1Fernando Bragança Gil foi substituído, a seu pedido, no cargo de Director do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, por Fernanda Madalena Costa, Catedrática do Departamento de Química da Faculdade de Ciências. Ele próprio o anunciou publicamente durante a inauguração da Exposição “Leonardo da Vinci, Niccolò Machievelli, Cesare Borgia”.

2A RPM pediu-me que escrevesse algumas palavras sobre uma notícia assim sabida quase de surpresa, ainda que muitos a adivinhassem para breve. Apesar de, pelo conhecimento recente que dele tinha, não ser porventura a pessoa mais adequada para o fazer, entendi não poder recusar. O meu contacto com o Professor Bragança Gil iniciou-se no ano de 1996, quando aceitou orientar-me uma tese académica, e desde então fiquei-lhe ligado por laços de gratidão. Durante este tempo aprendi a conhecer o homem e, sobretudo, a admirar-lhe a obra. E a surpreender-me com a inovação das suas propostas, sempre um pouco à frente do seu tempo. Traço de uma forte personalidade que muitas vezes explica a irreprimível impaciência com que encara os demorados enredos da vida cultural do país.

3Fiquei a saber da história de um filho de Évora, em cujo Liceu o pai leccionava, que um dia chegou a Lisboa para estudar na Faculdade de Ciências. Na capital, o jovem estudante não se limitou a interessar-se pelas matérias de ciência pura, envolvendo-se em tertúlias intelectuais que lhe acicataram a paixão de cinéfilo e de prolífero fotógrafo amador. Decerto que o convívio familiar com o ‘seareiro’ Mário Dionísio, seu primo mais velho, terá igualmente contribuído para as vincadas inclinações e gostos artísticos e literários.

4Doutorou-se em Física nuclear pela Universidade Paris, com uma tese publicada em Portugal em 1962, e pela Universidade de Lisboa, no ano de 1967. A sua obra como cientista é vasta e, como pude comprovar pelos testemunhos numerosos e emocionados durante a cerimónia da sua jubilação (1997), deixou escola e discípulos no país e em centros de ciência estrangeiros.

5Um dia apaixonou-se pelo mundo dos museus, entendidos como lugares de investigação e de divulgação científicas, e isso tornou-se na sua segunda pele, quase se diria num renovado sentido de vida. A vocação museológica sedimentou-a numa memorável missão oficial a museus europeus acompanhado de outro físico e professor notável, Rómulo de Carvalho. Desta viagem científica trouxe convicções reforçadas, sobretudo a da urgência de um verdadeiro Museu de Ciência de que o país carecia. O relatório oficial que ambos certamente elaboraram, bem como os livros de notas que Bragança Gil pacientemente recolheu sobre os museus que visita em toda a Europa, e fora dela, constituem certamente peças importantes para a história comparada das ideias e das realizações museológicas contemporâneas e bem mereceria publicação, como a que entretanto lhe dedicou, parcialmente, o Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, em 2010, edição coordenada por Marta Lourenço e Graça Filipe.

6Ligou-se entretanto à militância de uma organização museológica fundada em 1965, a Associação Portuguesa de Museologia (APOM). Depressa se fez notado e reconhecido pelas suas intervenções em defesa de uma museologia renovada e atenta a novos objectos e novas tipologias. Ocupou ali vários cargos de responsabilidade associativa, nomeadamente o de editor do seu Boletim e pertence hoje, por direito, a um clube restrito – a de membro do Conselho de Notáveis, órgão que abriga boa parte da memória viva da comunidade museológica e que continua a reunir regularmente e a contribuir, com os seus juízos experientes, para a qualidade da reflexão museal. É urgente concretizar, neste capítulo, o projecto de recolha documental e testemunhal das vivências humanas e profissionais de pessoas como Braganga Gil. Mas igualmente como Irisalva Moita, como Manuela Mota, e tantos outros.

7Desde muito cedo que as preocupações do Professor se viraram para o ensino da museologia. Datam de 1976 e 1977 as primeiras reflexões publicadas sobre esta matéria, em dois artigos intitulados A APOM e a formação de museólogos e Considerações sobre a necessidade de um Instituto de Museologia. Do seu pensamento devem ser destacadas duas ideias força. Se, por um lado, se batia pelo estatuto universitário da museologia, numa época em que fazê-lo ainda acordava gerais reacções de heresia entre uma classe profissional formada nos antigos cursos de conservador, por outro lado, procurava demonstrar as vantagens da autonomia da museologia enquanto área disciplinar. Defendia, por isso, que o seu ensino não deveria depender de um departamento universitário tradicional (fosse ele qual fosse), porque isso poderia conduzir a um reducionismo conceptual e metodológico, empobrecedor para uma jovem disciplina em formação. Mais tarde, em 1989, haveria ainda de voltar ao tema com um texto de homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira, percursor do ensino universitário em museologia.

8Quando a partir da década de noventa as universidades iniciaram os cursos de pós-graduação e mestrado, primeiro em Lisboa na Universidade Nova, e de seguida no Porto, em Coimbra e em Évora, Fernando Bragança Gil passou a colaborar assiduamente na sua leccionação. São deste período os textos que elaborou sobre Os museus de ciência e técnica e O objecto como gerador de informação, publicados no manual da Universidade Aberta, Iniciação à Museologia (1993).

9Há ainda, em Bragança Gil, uma faceta talvez pouco divulgada mas que, no contexto das suas preocupações científicas e patrimoniais, assumiu uma particular importância. Referimo-nos a vários estudos de cariz pluridisciplinar, nos quais coloca os seus conhecimentos em física nuclear ao serviço da arqueologia. A partir dos finais dos anos setenta, e durante uma década, procede por diversas vezes à análise de materiais arqueológicos por fluorescência de raios X, como técnica analítica não destrutiva. Chega mesmo a publicar, com dois conhecidos arqueólogos da Faculdade de Letras de Lisboa, Ana Arruda e Vítor Gonçalves, um relatório sobre A necrópole da Idade do Bronze do monte de Vale de Carvalho (1980). Ainda em 1986 elaborará um Estudo físico do espólio metálico recolhido na necrópole da vinha do Casão (Vila Moura, Algarve).

10Mas a opera magna de Bragança Gil é indiscutivelmente a fundação e a direcção do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa. Ao cabo de vários anos de combate de ideias pela abertura do novo Museu da ‘Politécnica’, este seria oficialmente criado em 1985. A história desta instituição terá um dia de ser feita com demora analítica e fundamento documental, mas dela ressaltará, estou seguro, a concepção que o seu director e os seus mais directos colaboradores lhe quiseram transmitir – a de uma instituição cultural ao serviço do público, território privilegiado de investigação e de comunicação.

11A comunidade museológica portuguesa não pode senão, no final de um ciclo de vida profissional, proclamar ao museólogo um sentido testemunho de gratidão. Muito obrigado, Sr. Professor!