1Por iniciativa da Comissão Nacional Portuguesa do ICOM, realizou-se em Fevereiro de 2009, no recinto da Exponor, um Encontro sobre a temática O mercado dos museus e o ensino superior. Foram convidados a divulgarem as suas ofertas formativas alguns dos cursos de 2º ciclo, vulgo mestrados, actualmente existentes no ensino superior português, público e privado: Faculdade de Letras de Coimbra; Universidade de Évora; Faculdade de Belas Artes e Faculdade de Letras, ambas da Universidade Porto; Universidade Lusófona; Universidade Lusíada; ISCTE; Fundação Ricardo Espírito Santo Silva; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL. Inexplicavelmente não se fez representar (ou não foi convidada) a Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, escola com créditos firmados no ensino da museologia.

2Foi possível, apesar da penosa limitação de tempo disponibilizado para o debate, identificar algumas das linhas caracterizadoras das estruturas curriculares e das metodologias de ensino da Museologia ali divulgadas. O Encontro constituiu ainda um pretexto muito oportuno para estruturar uma reflexão que, sem se deixar aprisionar pelo imediatismo e pelo marketing, se abra ao entendimento dos caminhos que se estão a trilhar nesta área formativa. Impõe-se como ponto prévio a qualquer abordagem crítica da realidade actual, que se reconheça o investimento humano e material que o ensino superior da Museologia tem vindo a desenvolver desde a década de noventa, revelado não apenas pela leccionação de conteúdos, mas por actividades e por estratégias tão multifacetadas e tão absorventes como sejam: a contratualização e orientação de estágios profissionalizantes em unidades museais; a orientação e a arguição científicas de dissertações de mestrado e, mais recentemente, também de doutoramento; a organização de, e a participação em, encontros profissionais e científicos; a parceria em projectos de pesquisa com museus; a publicação de resultados de investigação em livros, catálogos e periódicos da especialidade; a inventiva de redes sociais virtuais etc. Por esta razão, forçoso é reconhecer que o panorama formativo hodierno está hoje irreconhecível face ao que se nos deparava no ciclo anterior, dos anos iniciais da Democracia, caracterizado ainda pela ausência da Universidade na produção e difusão destes saberes.

3É impossível, todavia, omitir as evidentes assimetrias e distorções no quadro nacional, como a que resulta da concentração de cinco dos nove cursos em Lisboa. Aliás, parece ser consensual, embora controversa na sua consequente correcção, a ideia de que a oferta de formação de 2º ciclo é manifestamente excessiva se se tomar em consideração a fraca empregabilidade verificada neste sector cultural.

4Em tese não seria aceitável, no contexto da autonomia universitária, questionar a ponderação científica, pedagógica e financeira que seguramente cada estabelecimento de ensino terá efectuado ao oferecer o seu curso, ocorrendo a partir daí a livre oferta e a livre procura ditadas exclusivamente pelas regras do mercado. Dir-se-ia, assim, que se cada um destes cursos funciona é porque a sua viabilidade é assegurada por um número mínimo de alunos inscritos e, se algum deles tiver de encerrar (como já sucedeu nos últimos anos) que seja em resultado das leis da concorrência e não por decisão administrativa. Contudo, há quem tenha vindo a emprestar maior complexidade a esta análise, tornando-a mais exigente ao invocar como imperativo a função social da Universidade e a ética da responsabilidade, com base nas quais aliás algumas ordens profissionais têm tentado levar os alunos e as suas famílias a reflectirem antecipadamente sobre a escassez de saídas profissionais de alguns cursos, casos do Direito e da Arquitectura.

5Na formação superior em Museologia, a débil sustentabilidade do actual modelo revela-se ainda mais acentuada ao verificar-se que quase todos os cursos em funcionamento optaram pela anualização, a partir da entrada em vigor do Processo de Bolonha. Alguém absolutamente estranho ao universo universitário haverá de estranhar a razão de tal opção, sobretudo se consultar o espírito e a forma do Decreto-Lei 74/2006, de 24 de Março, onde não encontrará qualquer imposição legal nesse sentido.

6Para entender por que razão os antigos cursos de mestrado, que intervalavam dois anos entre cada edição e procuravam até coordenar a abertura em anos lectivos desencontrados de cursos geograficamente próximos, oferecem agora cursos em cada ano lectivo, duplicando assim o número de vagas e potencialmente o número de graduados, é necessário fazer zoom sobre a vida interna das instituições de ensino superior.

7Quem tivesse seguido com alguma atenção os fundamentos conceptuais que conduziram à assinatura da Declaração de Bolonha e ao estabelecimento em mais de trinta países do Espaço Europeu de Ensino Superior, encararia até este facto como uma inexplicável incongruência. Na realidade, a recepção legal da nova doutrina no nosso país firma-se na defesa de princípios como:

A transição de um sistema de ensino baseado na ideia da transmissão de conhecimentos para um sistema baseado no desenvolvimento de competências pelos próprios alunos é uma questão crítica central em toda a Europa, com particular expressão em Portugal”; “Questão central no Processo de Bolonha é o da mudança do paradigma de ensino de um modelo passivo, baseado na aquisição de conhecimentos, para um modelo baseado no desenvolvimento de competências, onde se incluem quer as de natureza genérica —  instrumentais, interpessoais e sistémicas — quer as de natureza específica associadas à área de formação, e onde a componente experimental e de projecto desempenham um papel importante (Decreto-Lei 74/2006).

8Dito de outro modo, a questão decisiva seria a da mudança de métodos de ensino, exigindo uma redobrada disponibilidade pedagógica do docente no acompanhamento tutorial dos seus alunos e um tempo de maturação de projectos e de investigação incompatíveis, afinal, com o frenesim e a consequente superficialidade que se têm vindo a instalar neste ciclo de estudos. É preciso recordar que, no caso nacional, a adequação a Bolonha do sistema de ensino superior coincidiu no tempo com a prática de políticas orçamentais draconianas, de redução do deficit da despesa pública, que se traduziram em cortes significativos nas subvenções anuais do Orçamento de Estado destinadas aos custos de funcionamento das instituições. Em consequência, insinuou-se desde então a ideia da pura racionalidade de gestão dos recursos humanos passando a vingar o conceito de rácio, isto é, a relação entre o número de professores e o número de alunos, que conduziu já ao fecho de alguns cursos de licenciatura.

9Este novo ambiente ‘empresarial’ conduziu, quer à dispensa de inúmeros docentes convidados e requisitados, quer sobretudo à sensação de precariedade de vínculo entre a maioria dos docentes de carreira – os professores auxiliares – cuja situação contratual de provimento administrativo tem proporcionado uma interpretação juridicamente controversa sobre a efectiva segurança dos seus postos de trabalho. Chegaram a circular, em algumas universidades, quadros estatísticos com o número de docentes ‘excedentários’ em cada departamento e o autêntico pânico que se apossou de largos sectores deste grupo profissional era, até há bem pouco tempo, agravado pela inexistência legal do subsídio de desemprego o que explica em parte a aceitação acrítica, quando não a participação empenhada, na criação incessante de novos cursos. Um outro efeito não menos gravoso desta deriva profissional tem sido o da consagração da avaliação do desempenho do docente do ensino superior baseada exclusivamente na contabilização do número de horas de leccionação, traduzindo-se na prática pela desvalorização de tarefas pedagógico-científicas tão estimulantes, e tão indispensáveis, como sejam a orientação e a arguição de teses.

10O que importa reter desta questão, nos seus efeitos sobre a forma como se inflacionou a oferta de cursos de 2º ciclo anualizados, é a de que factores de ordem orçamental e de ordem profissional se têm vindo a impor nas decisões das direcções das universidades. Mas é igualmente verdade que o Processo de Bolonha adoptando o acesso universalizante, não selectivo, de qualquer licenciado aos cursos de mestrado, veio aumentar substancialmente a base de recrutamento de novos alunos, cujas matrículas confortam financeiramente os custos dos cursos.

11Disto isto, importa entender, e aceitar, que um novo mundo se instalou entre nós e que ele não é exclusivamente portador de más notícias, reconhecendo-se honestamente que o modelo pedagógico tradicional se tinha já esgotado em muitas das suas facetas e que era já insustentável a forma de vida da maioria das universidades, sobretudo das mais pequenas e periféricas.

12O que aqui se defende, como proposta de um modelo-outro, é a adopção de alternativas seguras que se possam instituir com tranquilidade e lastro, quando a fase ‘revolucionária’ der lugar à vida ‘normal’ das instituições, assente o pó dos extremismos, das aflições e das crises de identidade. Um padrão possível seria o que se fundasse na visão estratégica de criar apenas dois ou três polos geograficamente descentralizados de formação avançada em Museologia, congregando em rede alguns dos vários cursos actuais, o que conduziria à corajosa decisão de se abandonar o modelo solipsista dominante. O pressuposto é o da honestidade intelectual de reconhecimento da escassa massa crítica com formação e investigação específica nesta área disciplinar, o que tem originado, em muitos dos cursos, estruturas curriculares laterais à Museologia, mais em coerência com os recursos docentes disponíveis do que propriamente com a axialidade conceptual da ‘ciência dos museus’.

13Cada um destes polos, cavalgando a onda da sua natural especialidade formativa, criando clusters reconhecidos, inovadores e criativos, elaboraria um plano director com a definição de uma estratégia extensível aos três ciclos (licenciatura, mestrado e doutoramento). Esse plano, poderia passar pela elaboração de algumas propostas cientificamente coerentes e organicamente articuladas, como a que aqui propomos em guide lines:

• Docência, nos cursos de licenciatura, de algumas cadeiras propedêuticas das áreas científicas da Museologia e suas afins (Património Cultural, História da Arte, Restauro, Gestão do Território, etc). Recusa-se aqui, com clareza, a tentação de adoptar um curso de 1º ciclo dedicado exclusivamente à Museologia, prevendo-se inultrapassáveis dificuldades como seria a de contratar um corpo docente numeroso e bem preparado, com doutoramento ou altamente especializado, mas sobretudo a da difícil integração profissional destes licenciados sem solidez nas diferentes tipologias disciplinares dos museus;

• Regresso à bi-anualidade dos cursos de mestrado, intercalados com cursos de especialização de dois semestres, mono-temáticos, sem dissertação final, destinados ao aprofundamento de conhecimentos dos profissionais de museus, por exemplo Museus e Educação, Gestão de Museus, Novas Tecnologias em Museus, Mercado e Peritagem de Arte, etc. Assim agindo, evitar-se-ia a multiplicação de orientação de teses, libertando os docentes para uma atenção tutorial mais cuidada a menor número de relatórios, de projectos e de dissertações;

• Investimento do melhor esforço destes polos universitários na oferta de cursos de doutoramento em Museologia, eventualmente associados a outras áreas afins como seja a do Património Cultural. Parece defensável que a ligação destes cursos de 3º ciclo a actividades dos Centros da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) representaria um ganho acrescido de credibilidade, de financiamento e de docentes especializados de várias proveniências disciplinares e universitárias. Estamos em crer que ainda se não exploraram convenientemente as virtualidades da conexão entre a actividade pedagógica dos departamentos e escolas e os projectos de investigação avaliados e suportados pela FCT que se regem por critérios de padronização internacional: actividades e projectos de investigação avaliados por painéis de peritos estrangeiros, promoção das publicações com arbitragem científica, financiamento com base nas avaliações obtidas pelos centros e no número de investigadores doutorados activos. A oferta de cursos de 3º ciclo tem sido aliás incentivada pelos pareceres dos peritos como condição para a obtenção de superiores patamares avaliativos.

14Há ainda aqui uma componente que os próximos tempos revelarão em toda a sua dimensão, que vem a ser a da crescente ligação dos museus aos projectos de investigação desenvolvidos no âmbito dos centros FCT, tal como já é perceptível em vários institutos públicos do Ministério da Cultura como o Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), o Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (IGESPAR), ambos fundidos, desde 2012, na Direcção Geral do Património Cultural (DGPC) ou o Arquivos Nacionais Torre do Tombo. Em coerência com a necessária definição de políticas de investigação, no âmbito do cumprimento dos seus programas museológicos, algumas unidades museais têm vindo a desenvolver parcerias com as universidades e, por seu intermédio, com centros de investigação. Esta realidade impõe, todavia, a existência de quadros altamente qualificados nos museus, ou seja, portadores de habilitações académicas não já apenas de 2º ciclo, mas de um núcleo de doutorados que assegure o cumprimento de tarefas de coordenação científica. Julga-se até que, a ser encarado com realismo e coragem o upgrade formativo dos profissionais de museus, seria expectável a definição de uma política nacional para as próximas décadas, com estratégias concertadas entre os ministérios da ciência, ensino superior e cultura e as autarquias com museus e outras tutelas. Mas essa é uma discussão que está agora a dar apenas os primeiros passos.