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História e Relações Internacionais

 | 
Luís Nuno Rodrigues
, 
Fernando Martins

Opinião pública, Media e Estratégia das potências nas democracias modernas

Telmo Gonçalves

Texte intégral

1Há já muito que «opinião pública» se tornou um termo frequente nos discursos político e mediático, que a invocam amiúde, sem grandes preocupações de rigor, como se ο real alcance do conceito fizesse já parte das «verdades adquiridas», sem deixar qualquer margem para discussão. Ouvimos que a «opinião pública não concorda...», que «a opinião pública não está preparada...», que «a opinião pública quer...», que a «opinião pública exige...», numa quase personificação desta categoria como se ela incorporasse em si própria a vontade profunda de uma comunidade. Quando, no entanto, procuramos uma definição operativa do conceito, imediatamente vemos tratar-se de uma categoria controversa, só possível de apreender se formos além do linguajar comum e mergulharmos nas águas da interdisciplinaridade científica.

2Desde ο início do século, paralelamente à própria evolução e expansão da democracia, a opinião pública assumiu um carácter verdadeiramente multidisciplinar, tornando-se objecto das mais variadas disciplinas, desde a psicologia as ciências sociais e políticas, que, naturalmente, definem «opinião pública» de diversos modos, conforme ο ponto de vista de onde partem para a analisar ou utilizar como instrumento de análise das realidades sociais.

  • 1 Ο célebre artigo de Pierre Bourdieu públicado em 1973 na revista Les Temps Modernes, sob ο titulo « (...)

3Procurando uma interpretação do conceito em diferentes contextos da sua invocação, encontramos, grosso modo, três concepções distintas e controversas: a opinião pública enquanto opinião veiculada pelos media (opinião publicada); a opinião pública enquanto sentimento generalizado ou maioritário de uma comunidade em relação a um dado assunto em debate (opinião generalizada/opinião maioritária); e, por último, enquanto artifício retórico do discurso politico, que se apoia sobretudo em sondagens de opinião, invocando a «opinião pública» como mistificação da vontade da população (perspectiva da sociologia crítica)1. Não é objectivo deste trabalho tentar solucionar a controvérsia; no entanto, é missão das disciplinas científicas não ficar pelos «saberes comuns» e «verdades adquiridas», tentando formular definições precisas indo além dos conceitos intuitivamente apreendidos, que nos remetem para interpretações ambíguas, vagas e pouco sistematizadas, conducentes a erros indesejáveis.

4Como conceito operativo desta reflexão entendemos opinião pública, não como resultado do sentimento geral dos cidadãos de uma comunidade ou da maioria de entre eles, mas como uma tendência de opinião sobre um assunto de interesse colectivo que consegue afirmar-se durante um determinado período de tempo como opinião dominante na esfera pública, mais precisamente no espaço mediático, constituindo-se numa importante força de acção política, independentemente da sua coincidência com um sentimento generalizado ou maioritário da população. Não a encaramos, portanto, simplesmente como «opinião publicada», embora se encontre directamente dependente da sua capacidade de difusão e afirmação pública através dos media. Partilhamos, em certa medida, da perspectiva da sociologia crítica, distinguindo «opinião pública» e «vontade popular», que assume um carácter mais estável e duradouro na vida das comunidades, mas parece-nos excessivamente redutor olharmos ο conceito como mera figura retórica, usada como mistificação de um pretenso sentimento generalizado ou de uma vontade popular, apoiada em sondagens de opinião: a opinião pública existe, porque se sentem os seus efeitos. E enquanto categoria política, os seus efeitos sentem-se sob a forma de pressão sobre os processos de decisão. A pressão sobre a decisão será tão mais evidente quanto maior for ο consenso que determinada tendência de opinião conseguir afirmar na esfera pública. Daí a corrida aos media, mais concretamente aos media noticiosos, tornar-se um aspecto central na actividade de todos aqueles (grupos e indivíduos) que lutam pelo poder ou que, simplesmente, pretendem influenciar os processos de decisão em função dos interesses que perseguem.

Da Grécia Antiga aos tempos modernos

5Embora já se encontrem provas da intervenção da opinião pública em períodos anteriores, é, segundo Borges de Macedo, na Grécia Antiga, mais precisamente na organização social e política que caracteriza a civilização grega – a cidade –, «que a opinião pública se torna como que institucionalmente operativa e até se teoriza» (1986: 48). Isto porque, sustenta ο historiador, é na Cidade-Estado da Grécia Antiga que surge pela primeira vez a possibilidade de conjugar dois aspectos: a formulação de um ponto de vista e a hipótese de ter meios para ο difundir (a praça pública, ο tribunal, a assembleia). A retórica apresenta-se, assim, como a principal «tecnologia da informação» de então, e os sofistas como «primeiros manipuladores da opinião pública».

6Adriano Duarte Rodrigues também encontra as origens da opinião pública na antiguidade grega, sublinhando a emergência de uma distinção operativa entre dois planos de opinião: por um lado, a doxa – opinião acrítica e ingénua, que Aristóteles, Heródoto e Tucídides consideravam «fundamento da legitimidade do político», enquanto Platão, em oposição, a encarava como «fonte da própria degradação da democracia e dos abusos de poder»; e, noutro piano, a episteme – opinião reflectida fundada no uso da razão (Rodrigues, s.d.: 37).

7É, no entanto, na segunda metade do séc. XVIII, com a Modernidade, com a emergência da imprensa periódica, ο desenvolvimento da corte e das cidades, a existência de assembleias provisórias, que a opinião pública se vai afirmar decisivamente como categoria política. A opinião pública do Antigo Regime é uma opinião crítica dos actos políticos, que começa a institucionalizar-se, apoiada no desenvolvimento da imprensa (livro e imprensa periódica), acompanhando a ascensão política, económica, social e cultural da burguesia, dando origem à constituição de um novo espaço publico, que Jurgen Habermas (1988) apelida de «esfera pública burguesa». Este novo espaço de produção e difusão de opiniões era dominado essencialmente pelas elites culturais, por aqueles que tinham então capacidade para fazer «uso público da razão», analisando, debatendo e criticando a vida politica, social, económica e artística, livre e publicamente. Em Habermas, a opinião pública emergente vai funcionar como um motor de mudança social, constituindo uma esfera fundamental de legitimação das acções dos poderes (executivo, judicial, legislativo e religioso), exercendo uma função de mediação com a sociedade civil.

8Um dos aspectos mais «revolucionários» deste novo espaço público reside na progressiva substituição de um sistema regulado pela «palavra do poder» por um regime em que passa a ser determinante ο princípio do «poder da palavra», entendido este como retórica argumentativa enquanto exercício prático da razão. É no espaço público que se debatem os actos dos poderes e se dá a conhecer essa opinião ao público. «A opinião pública aparece, assim, como a instância do saber acerca dos factos, da honestidade objectiva da razão instruída, em luta contra ο querer, a pouco e pouco associado à corrupção, ao obscurantismo despótico do soberano. É neste contexto que surge a reivindicação da transparência dos actos do poder perante ο julgamento da opinião pública instituída em tribunal de recurso» (Rodrigues, 1997: 40).

9Após a Segunda Guerra Mundial, com a homogeneização operada pela indústria cultural, a emergência da denominada «cultura de massas», característica das sociedades industrializadas, as democracias ocidentais terão assistido a um processo de «retraimento» e «dissolução» da opinião pública, passando, como refere Rodrigues, a corresponder «mais à forma interiorizada de modelos forjados pela indústria cultural do que a uma real força modelizadora dos projectos colectivos; seria mais objecto do que sujeito autónomo de uma vontade e de um saber colectivos» (1997: 38).

10Com a Era da Informação, num clima de hipermediatização e sobreinformação crescente, parece-nos que essa tendência de uma opinião pública forjada pela indústria cultural, nomeadamente pelos media noticiosos, sai ainda mais reforçada. As instituições políticas chegam mesmo a ver, por vezes, as suas regras de funcionamento modificadas para melhor se adaptarem às rotinas e aos formatos mediáticos: a coordenação dos tempos da acção política com as rotinas produtivas das televisões é um exemplo recorrente, sendo embora apenas um pequeno sintoma de uma inversão que vem caracterizando a vida política moderna, em que a televisão é, naturalmente, a praça pública mais desejada (e, ao mesmo tempo, temida) por qualquer actor politico. Os media tornaram-se efectivamente as principais portas de acesso ao espaço público, constituindo, assim, um «espaço público mediatizado», como escreve Dominique Wolton (1995), em que as possibilidades do uso prático da razão se vêem reféns de uma lógica determinada mais pelo imediatismo e motivação emocional dos públicos do que pelas virtudes de uma retórica argumentativa em busca de uma opinião pública mais consistente, racional e esclarecida.

  • 2 «Roubamos» a expressão de Borges de Macedo.

11A opinião pública dos nossos tempos parece-nos, desta forma, mais exposta aos múltiplos processos conhecidos de manipulação e instrumentalização, operados por todos os poderes (inclusive pelo poder mediático), com a valorização do imediatismo informativo, potenciado pelas sempre «novas tecnologias da informação e comunicação», e a exploração do emocional, em busca de vitórias mais fáceis e rentáveis nas famosas batalhas pela disputa de audiências. É inegável que os códigos operacionais dos media têm vindo a orientar-se cada vez mais para a velocidade e espectacularidade emocional com que se dá a conhecer ο acontecimento, e menos para ο indispensável aprofundamento, contextualização e explicação das suas causas, tornando as intervenções racionais e maturadas, sempre mais morosas e complexas, difíceis de compatibilizar com uma «mentalidade do imediato»2 dominante.

12Neste quadro de hipermediatização e imediatismo informativo em que vivemos, prosseguindo a linha de Habermas, assistimos, portanto, a uma inevitável desintegração do espaço público; a discussão racional como forma de conduzir ο destino colectivo torna-se mais difícil (senão impossível!) de praticar. A opinião pública perderá, assim, possibilidades de assumir uma natureza mais racional, ο seu sentido crítico, vivendo num ambiente dominado pelo pathos, com cada vez menos espaço para ο exercício do logos. A qualidade da democracia, da nossa vida colectiva, ressentir-se-á, obrigatoriamente, reclamando aos agentes políticos e aos media a necessidade e responsabilidade de colaborarem na configuração, não de uma opinião pública fervorosa e emocionada, mas, sim, de uma opinião esclarecida, com sentido crítico, racional, dos actos do poder: uma força de pressão política consciente, menos exposta às mais diversas formas de instrumentalização.

Estratégia – um jogo psicológico

  • 3 Sobre conceito de estratégia ver estudo de Abel Cabrai Couto (1989: 195-209).

13A estratégia, enquanto arte e ciência de concretizar os objectivos superiormente determinados pela política em ambiente de hostilidade potencial ou real, é, na sua essência, um jogo psicológico permanente entre duas ou mais vontades políticas que se opõem. Trata-se de um jogo muito particular, que tem sempre como pano de fundo ο recurso hipotético ou efectivo ao potencial militar como um dos instrumentes para solucionar ο diferendo, embora a acção estratégica nunca possa ser reduzida a uma mera gestão racional do potencial militar3.

14Recordemos um dos versos mais famosos de Sun Tzu que tem sobrevivido à erosão dos tempos: «(...) Obter uma centena de vitórias numa centena de batalhas não é ο cúmulo da habilidade. Dominar ο inimigo sem ο combater, isso, sim, é ο cúmulo da habilidade.» (Sun Tzu, s.d.: 61). Este verso, escrito há mais de dois mil anos, ilustra bem como ο fenómeno estratégico sempre esteve longe de se esgotar na mera aplicação do poder militar, colocando ο factor psicológico no centro da acção estratégica, pois ο que todo ο contendor procura é sempre um facto de ordem psicológica: ο primeiro e último objectivos em qualquer situação de crise e conflito é sempre uma decisão do adversário. Como escreve ο estratego francês André Beaufre, «convencê-lo de que empenhar-se ou prosseguir a luta é inútil» (1985: 17).

15Nas nossas sociedades pós-bélicas - da inquestionável afirmação dos valores humanistas, da valorização da vida humana e dos princípios pacifistas, da aspiração universalista da democracia-, vive todo um caldo cultural, mais evidente nas democracias de tipo ocidental, que valoriza, por sua vez, ο uso de componentes não militares na acção estratégica. Ο próprio quadro emergente da Era da Informação, de um mundo globalizado e interdependente, permanentemente ligado pelas tecnologias da informação e comunicação e onde se assiste a uma progressiva transferência de toda a espécie de conflitos para ο espaço mediático, abre um imenso leque de novas possibilidades às designadas «estratégias não militares», nomeadamente à estratégia psicológica, com a revolução das comunicações que temos vindo a viver, e à estratégia económica, com a interligação e interdependência dos mercados. Nas nossas democracias, cada vez mais mediatizadas, a guerra faz-se e ganha-se, antes de entrar no terreno militar, no terreno difuso das opiniões públicas, nos palcos e bastidores das instâncias internacionais, no controverso campo dos media. Ο jogo psicológico tornou-se, mais do que nunca, total e permanente...

16A Primeira Guerra Mundial, como é sabido, foi ο primeiro grande laboratório de experimentação de técnicas de propaganda em larga escala. A Grã-Bretanha sentiu desde ο início do conflito a necessidade de convencer a sua população a entrar numa guerra contra potências em relação às quais não sentia grande animosidade, ao lado da sua tradicional inimiga. Noutra frente, a «relação especial» com a ex-colónia americana ainda não constituía parte da doutrina de política externa das duas potências. Os EUA encontravam-se divididos entre as duas correntes tradicionais que caracterizam desde cedo a sua acção externa, isolacionista e intervencionista, que se digladiavam na imprensa, justificando e exigindo a Londres acções de propaganda na frente externa.

17Em linhas gerais, a estratégia psicológica britânica, quer na frente interna, quer na frente externa, consistia em diabolizar os alemães, aproveitando todos os acontecimentos simbólicos, dos quais destacava os aspectos mais hediondos das actividades militares inimigas, verdadeiras ou não, para apresentar os adversários como bestas desumanas, diabólicas, que crucificavam os prisioneiros de guerra, cortavam as mãos das crianças, entre outras atrocidades... Se já existisse televisão, certamente que este teria sido ο medium preferido, mas à época foram os cartazes, os panfletos e a imprensa os principais suportes da acção psicológica. A estratégia britânica deu origem a um género de propaganda característico das situações de conflito, a denominada atrocity propaganda (Quintero, 1993: 209-234).

18Fica para a história da propaganda ο episódio da exploração do afundamento do vapor britânico Lusitânia, torpedeado por um submarino alemão (07.05-1915), considerada como uma das acções mais geniais da propaganda britânica e um dos factos determinantes para a entrada dos EUA na guerra da Europa (Toffler, 1994: 206). Ο acontecimento tinha todos os ingredientes para ser explorado pela acção psicológica adversa: um navio transatlântico de transporte de passageiros, que largara amarras no porto de Nova Iorque perante as habituais despedidas colectivas da época, foi atingido sem aviso prévio nas águas do Sul da Irlanda, causando a morte a mais de mil pessoas que se encontravam a bordo, 128 norte-americanos. Quase não era preciso mais?... Mas ο golpe fatal terá sido a descoberta de uma medalha comemorativa do afundamento, realizada por um artista alemão, que a Grã-Bretanha aproveitou para a sua guerra psicológica, produzindo réplicas e enviando-as a centenas de milhares de americanos acompanhadas por um panfleto de propaganda antigermânica.

19Desde a Primeira Guerra Mundial que as opiniões públicas têm assumido um papel de destaque na acção estratégica. A conotação negativa que ο termo «propaganda» acolhe no «dicionário ocidental» deve-se em grande medida aos excessos da «atrocity propaganda», que os propagandistas, porventura aterrados por uma consciência pesada, sentiram necessidade de desvendar depois do conflito, denunciando ο poder dos media na manipulação das consciências (Quintero, 1993: 211).

20Se na Primeira Guerra Mundial a imprensa é ο vector principal da acção sobre as opiniões públicas, a partir da Guerra Civil de Espanha e sobretudo na Segunda Guerra Mundial é a rádio quem assume ο protagonismo. Durante toda a Guerra Fria vamos assistindo progressivamente à afirmação de um novo medium dotado de um poder excepcional na condução dos espíritos, a televisão. Em plena Era da Informação, a Crise do Kosovo vai entrar para a História como ο primeiro conflito em que as «auto-estradas da informação», mais precisamente a Internet, se afirmam decididamente como um campo de guerra psicológica.

21Foi, no entanto, com ο conflito do Vietname que as democracias conheceram, com maior evidência, ο potencial destruidor de uma opinião pública interna adversa à estratégia prosseguida no terreno, alicerçada em meios de informação, sobretudo televisões, com crescentes possibilidades tecnológicas de comunicação, que diariamente levavam a guerra à sala de estar dos cidadãos norte-americanos, agindo no terreno com a maior liberdade de acção de que há memória no jornalismo de guerra, pois, até então, os jornalistas na frente de combate eram vistos pelos militares essencialmente como soldados de propaganda e não como agentes de informação independentes.

22Na Crise das Falklands (1982), a estratégia britânica, mais uma vez, parece ter descoberto a chave do sucesso para os conflitos da década de 80. Obter uma vitória rápida, não dar hipótese nem tempo aos media de se instalarem no terreno para mostrarem os horrores da guerra, negar-lhes, portanto, a frente de batalha, centralizar a informação e a comunicação, e, assim, manter as opiniões públicas favoravelmente mobilizadas. Os estrategistas norte-americanos acompanharam de perto os passos dos seus tradicionais aliados e souberam aproveitar bem as suas experiências. As intervenções militares de Granada (1983) e Panamá (1989), conflitos localizados de baixa intensidade, praticamente não existem na nossa memória... Porquê? «Porque não existem imagens», sustenta Ignacio Ramonet (1999), na sua obra A Tirania da Comunicação.

  • 4 Sobre a questão do Médio Oriente como potencial barril de pólvora para a eclosão de uma terceira gu (...)

23Na Guerra do Golfo (1991) não era possível negar a frente de batalha aos media. Tratava-se do primeiro grande conflito no pós-Guerra Fria, de extraordinária magnitude internacional, num dos mais explosivos barris de pólvora mundiais, um dos palcos previstos para ο eclodir de uma terceira guerra mundial, envolvendo directamente todo ο bloco ocidental4. Os extraordinários avanços das comunicações via satélite e a dinâmica das televisões globais também tornavam virtualmente impossível fechar os olhos aos media. Dai a opção estratégica gizada sob a liderança de George Bush e Colin Powell: empenhamento quase total de meios disponíveis, a fim de obter uma vitória rápida e decisiva com ο mínimo de perdas humanas.

24Em termos de avaliação da eficácia psicológica, ο resultado foi claramente positivo: uma «coligação multinacional», sob liderança norte-americana, saiu vitoriosa de uma guerra televisionada em directo por media globais, a cobrir a guerra dos dois lados do conflito em simultâneo e em tempo real, ο que não era conhecido até então. Com a «maravilha» da «guerra em directo» pensámos, por instantes, ter atingido, finalmente, ο paradigma tão ambicionado da «guerra democrática». No entanto, apesar de toda a mediatização e de todo ο potencial tecnológico dos media, ο essencial, como em anteriores conflitos, passou-se longe dos olhares indiscretos dos media e dos públicos. E a «guerra sem sangue» que vimos nas televisões foi afinal bem diferente daquela que aconteceu na auto-estrada 6 do Kuwait, que passou a ser conhecida como «highway of death», e nos desertos iraquianos. Ο sucesso da manobra psicológica da «coligação multinacional» deixou à vista ο potencial de manipulação dos espíritos de que os poderes democráticos também podem fazer mão.

  • 5 As dificuldades da NATO no campo da guerra psicologica durante a Crise do Kosovo, resultantes sobre (...)

25Mais recentemente, na Crise do Kosovo (1999), fica novamente demonstrada a importância estratégica das opiniões públicas e dos media. Como tivemos oportunidade de assistir, a estratégia psicológica sérvia e os seus órgãos de comunicação terão causado mais dores de cabeça à estratégia da NATO do que ο próprio potencial militar jugoslavo, razão pela qual se tornaram, eles próprios, «alvos estratégicos» a abater. Mais uma vez, ο jogo psicológico foi total e permanente. Mas, no Kosovo, com públicos e media já com alguma experiência de alienação da «guerra cirúrgica em directo», face a uma unidade política com uma força psicológica bem estruturada, foi necessário recorrer ao potencial militar (com ο bombardeamento da Radiotelevisão Sérvia, por exemplo) para tentar manter a supremacia no campo psicológico5.

26Na Crise do Afeganistão, vimos emergir logo nos primeiros dias uma nova vedeta mediática – a Al-Jazeera, televisão de notícias do pequeno reino do Qatar, que parece ter causado, numa primeira fase do conflito, mais dificuldades e preocupações à Casa Branca e ao Pentágono do que propriamente os recursos militares do regime Talibã e da Al-Qaeda. Os EUA deram mesmo alguns sinais de falta de preparação para lidar com meios de informação a agir segundo os padrões ocidentais do outro lado da barricada, quando estes relatam a guerra de um prisma sócio-cultural próximo do dos adversários. Recorde-se a desastrosa pressão de Colin Powell sobre ο governo do Qatar, dando uma imagem pouco democrática da superpotência ocidental.

27Todos estes conflitos deixam bem claro que a estratégia tem de dominar a fundo as artes de navegação nas opiniões públicas e nos media, sobretudo em tempos de globalização e hipermediatização das crises e conflitos. Precisa de conhecer as melhores formas de mobilizar e manter ο apoio das opiniões públicas em diferentes frentes (interna, aliada, neutra e adversaria), mas sem negligenciar a permanente preocupação com a essência dos princípios democráticos.

Comunicação estratégica

28Tal como muitos outros factores tangíveis e intangíveis que constituem ο potencial estratégico de uma unidade política, a opinião pública é uma categoria moldável, estando sujeita a uma multiplicidade de processos de intervenção, operados de dentro e fora de fronteiras. As situações de crise e conflito criam naturalmente nos cidadãos um estado psicológico de ansiedade que conduz a uma procura excepcional de informação. Daí também a concentração excepcional de meios nas coberturas mediáticas desses acontecimentos: «É um lugar comum da pesquisa sobre a opinião que ο público não liga muita importância à política externa – observam os investigadores americanos Todd Gitlin e Daniel Hallin (1994: 194) – Há, contudo, uma excepção muito dramática: a guerra. Nenhum acontecimento político inspira mais interesse público ou emoção que a guerra. Isto porque, se a guerra é ’a saúde do Estado’, também é a saúde dos media noticiosos, pelo menos em termos de amplitude de audiência».

29A política e a estratégia organizam-se quer para responder a essa dupla procura excepcional de informações, quer para tentar criar nas diferentes opiniões públicas (interna e externas) a sua imagem desejada do problema, quer ainda para defender-se do adversário nesse novo campo de batalha que é ο espaço da comunicação mediática, pois qualquer situação de crise e conflito implica automaticamente a criação de um ambiente de comunicação hostil entre os contendores nos espaços mediáticos (nacionais e internacional). Na guerra, tal como é necessário proteger ο espaço físico das investidas do adversário, será igualmente cada vez mais necessário proteger os espaços de comunicação mediática da manobra psicológica adversa.

30A defesa e ο ataque nestes espaços, no presente panorama mediático da Era da Informação, só será possível com uma estratégia bem estruturada e coordenada que mantenha uma informação permanente, criativa e coerente, pois já não é possível à estratégia e política de hoje, mesmo nos regimes mais fechados e autocráticos, entrincheirarem-se numa política de silêncio absoluto e secretismo paranóico. Mantêm-se, é claro, porventura ainda com maior preocupação, os cuidados com a gestão e ο acesso à informação estratégica essencial. Mas, hoje em dia, sobretudo nas sociedades democráticas, a acção estratégica tem de ser comunicada permanentemente. E precisa de ser comunicada com a máxima eficácia, num espaço extraordinariamente controverso, volátil e aberto (a aliados e adversários), como é ο campo da comunicação mediática.

31A necessidade de as democracias, em situações de crise e conflito, adoptarem uma estratégia psicológica coerente parece-nos incontornável, pelo que deverá ser pensada e preparada em tempo de paz, criando estruturas que permitam respostas eficazes aos cenários de crise reais e potenciais considerados. É uma necessidade, apesar de ο tema não ser politicamente correcto, que tem de ser assumida pela política, pois, como defende François Géré, na sua obra La Guerre Psychologique, sem coordenação política a arma psicológica, ainda mais do que os restantes vectores, não terá qualquer possibilidade de eficácia e poderá constituir um perigo para a democracia (1997: 17).

32A manobra dirigida às opiniões públicas pode ser vista como missão de um ramo específico de acção psicológica que denominamos comunicação estratégica ou estratégia de comunicação (Manheim, 1994: 131-148). A comunicação estratégica tem por objectivo influenciar as percepções dos públicos no sentido de promover uma imagem do problema em questão favorável aos interesses da estratégia, através da interacção com os media noticiosos. Actua essencialmente através do desenvolvimento de processos de gestão de notícias (news management ou media management), recorrendo também com frequência, entre outros, a acções de lobbying.

  • 6 Para um desenvolvimento desta caracterização da lógica informativa dominante em tempos de crise e c (...)

33Este domínio de intervenção vai buscar os seus conceitos operativos às ciências sociais, psicologia, ciências da comunicação, actualizando-os em função do enquadramento cultural-ideológico dos profissionais do campo jornalístico e da lógica informativa dominante. Uma lógica caracterizada essencialmente pelo predomínio da imagem no processo informativo; pelo culto da informação instantânea em tempo real: «a febre do directo»; pela uniformização e mimetismo dos discursos noticiosos, potenciados por uma feroz concorrência; e pela concentração mediática em torno das vozes oficiais do poder6.

34Todas essas «qualidades» da lógica informativa dominante tornam-se mais evidentes em situações de crise e conflito, atingindo, por vezes, uma «embriaguez mediática» tal que se torna muito difícil ao cidadão comum (e também aos decisores), soterrado num clima de permanente informação, contra-informação, sobre informação, saber ο que realmente está a acontecer na sua aldeia local-global. Torna-se, assim, uma lógica que, por sua vez, potencia grandemente a actividade de hábeis estrategos de comunicação, ocupados com a impressão nas mentes dos públicos da sua imagem desejada, que não hesitam em explorar as fragilidades das rotinas e processos jornalísticos (Wolton, 1991; Woodrow, 1991; Ramonet, 1999).

Considerações sobre comunicação estratégica

35Toda a comunicação estratégica gravita em torno daquilo que podemos denominar bom tema político. Este bom tema político encerra a tese disseminada publicamente para legitimar a decisão politico-estratégica. Ε vai evidenciar-se, por exemplo, nas intervenções públicas dos chefes políticos e militares e agentes diplomáticos ao mais alto nível. A escolha do bom tema político consiste na simples adaptação dos valores universalmente aceites à situação em causa e ao fim visado, encobrindo muitas vezes as reais motivações estratégicas ou outras intenções que teriam mais dificuldade em obter reacções favoráveis nas opiniões públicas.

36Foi a agir em nome do mundo livre, em defesa da paz mundial, no cumprimento de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que os EUA decidiram intervir e liderar a «coligação multinacional» na Crise do Golfo. Não foi com a bandeira do perigo nuclear iraquiano, nem do poder que Saddam passava a deter no piano global com ο controlo das reservas petrolíferas do Kuwait. Mais recentemente, foi para travar a «limpeza étnica» dos kosovares albaneses, levada a cabo por um regime autocrático, e acabar com a «catástrofe humanitária», que a NATO bombardeou a Sérvia durante três meses.

37No primeiro grande conflito internacional do novo milénio, a guerra conduzida pela coligação liderada pelos EUA é feita, mais uma vez, em «defesa do mundo livre e democrático», contra ο horror perpetrado por uma organização terrorista, a Al-Qaeda, liderada por um homem, Osama Bin Laden, e um regime extremista islâmico, que cometia as maiores barbaridades, nomeadamente contra as mulheres. Não conhecemos na comunicação estratégica norte-americana temas como «vingança americana», «guerra aos fundamentalistas do islão», «ataque contra ο Afeganistão».

38Depois de um angustiante vazio inicial, os inimigos tornaram-se rapidamente bem conhecidos: Al-Qaeda – Osama Ben Laden e Regime Talibã – Mullah Omar. A monstruosidade dos atentados do dia 11 de Setembro rapidamente ganhou um rosto, ο que é condição essencial para concentrar os ódios num inimigo comum e minimizar ο pânico acrescido de uma «ameaça invisível». Além de visar as opiniões públicas norte-americana e ocidentais, a linha da comunicação estratégica adoptada teve também em consideração a necessidade de manter as nações árabes, com as conhecidas excepções, unidas na coligação política e diplomática contra ο terrorismo. Um objectivo estratégico de primeira prioridade em toda a operação.

39Ο bom tema politico é assim escolhido em função das teses que melhor se adaptam à situação estratégica em questão, na busca por parte dos chefes políticos e militares de premissas que lhes permitam obter mais facilmente a adesão daquele que Chaim Perelman, teórico da nova retórica, designa «auditório universal» (1993: 37).

40As pesquisas no âmbito das ciências da comunicação demonstram que a construção de uma «imagem desejada» tem caminho facilitado quando existe por parte dos públicos pouca identificação e/ou pouco envolvimento com a situação em questão, bem como quando há um sentimento latente favorável aos objectivos estratégicos apresentados (Bennett e Manheim, 1993: 331-351; Quintero, 1993).

  • 7 Sobre princípios de propaganda ver obra de Jean-Marie Domenach (1979), dedicada ao estudo da propag (...)

41A estratégia de comunicação também tem mais probabilidades de sucesso quanto maior for a consistência temática, de forma a que cada nova mensagem, cada novo tema lançado, funcione como reforço da mensagem anterior (Manheim, 1994), ο que corresponde à invocação dos princípios de orquestração e repetição característicos dos processos de propaganda7. A consistência temática ganha ainda maior eficácia quando conta com uma boa diversidade de fontes (pessoais e institucionais), com e sem ligações políticas entre si, a cimentar ο eixo temático central.

42Ο sucesso da estratégia de comunicação encontrar-se-á, então, dependente de uma perfeita coordenação e convergência ao nível das estratégias gerais (política, económica, diplomática e militar) no piano da comunicação mediática. Uma das particularidades da estratégia de comunicação reside no facto de hoje os mais altos responsáveis políticos e militares se tornarem, pela natureza do fenómeno da comunicação mediática nas democracias modernas, nos mais importantes agentes da táctica psicológica na manobra estratégica dirigida às opiniões públicas em todas as frentes.

43Por último, a comunicação estratégica tende a perder eficácia se se torna, ela própria, um objecto de controvérsia pública. Ela é tão mais eficaz quanto mais discreta e subtil for, pelo que tem ο segredo e a discrição por princípios fundamentais de acção.

Processos de «gestão de notícias»

44Ao definirmos ο conceito de comunicação estratégica, considerámos como principal suporte da sua acção ο desenvolvimento de processos de gestão de notícias (news management ou media management), que podemos definir, resumidamente, como uma actividade de acção psicológica que se dedica especificamente ao planeamento minucioso de acontecimentos e a uma criteriosa gestão da Informação a disponibilizar aos media noticiosos, de forma a promover uma mediação dos acontecimentos com enquadramentos favoráveis aos interesses prosseguidos pela estratégia. Ο seu âmbito de acção poderá abranger desde a preparação de ocorrências (e de informação sobre as mesmas) com vista à sua difusão através dos media, à criação e preparação de discursos de protagonistas, até ao estabelecimento de um quadro de procedimentos para nortear as relações dos agentes dos campos politico, diplomático e militar com os jornalistas.

45São já relativamente bem conhecidos alguns processos de gestão de notícias em tempos de crise e conflito, além da tradicional aceitação de censura e, consequentemente, autocensura, em troca de acesso à frente de batalha. Mas será porventura interessante, para aprofundar a reflexão sobre a comunicação estratégica, apresentarmos algumas das técnicas que consideramos mais recorrentes.

Técnica do grande apelo

46Consiste na invocação do «interesse nacional» por parte de altas personalidades da hierarquia do Estado perante os directores dos principais órgãos de informação para negociar limitações à liberdade de imprensa. Ο «grande apelo» coloca sobre a mesa das negociações, regra geral, dois valores: ο valor da vida (civis e militares) e a defesa do interesse nacional, os quais, porventura, poderão justificar mais facilmente a aceitação de limites pontuais no direito à informação e liberdade de imprensa. Podemos ver uma aplicação recente desta técnica, nos Estados Unidos da América, depois das cinco maiores cadeias de televisão terem aceite ο apelo da conselheira de Defesa Nacional do Presidente George W. Bush, Condoleeza Rice, para não passarem sem edição prévia os vídeos de propaganda produzidos pela Al-Qaeda, com os argumentos de que estes podem incitar mais «sentimentos antiamericanos» e conter mensagens com ordens codificadas para os elementos da organização terrorista. Ο «aliado especial», Tony Blair, tentou seguir ο exemplo, mas os media britânicos não encontraram razões para aceitar ο apelo do chefe do governo.

Técnica do timing

47Trata-se de jogar com a curta memória dos media e dos públicos e com os «timings» da produção mediática; consiste em adiar a divulgação de uma informação desfavorável até ao momento em que esta já deixou de ser primeira prioridade na agenda jornalística, tentando que assim passe mais despercebida na turbina informativa diária, ou encoberta pela magnitude de outros acontecimentos; por exemplo, a divulgação dos resultados dos inquéritos realizados pela NATO durante a Crise do Kosovo sobre os bombardeamentos mais polémicos, como admitiram posteriormente alguns agentes ligados ao processo, foi sempre adiada para um momento mais oportuno – leia-se, para quando ο assunto já não constava das grandes prioridades da agenda jornalística –, com ο invariável argumento de que decorria um inquérito sobre ο caso.

A técnica da grande vaga

48Consiste em criar um caudal de informação tal que os media não se podem queixar de falta de informação; muito pelo contrário, há uma vaga informativa de assuntos acessórios que submerge os jornalistas, mantendo-os ocupados e dificultando a destrinça do essencial e ο acessório. Foi, em parte, um dos principals processos do sistema de gestão de notícias montado pela coligação multinacional no conflito do Golfo, em que havia informação em abundância, em que as autoridades militares disponibilizaram bons recursos tecnológicos para ajudar a criar um bom espectáculo mediático, ο que permitia aos jornalistas «bons produtos informativos», mas que, ao mesmo tempo, inibia a sua capacidade de tratamento da informação (Taylor, 1993: 31). A vertigem da informação imediata, a «guerra em directo», concede mais possibilidades a esta técnica, uma vez que os media perdem capacidade de filtragem e contextualização das informações, necessitando constantemente de conteúdos informativos para alimentarem a máquina da comunicação, pelo que ficam naturalmente mais expostos aos interesses de fontes oficiais bem organizadas.

A técnica do biombo

49Pode apresentar algumas semelhanças com a anterior técnica do «timing», na medida em que resulta também de um aproveitamento das prioridades da agenda jornalística: quando esta está ocupada com um qualquer assunto que concentra os seus recursos e a atenção dos públicos, ο poder ganha alguma liberdade de acção para desencadear acontecimentos que certamente suscitariam grande controvérsia. Isto é: muitas vezes, um acontecimento serve para ocultar outro; por vezes esse acontecimento é independente daquele que ο aproveita para biombo, mas também se pode dar ο caso de se gerar um acontecimento propositadamente com essa função. A Revolução Romena de 1989 foi, de certa forma, aproveitada como cortina para uma intervenção mais «discreta» dos EUA no Panamá (Ramonet, 1999: 31 e 32).

Técnica do boomerang

50É um processo mais atomizado, não tão evidente em situações de crise, mas extraordinariamente eficaz: consiste em promover acontecimentos e a respectiva cobertura mediática em países estrangeiros de forma a conquistar a atenção dos seus meios de informação, sobretudo dos media de referência, na perspectiva de que os relatos destes produzam um efeito «boomerang» sobre a agenda jornalística interna e, assim, ganhem novo eco na opinião pública interna.

51Ο observador mais avisado facilmente identificará estes processos de gestão de notícias, não só em situações de crise e conflito, como exemplificámos, mas também em acontecimentos que lhe são mais próximos, no seu quotidiano. Basta prestar alguma atenção aos processos da comunicação política contemporânea nas nossas democracias, para facilmente encontrarmos bons exemplos, pois as «maravilhas» da gestão de notícias são bem conhecidas dos gabinetes de assessoria mediática, considerados hoje em dia indispensáveis a uma acção «eficaz» de todo ο agente politico moderno.

«Efeitos colaterais» e democracia (epílogo)

52Tal como sucede com outras formas de coacção, a acção psicológica também produzirá «efeitos colaterais», que poderão ser prejudiciais a um bom desenvolvimento dos sistemas democráticos. Um dos efeitos colaterais mais importantes, na nossa opinião, será ο risco de perda de credibilidade das autoridades políticas, militares e diplomáticas, quando estas enveredam por caminhos mais fáceis e não pautam a sua comunicação por uma política de verdade, ο que poderá originar graves consequências para a relação política-eleitores, contribuindo ainda mais para ο fosso que já hoje os separa perigosamente, e para a relação política-media, potenciando ainda mais a negatividade no tratamento noticioso da actividade política.

53Em situações de crise e conflito, ο objectivo último do bom estratego político e militar consiste em iludir ο adversário, levá-lo a criar uma ideia do problema favorável à decisão que se lhe pretende impor, ο que implica jogar obrigatoriamente no campo da comunicação mediática, pelo que, sem ilusões, esta assumirá sempre uma relação ambígua com a verdade. «Grande parte da informação obtida na guerra é contraditória, e é falsa uma parte maior ainda, e a maior parte, por longe, é de carácter duvidoso», escreve Clausewitz em 1832. Na era da globalização e hipermediatização dos conflitos, das tecnologias da comunicação e informação, a falsidade informativa manter-se-á dentro e fora do campo de batalha, e, dadas as maiores potencialidades de comunicação, porventura, ainda com maior intensidade.

54Mas a assunção da inevitabilidade de se adoptar uma estratégia psicológica coerente em situações de crise e conflito, que passa grandemente pela acção no campo dos média noticiosos, não nos pode fazer esquecer os limites que fazem dos nossos regimes sistemas democráticos. Este aspecto levanta não só uma questão ética de difícil solução para os líderes democráticos, mas também uma questão estratégica crucial, pois, se as opções dos líderes políticos e militares privilegiarem caminhos aparentemente mais fáceis, permeáveis à falsidade informativa, poderão estar a criar uma brecha profunda em toda a sua acção estratégica, que as vontades adversas não deixarão certamente de explorar. Num contexto de hipermediatização e globalização dos conflitos, parece-nos que a pedra angular de todo ο sucesso da comunicação estratégica, em qualquer regime democrático responsável e empenhado com ο futuro, residirá na capacidade que os líderes políticos e militares terão para se dirigirem com credibilidade aos diferentes públicos, dentro e fora das suas fronteiras.

55«A democracia não pode viver sem a verdade – escreve Jean François Revel –, ο totalitarismo não pode viver sem a mentira; a democracia suicida-se se se deixar invadir pela mentira, ο totalitarismo se se deixar invadir pela verdade» (1989: 33). As palavras de Revel, além do princípio democrático que encerram, também podem remeter-nos, na perspectiva da estratégia, para uma vulnerabilidade dramática, que todo ο poder democrático não pode negligenciar, se estiver verdadeiramente empenhado em vencer os grandes embates físicos e psicológicos que se adivinham para ο futuro, independentemente da configuração que estes vierem a assumir.

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Notes

1 Ο célebre artigo de Pierre Bourdieu públicado em 1973 na revista Les Temps Modernes, sob ο titulo «L'opinion publique n'existe pas», constitui uma das principais fontes de inspiração desta corrente.

2 «Roubamos» a expressão de Borges de Macedo.

3 Sobre conceito de estratégia ver estudo de Abel Cabrai Couto (1989: 195-209).

4 Sobre a questão do Médio Oriente como potencial barril de pólvora para a eclosão de uma terceira guerra mundial ver, por exemplo, tese de John Stoessinger (1985: 183-201).

5 As dificuldades da NATO no campo da guerra psicologica durante a Crise do Kosovo, resultantes sobretudo dos «danos colaterais» bem explorados por Belgrado, vêm expressas num documente de reflexão, produzido durante ο conflito por assessores militares do secretário-geral da Aliança, sob ο título «A batalha de Informação da NATO», que admitia a vitória da Sérvia no domínio da «guerra informativa». Ο documento foi noticia do diário espanhol El Mundo de 31 de Maio de 1999.

6 Para um desenvolvimento desta caracterização da lógica informativa dominante em tempos de crise e conflito, ver dissertação de mestrado do autor (Gonçalves, 2001: 289-301)

7 Sobre princípios de propaganda ver obra de Jean-Marie Domenach (1979), dedicada ao estudo da propaganda política.

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