplomacy Is Service to Humanity”, L'Osservatore Romano, 25 Novembro 1998.
68 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., pp. 35-36.
69 “Secretaria de Estado” (www.vatican.va/curia_romana/secretariat_state).
70 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 37.
71 Idem, p. 36-37.
72 Idem, p.37.
73 Henri Tincq, cit em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?», Problèmes politiques et sociaux n.° 658, 7 Juin 1991, p. 47.
74 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 37.
75 Henri Tincq, op.cit., p. 47.
76 Idem, Ibidem.
77 Constance Colona-Césari, Urbi et Orbi. Enquête sur la géopolitique vaticane, Paris, Editions La Découverte, 1992, p. 225.
78 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 39.
79 Idem, p. 40.
80 Contance Colona-Césari, op.cit., pp. 227-228.
81 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 47-48.
82 Idem, p. 46-47.
83 Idem, p. 48-49.
84 Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence of the Holy See in the international organizations”, Catholic University of the Sacred Heart, Milan, 22 Abril 2002 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
85 Bruno César Santos Cardoso Reis, op.cit., p. xliii-xliv.
86 “Relações internacionais. Embaixada canadiana na Santa Sé” (www.canadaeuropa.gc.ca/hollysee/int_rel_vat).
87 Joel-Benoît d'Onorio, op.cit., p. 59.
88 Jean George, op.cit., pp. 98-99.
89 Gérard Descotils, op.cit., p. 69.
90 Idem, p. 68.
91 Catholic Contributions to International Peace, United States Institute of Peace, 9 Abril 2001 (www.usip.org/pubs/specialreports).
92 Jean George, op.cit., p. 101.
93 Time, vol. 151, n.° 15, April 13, 1998.
94 Jean George, op.cit., p. 97
95 Idem, p. 98
96 Idem, p. 97.
97 Address of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/2003/January/documents).
98 L'Intervento del Cardinale Secretario di Stato Angelo Sodano al vertice dell'OSCE a Istanbul, 18 novembre 1999 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
99 Paul Ladrière cit. em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?», Problèmes politiques et sociaux n.° 658, 7 Juin 1991, p. 8.
100 Address of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/2003/January/documents).
101 Paul Ladrière, op.cit. p. 9.
102 Brian Hehir, cit. em Patrick Michel, «L'Église de Jean-Paul II: quel rôle sur la scène mondiale?», Problèmes politiques et sociaux n.° 658, 7 Juin 1991, p. 14.
103 Constance Colona-Césari, op.cit., p. 240.
104 Intervention by Card. Angelo Sodano, Meeting on the issue “The future of Christians in the Holy Land”, 13 December 2001 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
105 Constance Colona-Césari, op.cit., p. 240.
106 Catholic World News, 09/17/1996.
107 Constance Colona-Césari, idem, ibidem..
108 Address of His Holiness Pope John Paul II to the Diplomatic Corps, 13 Janeiro 2003 (www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/2003/January/documents).
109 Jean George, op.cit., p. 101.
110 Homily at Santa Clara, Thursday, 22 January 1998 (www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/documents)
111 Farewell Address in Havana, Sunday, 25 January 1998 (www.vatican.va/holy_farher/john_paul_ii/travels/documents).
112 Constance Colona-Césari, op.cit., p. 225.
113 Brian Hehir, op.cit., p. 14.
114 Idem, ibidem.
115 Intervenção da Delegação da Santa Sé na Conferência da ONU sobre ο “Desarmamento Geral e Completo” (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state)
116 Jean George, op.cit., p. 99.
117 “Relações internacionais. Embaixada canadiana na Santa Sé” (www.canadaeuropa.gc.ca/hollysee/int_rel_vat).
118 Cit. em Lecture by Archbishop Jean-Louis Tauran on the theme “the presence of the Holy See in the international organizations”, Catholic University of the Sacred Heart, Milan, 22 Abril 2002 (www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state).
119 www.library,saint-mike.org/churchstate/unsupport.
Le texte et les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont sous Licence OpenEdition Books, sauf mention contraire.