100 Cartas para Paulo Freire de quienes pretendemos Enseñar
|3. Reflexiones y educación
Da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica : experiência dialógica de um grupo de pesquisa do Sul do Brasil
Texte intégral
1O grupo de pesquisa do qual fazemos parte – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da Universidade de Passo Fundo (Gepes/UPF) possui uma trajetória de dez anos de estudos, interlocuções, produção acadêmica e inserção de novos pesquisadores. O Gepes está vinculado ao Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Educação (PPGEdu/UPF). Trata-se de um grupo que desde sua origem acolhe mestrandos, doutorandos, bolsistas de iniciação científica, professores da educação básica, voluntários, egressos do PPGEdu e interessados nas pautas propostas pelo grupo. Nos dez anos de existência o Gepes produziu dez coletâneas (uma por ano) que sistematizam os principais eixos de discussão e investigação do grupo, bem como uma vasta produção de artigos acadêmicos publicados em periódicos qualificados. Os encontros de estudos do Gepes são abertos para todos os interessados e acontecem quinzenalmente nas sextas-feiras à tarde. Há uma participação intensa, qualificada e perene, variando entre 25 a 35 participantes.
2Uma pergunta recorrente que nos é feita é o que se faz num grupo de pesquisa? Uma resposta aligeirada a essa questão pode, obviamente ser: “no grupo de pesquisa, nós estudamos!”. Ora, mas alguém poderia perguntar-se: só isso? Pois bem, diríamos nós, já é o bastante. Quando refletimos sobre o nosso grupo de pesquisa, consideramos muito inspiradora a abordagem de Paulo Freire, sobretudo, em Professora, sim; tia, não: cartas a quem ousa ensinar (2002) e Pedagogia da Autonomia (2015) sobre a complexidade dialética do ato de estudar.
3Paulo Freire nos lembra que há “um movimento dinâmico entre pensamento, linguagem e realidade” e, na medida em que for bem assumido, “resulta uma crescente capacidade criadora de tal modo que, quanto mais vivemos integralmente esse movimento tanto mais nos tornamos sujeitos críticos do processo de conhecer, de ensinar, de aprender, de ler, de escrever, de estudar (Freire, 2002, p. 7, grifos nossos). O ato de estudar, no fundo, relaciona solidariamente todas estas operações.
4 O grupo de pesquisa do qual somos membros tem como base o investigar e o conhecer em conjunto. A cada ano uma temática de investigação é escolhida para que todos possam ampliar e produzir conhecimentos sobre ela. A leitura de textos sobre a temática, cuidadosamente selecionados pela equipe de coordenação do Gepes, a leitura atenta, sistemática e metódica, a discussão qualificada no grupo, o desafio de sistematizar e socializar os apontamentos realizados por cada um, torna os encontros do grupo, tempo e espaço de experiências pessoais, vivências, posições e pensamentos dos sujeitos pesquisadores. Há uma relação dialógica entre sujeitos e, destes, com os textos. A leitura e a discussão são fundamentais para o processo da escrita, pois o Gepes oferece todos os anos, conforme já mencionado, uma coletânea com as produções dos artigos e ensaios elaborados, geralmente em duplas ou trios, que são fruto das leituras, discussões e produções geradas no decorrer de ano.
5Sobre o ler, Freire destaca que o leitor é um “re-criador” do texto que lê, pois a “compreensão do texto não se acha depositada, estática, imobilizada nas suas páginas à espera de que o leitor a desoculte” (Freire, 2002, p. 29). Dessa forma, ler criticamente é “reescrever” o lido. A leitura, por sua vez, também é uma experiência dialógica “em que a discussão do texto realizada por sujeitos leitores esclarece, ilumina e cria a compreensão grupal do lido” (Freire, 2002, p. 29). A leitura em grupo “faz emergir diferentes pontos de vista que, expondo-se uns aos outros enriquecem a produção da inteligência do texto” (Freire, 2002, p. 29).
6O escrever, um desafio feito constantemente aos participantes do grupo de pesquisa, também é um ato exigente. Assim o é, pois como nos ensina Freire (2002, p. 7) se escreve antes mesmo de chegar à mesa, “nos momentos em que atuo ou prático ou em que sou pura reflexão em torno de objetos” e continua quando, pondo no papel ou na tela do computador, “da melhor maneira que me parece os resultados provisórios, sempre provisórios, de minhas reflexões, continuo a refletir, ao escrever, aprofundando um ponto ou outro que me passara despercebido quando antes refletia sobre o objeto, no fundo, sobre a prática” (Freire, 2002, p. 7).
7A relação solidária entre as operações relacionadas ao ato de estudar são desafios constantes no Gepes. Buscamos aprender com os textos lidos, conhecer melhor os saberes já construídos sobre uma determinada temática, que chegam até nós por meio de artigos acadêmicos publicados em periódicos da área da educação, capítulos e livros disponíveis nos formatos impresso ou digital, escritos por pesquisadores com amplo reconhecimento acadêmico. Trata-se de fazer o exercício indicado por Freire (2015, p. 28) de ajudar cada integrante realizar “a rigorosidade metódica” para haver uma aproximação dos “objetos cognoscíveis”, não para serem absorvidos acriticamente, como acontece numa “educação bancária”, mas para serem postos à prova, discutidos, compreendidos, avaliados, investigados.
8O saber que surge dessa aproximação dos objetos de estudo necessita ser colocado em diálogo com os saberes de cada um, com as dúvidas e questões, e com as experiências, sejam profissionais ou acadêmicas. Dessa relação entre sujeitos e entre saberes, surgem novas recriações em forma de escrita, com características diversas, com autorias diferentes, que também precisam ser postas à prova no grupo, dentro de um horizonte crítico e de problematização do social. Os textos produzidos são apresentados dentro de um cronograma de trabalho no próprio grupo e dessa forma ocorre a ampliação, o olhar cuidadoso, os ajustes, as correções, a ampliação dos horizontes. Todos os textos que são publicados nas coletâneas são sistematicamente apresentados, discutidos e apreciados no grupo para socializar com os parecer, os pensamentos e ideias.
9Em nosso modo de ver e vivenciar o grupo de pesquisa, existe nele, uma relação de deslocamento da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica. Entre as exigências que Paulo Freire apresenta ao exercício do ser professor em Pedagogia da Autonomia (2015) estão a pesquisa e a criticidade. Para Freire, pensar em termos críticos é tornar a curiosidade ingênua do senso comum em um processo metódico e rigoroso de uma curiosidade epistemológica. Esse deslocamento não é uma ruptura, mas uma superação. Ou seja, na transição da curiosidade ingênua para a epistemológica há uma mudança de qualidade, mas não de essência, pois a curiosidade permanece. É essa curiosidade que precisa ser aguçada e estimulada para que se transforme em força criadora do aprender e que de certa forma “imuniza” os pesquisadores contra o poder apassivador do “bancarismo”. Para Freire (2015, p. 33) “a curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta, faz parte integrante do fenômeno vital”. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.
10Concordamos com Freire (2015, p. 33-34) que “uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil. Curiosidade com que podemos nos defender de ‘irracionalismos’ decorrentes do ou produzidos por certo excesso de racionalidade de nosso tempo altamente tecnologizado”. Os espaços e tempos do grupo são a oportunidade dos seus integrantes desenvolverem a curiosidade crítica e vencerem os medos que paralisam as iniciativas para enfrentar o mundo cada vez mais injusto e desigual, no qual impera o neoliberalismo.
11Em suas cartas a quem ousa ensinar, Freire (2002, p. 39) ressalta que “há sempre uma relação entre medo e dificuldade, medo e difícil”. É essa relação de medo que promove o sentimento de insegurança do sujeito que se sente psicologicamente incapaz de enfrentar os obstáculos que encontra pela frente. O medo pode ser decorrente da “falta de força física, falta de equilíbrio emocional, falta de competência científica, real ou imaginária, do sujeito”. É esse medo real que precisa ser enfrentado para evitar que nos paralise e é nesse sentido que o grupo se torna espaço de resistência, de coragem para enfrentar os medos que todo o processo de investigação pode suscitar. Ao se envolverem no grupo, os integrantes vão “experimentando-se cada vez mais criticamente na tarefa de ler e de escrever percebam as tramas sociais que se constitui e se reconstitui na linguagem, a comunicação e a produção do conhecimento” (Freire, 2002, p. 46), vão adquirindo confiança e constituindo-se pesquisadores engajados eticamente e politicamente na transformação do mundo. Paulo Freire é presença viva em experiências dialógicas e emancipadoras!
Referências
Bibliographie
Freire, P. (2002). Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. (11 ed.) São Paulo. Edit. Olho dágua.
Freire, P. (2015) Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo. Edit. Paz & Terra.
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