Introdução

1O texto que a seguir se apresenta surge no contexto de uma investigação em curso acerca de duas famílias – Paiva e Perdigão - que em meados do século XIII selaram a sua aliança com o casamento de D. João Soares de Paiva e Dona Catarina Perdigoa. Nasceu da descoberta, num arquivo particular, de um documento inédito, e interessante em vários títulos, no qual intervêm como outorgantes estes dois personagens. Trata-se de um pergaminho datado de 1319, no qual ficou exarada a escritura de venda de determinados bens da avoenga do casal, aos seus netos Pedro Afonso (Ribeiro) e Rodrigo Eanes (Cenoura) e respetivas mulheres, Margarida Pais e Sancha Esteves, pelo valor de 300 libras1 [ver Figura 2]. Foi precisamente este documento que abriu a verdadeira «caixa de Pandora» que é a nossa a investigação em curso sobre as duas referidas famílias Paiva e Perdigão.

2Neste sentido, o nosso breve artigo, que é tão-somente uma incursão preliminar no tema, pretende em primeiro lugar constituir-se como uma chamada de atenção para a importância que os arquivos de família adquirem para o desenvolvimento da investigação histórica2. Em termos de especificidade documental, antes de mais: estamos neste caso face a um documento que dificilmente chegaria até nós de outro modo, dado o seu caráter de transação particular, tendo em conta por acréscimo a generalizada ausência de arquivos notariais para a Idade Média portuguesa. Mas também quanto à sua antiguidade, que contraria a ideia de que os arquivos de família, quando subsistem, albergam apenas documentos de séculos mais recentes3.

3Num segundo momento, dada a interessante e importante ligação que veio revelar uma pesquisa mais alargada em outros arquivos públicos e privados, bem como na bibliografia recente, entre diferentes personagens femininas no círculo familiar dos Perdigão e o Mosteiro de São Bento de Cástris, nos séculos XIV e XV, tentaremos compreender e analisar a manutenção de relações familiares com o cenóbio: em que atos e em que termos se concretizou essa atuação e como é que ela se reflete no plano devocional. Ao perspetivar estas vertentes, almejamos contribuir especificamente, a partir da análise de alguns percursos, para uma compreensão integrada e contextualizada do espaço monástico feminino que não o separe do meio familiar de onde provêm as religiosas. Numa linha condutora de história religiosa e social, que valorize também a perspetiva de género, é importante não perder de vista as modalidades de relacionamento entre as mulheres e as instituições religiosas que as acolhiam, tendo em conta os modelos femininos de relacionamento com a Igreja e de práticas devocionais bem como o papel da mulher na sociedade medieval, nomeadamente a sua intervenção direta na administração do património. Sem que o estado ainda preliminar da investigação nos permita uma análise aprofundada de todos estes problemas, o nosso estudo poderá modestamente contribuir para enriquecer a já vasta produção sobre o Cister feminino medieval4.

4O texto começa por uma breve explicação da forma como o documento que deu origem ao nosso estudo entrou no Arquivo da Casa dos Condes de Mesquitela, de onde veio até a um dos autores5, para depois apresentar os dados conhecidos sobre o vínculo em que se inseria, o dos Perdigões. Na terceira e mais longa parte, apresentam-se as diferentes instâncias de relacionamento entre figuras femininas do grupo parental que usou aquela denominação e o mosteiro de S. Bento de Cástris. Será então dado relevo a duas donas, Sancha Esteves e Maior Pais Perdigão, tentando também, através da evocação delas feitas, destacar componentes de fundo tanto da sua autonomia patrimonial como da religiosidade feminina: a familiar, a regular e, em especial, a junção de ambas6.

Um percurso documental: o Morgadio dos Perdigões na Casa dos Condes de Mesquitela

5Quando em 1863 foram extintos os morgadios em Portugal7, na Casa dos Condes de Mesquitela eram administrados sete morgadios, um dos quais era conhecido como «Morgadio dos Perdigões». Foi instituído por Gomes Pires Perdigão, que viveu no século XIV e morreu provavelmente em 13698. Embora o documento da instituição, que em finais do século XVIII ainda integrava o arquivo da Casa, tenha desaparecido9, foi possível confirmar esta informação através de um codicilo ao seu testamento de 8/5/136810.

6Vejamos antes de mais como se concretizou esta integração no património dos Costas, mais tarde conhecidos como «Costas Armeiros Mores», de cuja varonia e representação descendem os condes de Mesquitela. No começo do século XVII, em Portugal sentiam-se ainda os efeitos das ondas de choque do desastre de Alcácer Quibir, que afetou física, psicológica e materialmente as famílias portuguesas11. Entre mortos, feridos, presos e escravizados, houve que fazer face a avultadas despesas, primeiro na preparação para a guerra e depois, quando foi caso disso, nos resgates dos sobreviventes. Na sequência da derrota e da morte sem descendência do Rei D. Sebastião, seguiu-se a monarquia dual com os Reis Filipes quase sempre ausentes na Corte de Madrid e Lisboa, órfã de Rei, governada pelos representantes dos Áustria. Como referimos em trabalho anterior12, D. Álvaro da Costa da Silva «o Queimado», cabeça de um dos ramos do grupo familiar «Costas com Dom»13, confirmou pouco antes de morrer, nos primeiros dias de Janeiro de 1604, a instituição de um importante morgadio. Deste vínculo foi primeiro administrador D. António da Costa (m.1633), o filho varão mais velho sobrevivo. Entre as iniciativas que teve de desenvolver para dar seguimento às disposições de seu pai, investido já nas funções de representante da estirpe, foi a de procurar um casamento adequado, que pudesse assegurar a continuidade das gerações e uma aliança proveitosa em termos sociais e materiais. A escolha recaiu em D. Madalena de Mendonça (m.1650)14, filha herdeira de Luís Góis Perdigão, fidalgo da Casa del Rei, e de D. Margarida de Castro [ver Figura 1]. A escritura de dote e arras, celebrada a 26/02/1608, foi outorgada em Almada na quinta da Motela, pertencente aos pais de D. Madalena, que estiveram presentes juntamente com a tia-avó paterna da noiva D. Luísa de Góis e D. Jorge de Almeida cunhado do noivo15. O dote, constituído por bens móveis e imóveis, foi avaliado em 13.000 cruzados e as arras, em um terço daquele valor. Pela morte prematura de seu único irmão varão, Luís de Sousa de Castro, em Dezembro de 160616, D. Madalena veio a ser herdeira de seu pai quando este morreu em 1630, e administradora do morgadio dos Perdigões, que assim integrou o património dos Costa, mais tarde Condes de Mesquitela.

Figura 1 – Árvore de Costados de D. Madalena de Mendonça

O Morgadio dos Perdigões

7Tendo sido constituído originariamente no Alentejo, integravam o mesmo propriedades em Évora, Machede, Vimieiro, Monsaraz, Montoito, Almada e Vialonga. Entre os documentos deste morgadio pertencentes ao arquivo da Casa dos Condes de Mesquitela, destaca-se o pergaminho referido na entrada deste texto. Datado de 1319, ele consagra como referimos a venda de bens da avoenga de Dom João Soares de Paiva e sua mulher, Dona Catarina Perdigoa, a seus netos, Pedro Afonso (Ribeiro) e Rodrigo Eanes (Cenoura) e respetivas mulheres, Margarida Pais e Sancha Esteves17 [ver Figura 2].

8Vejamos, para principiar, o que sabemos sobre o grupo familiar, identificando os personagens intervenientes na transação.

Figura 2 – Os grupos familiares

9D. João Soares de Paiva, já referenciado nos nobiliários medievais18, apresenta uma interessante árvore de costados, com raízes em destacadas estirpes da nobreza dos primeiros tempos da dinastia afonsina, nomeadamente os Baião, Braganções, Riba de Vizela, Sousa e Dade. O seu avô paterno e homónimo, algumas vezes referido como «Freire» e conhecido como «o trovador», é unanimemente considerado como o autor da mais antiga composição conservada nos cancioneiros galaico-portugueses19.

Figura 3 – Árvores de costados de D. João Soares de Paiva

10Quanto a Dona Catarina Perdigoa, o primeiro documento em que aparece referenciada data de 1309; Catarina, a sua irmã, Domingas Pires Perdigoa, e seus filhos, são aí indicados como proprietários de uma herdade no Degebe, termo de Évora20.

11Já os dois netos, Pedro Afonso (Ribeiro)21 e Rodrigo Eanes (Cenoura) que intervieram como compradores no documento citado acima, são ambos filhos de Dona Clara Eanes de Paiva, assim designada pelo Conde D. Pedro no seu Nobiliário22, embora de dois casamentos distintos, o primeiro com João Rodrigues Cenoura e o segundo com Afonso Ribeiro. Centrar-nos-emos em Rodrigo, designado como escudeiro, por ser o que tem relação com o tema da presente apresentação. Diz o Conde D. Pedro que o pai deste se chamou João Rodrigues Cenoura, era natural de Évora, e «foi bõo cavaleiro»; que era filho de um Rodrigo Eanes Cenoura (nome que passará ao neto) e sobrinho do arcebispo D. Martim23. Acrescenta o mesmo autor que Rodrigo Eanes (neto) foi conhecido pelo «sobrenome» de «Bussalfom»24. Procurando a etimologia dessa alcunha foi possível identificar a origem árabe dos vocábulos que a compõem (abu e salfom) e que significam: «pai; detentor» e «perdigões»25. Ainda hoje existe em Machede uma herdade com este nome e que confronta com outras outrora pertencentes ao morgadio dos Perdigões. A referência mais antiga que conhecemos a esta propriedade data de 1285, quando é referido um herdamento «em logo que dizem Almaçor (sic)» que pertencia ao Rei e que confrontava com propriedades suas pelo norte26. Rodrigo Eanes Cenoura «Bussalfom» veio a casar com Sancha Esteves, de quem teve pelo menos um filho, João Rodrigues de Paiva27, escudeiro.

12Qual a relação entre estes os personagens deste grupo familiar e o instituidor do morgadio, Gomes Pires Perdigão? É uma dúvida que ainda não nos foi possível esclarecer, com base documental. Admitimos, no estado atual das nossas investigações, que aquele instituidor possa ser neto de Afonso Eanes de Paiva28, um outro filho de D. João Soares de Paiva e D. Catarina Perdigoa. A provável constituição da herdade dos Perdigões em principal propriedade familiar poderá tê-los levado a adotar o topónimo como apelido, porventura para distinção em relação a outros ramos do grupo familiar (ver Figura 2)

Os Perdigões e o Mosteiro de Cástris (séculos XIV-XV)

13O mosteiro de São Bento de Cástris tem o seu percurso fundacional inscrito na evolução das casas de reclusão feminina do século XII, considerando-se Urraca Ximenes como fundadora e Domingas Soeira como a reformadora que obteve do Papa Gregório X, cerca de 1268, a carta «para sujeitar o mosteiro» à obediência do abade de Alcobaça29. Porém só em 1278, «em concílio, o Sumo Pontífice confirmou a sua instituição, impondo-lhes [às suplicantes] a Regra de Cister, sob a direção do abade de Alcobaça»30.

Uma teia de relações por desvendar

14O relacionamento entre a família Perdigão e o cenóbio fez-se através de diferentes personagens. Vejamos, num primeiro momento, as ligações sobre as quais se possui uma informação ainda lacunar, e que aqui incluímos também em jeito de contributo para estudos posteriores.

15Em 22 de Novembro de 1351, encontra-se Gomes Pires Perdigão, o instituidor do morgadio, a intervir como testemunha presencial da tomada de toma posse de quatro portais de casas, em Évora, pela abadessa do Mosteiro, Maria Eanes31. Presença ocasional, de vizinhança, de serviço, ou algo mais? Se neste momento não nos é possível responder cabalmente a nenhuma das hipóteses, a presença de Gomes indica pelo menos a sua respeitabilidade e aceitação num contexto final de uma transação importante para o mosteiro. Já em 1376, uma certa Sancha Esteves, estante nas casas que tinham sido de Gomes Pires Perdigão, tendo ele já falecido, atuou como procuradora de seu sobrinho, João Lourido, obtendo uma sentença para poder tomar posse de bens disputados com o mosteiro de Cástris, que haviam pertencido à irmã deste, Constança Eanes, freira professa naquele mosteiro, também já falecida32. Se não conseguimos ainda identificar esta Sancha Esteves com a dona de que de seguida falaremos, e que, ela sim, teceu relações com o mosteiro que foi possível conhecer melhor, encontramos aqui o fio de uma teia que fica por desvendar, mas que poderá ser promissor, ao testemunhar que a tia de uma freira já falecida se encontrava nas casas do administrador do morgadio.

16Para dois outros membros da família Perdigão, afortunadamente, foi possível encontrar mais abundante informação. Vamos de seguida concentrar-nos nas interessantes figuras de Sancha Esteves e Maior Pais Perdigão.

Sancha Esteves mulher de Rodrigo Eanes Cenoura/Paiva «o Bussalfom»: benemérita e freira professa

17Nada sabemos sobre a origem familiar de Sancha Esteves, o que seria sem dúvida relevante para tentar compreender a estratégia de alianças que com o seu casamento tinha sido estabelecida e, bem assim, distingui-la de outras com o mesmo nome. Depois da referência no documento acima referido de 1319, Sancha apenas volta a surgir na documentação compulsada em 1353, já como viúva de Rodrigo Eanes de Paiva. No final desse ano, possivelmente preocupada com o avançar da sua idade ou com alguma doença, sendo moradora em Évora, faz doação ao mosteiro de São Bento de Cástris, com reserva de usufruto em sua vida, de uma herdade no termo de Évora e Arraiolos, denominada Benamorique ou Benamoleique (mais tarde chamada do Segonheiro), que pertencera a sua sogra, por sua alma33. Este documento levanta algumas questões para as quais não temos respostas definitivas: seria Rodrigo Eanes de Paiva o mesmo que Rodrigo Eanes Cenoura «o Bussalfom»? A sogra de Sancha Esteves que fora possuidora da herdade, aparece referida como Maria Peres Seca. Será esta leitura paleográfica a mais correta? Ou onde se lê «Maria» se deve ler «Crara», nome pelo qual aparece referida no Livro de Linhagens acima referido, a mãe de Rodrigo Eanes Cenoura «o Bussalfom»? Poucos anos mais tarde, em Janeiro de 1356, ainda residindo em Évora, Sancha Esteves faz seu procurador um certo João de Arouca, morador e vizinho de Évora, dando-lhe poder para resolver uma demanda que trazia com Rodrigo Abelhão, relativa ao pagamento do foro de uma vinha34. Surge-nos assim na História como uma «dona viúva», seguramente já de uma idade avançada, que, porém, parece gerir autonomamente os seus bens, e que, pelo que deixa entrever a doação da herdade, é benemérita, porventura devota, do mosteiro de Cástris.

18E será em função destas qualidades que se poderá explicar uma alteração profunda e importante na fase derradeira da vida de Sancha: em 1363, é já freira no mosteiro da Cástris e aí residente. Sabemo-lo através de um documento exarado pelo «tabellyom del Rey na cidade de Évora», que em 9 de Novembro se deslocara ao mosteiro, na presença de «Sancha stevez molher que foy de buçalfam escudeyro freyra do dicto moesteyro» e de «Pero affonso morador em portel», no qual ambos se compõem sobre a venda de uma herdade que Sancha Esteves havia feito a Pero Afonso e que havia sido contestada por outros35. A herdade, situada em Portel, tinha sido herdada por Sancha, por morte de seu filho, João Rodrigues. O interveniente Pero Afonso, era, muito provavelmente, o meio irmão de defunto marido que com ele havia comprado os já referidos bens da avoenga36. Podemos intuir que Sancha Esteves, depois de enviuvar e com a morte de seu filho, não tendo outros descendentes vivos, se recolheu no mosteiro cisterciense, onde terá aguardado a chegada do momento final e onde provavelmente terá sido enterrada. Encontramos aqui uma segunda modalidade de relacionamento das mulheres com os mosteiros femininos, que prolonga a beneficência e a devoção numa relação de «serviço», sem que ambas as vertentes se oponham na sua bondade: era expectável que as devotas e beneméritas recebessem acolhimento em tempos difíceis, tal como a doação de bens às entidades religiosas significava muito mais do que uma forma de assegurar uma velhice mais isenta de cuidados37.

Dona Maior Pais Perdigoa: o enquadramento familiar de uma abadessa notável

19Dona Maior é seguramente uma das mais interessantes figuras femininas da região transtagana no último quartel do século XIII e no primeiro do XIV. Maior Pais foi protagonista do mais longo abadessado em S. Bento de Cástris, com um total de 45 anos. Este terá durado possivelmente até à morte da Abadessa, em Março de 1429, e foi marcado pelo reforço do poder económico da comunidade, através do incremento do património e da sua gestão.

20A atuação de Maior Pais como abadessa já foi referida por Maria Antónia Conde, que a destaca a vários títulos38. Porém, o enquadramento familiar e privado desta notável religiosa é bem menos conhecido. Embora não seja exequível, no âmbito deste trabalho, realizar uma biografia detalhada, iremos apresentar o estado presente da investigação, que congrega já alguma informação relevante.

21Se não nos foi possível determinar onde nasceu e como decorreram os primeiros anos da sua existência, possivelmente entre Estremoz e Évora, podemos revelar o seu enquadramento genealógico [ver figura 2]. Seu pai, Paio Afonso Perdigão, era em 1362 juiz em Estremoz39, onde teve algumas propriedades; foi testamenteiro de seu irmão Gomes Pires Perdigão, e instituiu um anal de missas por sua alma no cabido da Sé de Évora40. A mãe chamava-se Leonor Gonçalves; mas pouco mais sabemos do que isto, e que em 1371 já se encontrava viúva41. Em termos de relação com o grupo familiar dos Perdigões, Maior Pais era, portanto, sobrinha de Gomes Pires Perdigão, o instituidor do morgadio, morador e vizinho em Évora e raçoeiro nas Alcáçovas. Temos conhecimento de que a nossa biografada teve algum património pessoal, nomeadamente uma herdade em Monsaraz42, quatro courelas em Estremoz que vendeu em 1392 43e dois olivais, também nesta vila, que havia herdado de seus pais e que por sua morte ficaram ao mosteiro44.

22Maior Pais já era freira em 1383 quando o País foi abalado pelos acontecimentos decorrentes da morte do rei D. Fernando e a crise interna e externa, entre a invasão pelo rei D. João I de Castela e a ascensão do Mestre de Avis. As fações que se digladiaram por inúmeras cidades e vilas cometeram as maiores violências em defesa da respetiva causa. Em Évora ficou tristemente célebre um episódio narrado pelo cronista Fernão Lopes, que envolveu a abadessa de Cástris, Joana Peres Ferreirim. Sendo conotada com a fação castelhana pela sua proximidade com a Rainha viúva D. Leonor Teles, foi brutalmente arrastada pelas ruas da cidade e assassinada, em Janeiro de 138445. Em Maio desse ano, a prioresa e um grupo de freiras conventuais elegem, para lhe suceder, Leonor Gonçalves46; mas a 19 de Dezembro, o Mestre de Avis dirige uma carta ao abade de Alcobaça, solicitando-lhe que confirme a eleição que a comunidade de Cástris havia feito da abadessa Maior Pais, referindo o parentesco desta com o condestável D. Nuno Álvares Pereira, que pedira a sua intervenção. O Mestre justifica o pedido pelas qualidades da candidata «em como ella he bem discreta, e virgem, e casta e tal que merece o dito estado» e recordando o muito que devia ao Condestável, pelo grande serviço que lhe fazia47. Não sabemos se o abade de Alcobaça ainda não tinha confirmado a eleição de Leonor Gonçalves, conforme lhe havia sido solicitado em Maio, ou se haveria dois partidos em disputa pelo ambicionado cargo, mas o facto de Leonor ter assumido com a abadessa D. Maior o cargo de prioresa do cenóbio, pode indiciar que não havia conflito entre ambas ou que se chegou a um acordo, quiçá motivado pelo parentesco de D. Maior com o Condestável D. Nuno Álvares Pereira.

23O documento permite-nos entrever o que poderiam ser as redes parental e clientelar em que Maior Pais se enquadrava. Mas não nos ajuda, infelizmente, a ter uma ideia mais concreta sobre os motivos que terão estado por trás da decisão da dona em enveredar pela vida monástica neste cenóbio.

24Sabemos, porém, de forma algo indireta mas impressiva, que Maior Pais uniu na sua opção por Cástris, os dois elementos centrais da relação entre algumas donas «Perdigoas» e o mosteiro em que viveram: a devoção e a identidade de um específico grupo familiar. Ambos ecoam – literalmente - através dos séculos, por meio de um som muito especial. De entre todos os testemunhos que Maior Pais Perdigoa deixou e que ainda é possível conhecer, sobressai o sino que ofereceu ao mosteiro e que no universo das relações daquele cenóbio perdurou «enquanto voz da comunidade» para regular o seu funcionamento, bem como as práticas litúrgicas e os principais momentos da vida claustral48.

Figura 4 – Sino de Maior Pais Perdigão

25Este sino, que ostenta a data de 139149, considerado o quarto mais antigo e datado em Portugal, que se encontra atualmente na Igreja da Misericórdia de Mora, apresenta duas legendas paralelas, que deverão ser lidas começando pela inferior, mais próxima do bordo: «ERA DE MIL E CCCC XXIX ANOS ME MÃDO FAZER D +» e a superior, junto ao ombro do sino, que diz: «DA MAIOR ABADESA MECTEM SÃNCTA +». A expressão «mentem sancta», está relacionada com o culto de Santa Ágata, padroeira dos sineiros e dos bombardeiros e é uma forma abreviada da invocação «Mentem Sancta spontaneam Honorem Deo et Patrie Liberatione», «que desde os inícios do século XIII se tornou uma das legendas mais comuns nos sinos ocidentais»50 Além destas legendas, o sino apresenta o que pensamos serem duas representações simbólicas do pentagrama, recorrentemente usadas na época medieval com o significado de «boa sorte e proteção mágica»51.

26Sobre todos estes interessantíssimos elementos, o sino destaca a sua individualidade através de símbolos que representam os dois universos da Abadessa: dois selos relevados52 [ver Figura 5], no interior de dois duplos arcos ogivais, em que se situa a legenda: «SELO DE DONA / MAIOR ABADESA»53. Aqui, no centro, divisa-se a efígie da abadessa, de pé e de frente, com a sua veste de prelada e um toucado característico, segurando na mão direita um livro aberto sobre o peito, «o filactério mais do que possível alusão segura à Regra da Ordem»54; na esquerda o báculo, símbolo do poder abacial, sob uma edícula gótica trilobada em que se abrem dois nichos. Por baixo desta figura, que ostenta em todo o seu esplendor o elevado cargo que detinha, encontra-se um elemento pessoal e identificador da sua estirpe: a representação heráldica medieval das armas de família Perdigão, num escudo com cinco perdigões55. O selo, que o sino assim nos revela, e com o qual a Abadessa autenticava os documentos que outorgava, é mais um sinal da junção das duas esferas: religião e parentesco, devoção e identidade perene de origem familiar. A utilização dos selos dos abades cistercienses «símbolo icónico da autoridade jurisdicional incontestável», está documentada desde meados do século XII, com modelos que foram evoluindo e refletindo os estilos de cada época e as orientações dos Capítulos Gerais da Ordem, mas foi em 1335, que o Papa Bento XII nas Constituições de reforma de toda a Ordem de Cister, determinou com mais rigor a sua obrigatoriedade e características56.

27Em jeito de conclusão, o episódio do sino permite-nos salientar a importância de um tipo de atitude perante o ingresso na vida religiosa que não foi exclusivo da dona em apreço, certamente57, e que nem sempre tem sido bem compreendido por uma historiografia de raiz clerical e masculina. Para as mulheres religiosas, a vida em comunidade poderia replicar, sem que tal implicasse menos devoção, a estrutura e os princípios de organização do grupo familiar. Parentesco e afeto, quiçá modelando-se a partir de uma relação também ela «familiar» e afetuosa com as entidades divinas à sombra das quais se acolhiam, ou com as fundadoras das casas, quase sempre mulheres fortes, mas também maternais. Esta leitura não elide toda a conflituosidade que existiu nas casas religiosas femininas, bem como deve ser salientado que os relacionamentos parental e afetivo seguiam provavelmente linhas sociológicas claras. Mas não estão menos erradas as leituras históricas tradicionais dos universos de vivência religiosa das mulheres consagradas, que as desenham como desregradas, intelectualmente pobres e potencialmente irracionais, antes de mais porque femininas, e depois, porque resistentes à orientação masculina58. Em contextos de reforma religiosa, como foram os séculos tardo-medievais e toda a centúria de Quinhentos, o tipo de ambiente que os confessores e visitadores viam nos conventos femininos, era por acréscimo inserido numa leitura de relaxamento moral e de desobediência59. Estas leituras são descendentes diretas das fontes que mais foram privilegiadas na análise do fenómeno, até à renovação da história religiosa sobre perspetiva de género, a partir da década de 70 do século XX – as crónicas monásticas, os escritos dos confessores, a prosa religiosa moral em geral – escritos quase sempre devidos a penas masculinas. A redescoberta de escritos femininos, o estudo de percursos pessoais de religiosas – mormente fundadoras, abadessas, superioras – tem vindo a demonstrar claramente que existiam modelos próprios de vivência feminina da religião e da vida consagrada. Neles, as relações familiares, a identidade proveniente da origem familiar, e alguns tipos de devoção, nomeadamente a cristocêntrica e a mariana, ou a ligação forte à personagem fundadora – eram centrais, e não conduziram necessariamente a um menor fervor religioso, ao contrário do que os escritos dos «reformadores» querem fazer passar60.

Figura 5 – Armas da Abadessa Maior Pais Perdigão

Siglas:

ACSE – Arquivo do Cabido da Sé de Évora

ADS – Arquivo Distrital de Setúbal

AMA – Arquivo da Misericórdia de Almada

AMPM – Arquivo dos Marqueses da Praia e Monforte

ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo

APVF – Arquivo Pedro Villa Franca

BPE – Biblioteca Pública de Évora