Queridos/as sem Terrinha do mst!

Aqui ninguém vai esquecer Paulo Freire. Essa é a força pra gente viver. Essa é a força pra gente lutar.

1Fazia algum tempo uma ideia me inquietava: escrever uma carta para os Sem Terrinha, na certeza de encontrá-los com saúde e ser correspondido. Assim fiz com os camponeses da África, com minha sobrinha Cristina e com muitos amigos, cuja correspondência por cartas foi intensa no período de 16 anos de exílio. A tristeza e a saudade eram amenizadas ao receber cartas de amigos com as notícias de meu Brasil amado. O ato de ler estas cartas e de respondê-las, era para mim, uma terapia. Mais tarde vocês entenderão porque estive exilado por tanto tempo.

2Escrever para pessoas com uma experiência de luta e um vocabulário próprio não é tão simples. Vocês são filhos da luta e foram alfabetizados com palavras diferentes das minhas. Se tropeçarem em alguma palavra, busquem seu significado com os pais ou educadores. Vos escrevo, porque muitas coisas aconteceram comigo e com vocês também. Eu soletrei as primeiras letras debaixo de uma mangueira, e muitos de vocês, debaixo de um barraco de lona preta. A escola veio depois, sem nos perguntar o que a vida tinha nos ensinado e que aprendizado trazíamos na bagagem. Por isso, desde pequeno questionei a escola bancária, longe da vida, com janelas e portas pequenas, sem deixar a gente ver o mundo lá fora. Ver meus colegas e eu sentados enfileirados, olhando na nuca do outro, me dava um desconforto, ficava desassossegado. Mas como era proibido resmungar, guardava dentro de meu peito uma rejeição aos professores autoritários, pouco dispostos a questionar aquele modelo de escola. Ali nasceu minha indagação à escola bancária. Em seu lugar colocaria uma escola democrática, libertadora, emancipatória, com educandos felizes, sentados em círculos, com professores amáveis. Sei que a escola de vocês já cultiva alguns desses princípios.

3Nos últimos dias, trabalhos emergentes se impuseram a mim, por conta da pandemia que assusta os povos de todo o mundo. Nós brasileiros estamos mergulhados na dor, voando em uma aeronave sem piloto, amargando 408 mil óbitos. Vocês devem conhecer vários Sem Terra que partiram. Espero que a covid não tenha ceifado a vida de nenhum pai e nenhuma mãe de vocês. Essas partidas inesperadas fazem doer o peito da gente. Vocês sabem, o governo se mostra insensível e desumano com a dor do povo. Nós que lutamos pela vida, o desaprovamos, e assim que o povo for vacinado iremos para as ruas para protestarmos contra as injustiças cometidas contra nós. Só a solidariedade amenizará o sofrimento, a dor e a fome de quem tem fome e está em luto. Em breve, nas ruas nos encontraremos. As bandeiras e os bonés nos identificarão: somos Sem Terra em luto, mas em luta.

4Por tudo isso, não deu para sentar-me, com calma, e escrever essa carta antes de ontem como havia me programado. Talvez tenha sido proposital. Assim tenho mais coisas a vos contar. E vocês saberão mais de mim. Poderão se organizar para respondê-la. Estou bem interessado e curioso para saber como estão as atividades de vocês neste ano de pandemia. Têm algum aprendizado nas aulas remotas? Firmemos aqui um compromisso entre amigos! Eu vos escrevo de coração aberto, colocarei esta carta no correio, esperando ser correspondido. Prometo ler todas as cartas recebidas de vocês, com alegria e gratidão. Afinal, ser correspondido pelos Sem Terrinha é ser bem importante neste país.

5Se não for pedir demais, gostaria que essa carta fosse lida e estudada entre vocês, e junto com os pais. Vejam a melhor hora para não os aborrecer na hora do trabalho. Se quiserem levá-la para a escola e lê-la junto com os colegas e educadores, ficarei ainda mais grato. Os colegas também ficarão agradecidos, porque não é todos os dias que a gente recebe uma carta de uma pessoa que escreveu muitos livros, que fazem a gente pensar. O importante é que ela seja lida, e que todas as crianças sintam a minha presença, desejando saúde, amor, felicidade, e muita luta. Camaradas, assim posso vos chamar? Agora não posso mais adiar de sentar-me e vos escrever. Como de costume, assim fiz com meus livros, os escrevi à mão num pequeno caderno escolar, depois alguém, generoso, datilografou para mim. Obviamente, vocês não conheceram as barulhentas máquinas de datilografia que nos serviram por muito tempo. Os computadores vieram depois. Os pais de vocês devem se lembrar daquelas máquinas! Eu mesmo resisti aos computadores, e ainda hoje não sou afeito ao mundo eletrônico. Gosto de escrever com meu punho, com minha pena, assim treino a caligrafia – um exercício fantástico para aprender a escrever correto, bonito e legível. Cartas precisam ser escritas com letra bonita e compreensível. Assim eu aprendo mais e escrevo melhor. E vocês vão entender o que vos escrevo.

6Como estão dizendo por aí, eu sou conhecido, comentado e estudado entre os Sem Terra. Sabem que nasci no ano de 1921 no interior do Estado de Pernambuco, no nordeste brasileiro. E eu sei que naquela região há muitos assentamentos e acampamentos. Lá vivem pessoas empolgadas, lutadoras e aguerridas. Gostam de mexer com a arte, a poesia e o teatro. Lutam para criar mais escolas, novas alternativas de vida e viver em cooperativas. Soube que por lá criaram um Centro de Formação e o batizaram com o meu nome: Paulo Freire. Honestamente, fiquei orgulhoso, me sentindo importante de ser homenageado pelo MST, de ver o povo estudando, se organizando e buscando todas as formas de libertação. De forma invisível eu estive presente neste batizado. Eu estava vestido de branco e azul - a mesma cor do céu. Vocês não me viram, mas eu vi vocês!

7Sinceramente, ver o MST continuando e recriando o legado do menino que lia o mudo me dá uma enorme alegria. Este menino sou eu, dentro de vocês! Eu comecei a ler o mudo à sombra de uma mangueira e não parei mais de buscar saber mais. E este saber era partilhado com os outros colegas. Vivia inquieto, fazia muitas perguntas aos meus pais, as vezes sem respostas. Eu queria ler o mundo com os meus olhos. Queria entender porque haviam crianças e gente grande, analfabetas, tristes, perambulando pelo mundo. Buscava entender porque razão algumas crianças tinham de viver famintas, com migalhas e mal vestidas, enquanto outras, viviam em casas bonitas, cercadas de arrame, rodeadas de plantas e flores. Elas frequentavam escolas uniformizadas, os pais tinham empregos e salários, e por isso tinham comida farta e abundante em suas mesas. Passei muito tempo inquieto com essas perguntas, e sentia raiva também. Adormecia e amanhecia com essa inquietude no meu peito. Era uma dor que não passava, e aumentou ainda mais, quando perdi meu pai. E desde aquele triste dia em que não vi mais ele chegar em casa e nos abraçar, não pude mais lhe fazer perguntas. Minha mãe não pode mais nos dar tanta atenção, por ter que ser pai e mãe ao mesmo tempo. Eu, já adolescente, via meu corpo crescer rapidamente. As vestes e os calçados, não cabiam mais em mim. Sem reclamar, tentava fingir que tudo estava bem. Em meu coração o sentimento era outro. Ainda bem que essa experiência me fez ver que outros meninos eram mais pobres que eu, e por ter uma casa, uma mãe lutadora, irmãos e poder ir para a escola, eu já era um menino adolescente, feliz.

8Meus queridos Sem Terrinha! Comecei a vos escrever e fui longe demais. Queria mesmo vos contar o seguinte: Eu nasci no ano de 1921 do século passado. Vocês nem estavam nos planos ainda. Aliás, faz tanto tempo que nem os pais de vocês haviam nascido. O tempo passou depressa, e neste ano em que vocês estão aí, vibrando pela vida, tendo que aprender sobre Covid19, eu completaria 100 anos. Se estivesse vivo, estaria velhinho, curvado, talvez com a memória estragada pelo tempo. Em meus olhos teriam óculos de lentes semelhantes a fundos de garrafa. Estaria com minha barba branca e longa. Alguns me achariam parecido com papai-noel. Não faço conta do que achariam e pensariam de mim! Queria sim viver mais tempo, lúcido, pensante e feliz. Meu desejo seria ver vocês lutando, marchando, subindo em árvores e gritando, indo para a escola, cuidando dos animais, cultivando flores e hortas orgânicas. Queria muito chegar à casa de vocês, no assentamento, arrumar a mesa com uma toalha colorida e colocar um vaso de flores ao centro. Juntos, celebraríamos meus 100 anos de vida, com mesa farta de comida de verdade, saudável, colhida nos pomares de vocês. Vejam quantos sonhos eu continuo a sonhar! Na carta que me escreverão, me falem os sonhos de vocês!

9Infelizmente, há 24 anos atrás, no dia 02 de maio de 1997, com apenas 74 anos, o meu coração se cansou, me deu um grande susto. De imediato buscamos um médico, mas não deu tempo. Depois de alguns dias hospitalizado, ele deixou de bater, parou de vez no meu peito. Desde aquele instante, abri mão de aprender a nadar, andar de bicicleta e aprender a dançar - um aprendizado que ainda me faltava. Naquele instante, não pude mais tomar meu banho, vestir meu corpo, calçar minhas sandálias e sentar-me à mesa para escrever, tomando o meu café. Não pude mais pensar com minha cabeça, ver meus filhos e netos. Mesmo com o corpo imóvel, ainda com um fio de lucidez, senti remorso de ter fumado por tantos anos, até assustar minha família de tanto tossir em uma noite que já passou. Ainda deu tempo e lembrei-me de uma Carta Pedagógica deixada inacabada sobre a mesa de minha casa no dia em que meu coração me deu o primeiro susto. Será proposital? Quem a continuaria? Os Sem Terrinha poderiam continuá-la, com seu vocabulário próprio, pensei! Vocês aceitam?

10Assim, fui chamado para outra dimensão, pouco compreendida pelos humanos desta vida. Agora eu estou num outro lugar. Pode ser longe, mas ao mesmo tempo, perto de vocês. José Martí, aquele ser humano, educador e poeta cubano, que o encontrei neste lugar onde me encontro, uma vez me sobrou no ouvido: Paulo, você morreu para ver melhor. Comigo aconteceu o mesmo. Estou vendo tudo, e bem melhor, nem uso óculos, mais.

11Ouvindo isso dele bem baixinho me deu uma alegria danada. Daquele momento em diante, não fiquei mais triste e acabrunhado, passei a enxergar vocês do jeito que me falou: sem óculos. É possível que vocês não entendam agora o que vos conto nesta singela carta. De outro lugar, com os olhos mais abertos, sem dor e com o coração palpitando por tudo o que vocês fazem, eu vejo vocês: nas brincadeiras, no trabalho com os animais, nas lidas ao redor da casa, fazendo os temas da escola. Vejo vocês no transporte escolar, entusiasmados para chegar à escola e encontrar os colegas e abraçar os educadores. Vejo vocês chegando às gargalhadas, com os olhos brilhando, na escola Paulo Freire, na escola Nova Sociedade, na Escola Roseli Nunes, Escola Che Guevara, Escola Oziel Alves, Escola Crescendo na Prática, entre tantas escolas do campo conquistadas nos 24 estados do Brasil, onde o MST ficou a sua bandeira vermelha. Em muitas destas escolas vejo cartazes com a minha fotografia. E nas bibliotecas, livros que escrevi ao longo de meus 74 anos. Desde muito menino, sempre gostei de ler e escrever. Não perdia oportunidade e anotava todas as ideias que vinham a minha cabeça. Eu era bem observador, falava pouco, olhava com interesse para as coisas, e meus ouvidos eram atentos às palavras das pessoas. A paciência e a amorosidade eu as cultivei desde pequeno.

12Falando em ler e escrever, tomo a liberdade de perguntar: Vocês já leram A História do Menino que Lia o Mundo? Quem o escreveu é um camarada, amigo de longas datas. Seu nome é Carlos Rodrigues Brandão. O conheci em vida e trocamos muitas ideias. Ele costuma contar causos, falar do que eu falava, do que eu vivia, das coisas que eu denunciava e das coisas que eu anunciava. Ele gosta de estudar, e neste meu centenário tem participado de muitas Live, sempre contente, alimentado pela esperança. Ele admira os Sem Terra, inspira confiança e bota fé nas pessoas. Gosta muita da vida, assim como eu gostava. É um ser humano formidável. O menino que lia o mundo sou eu. Se quiserem conhecer e encontrar o Paulo menino, é lá que irão encontrar-me.

13Sim, vejam que minha carta não era para ter tantas linhas. Mas não tem problema. Esse escrito é para ser uma conversa entre amigos, franca e aberta. É uma carta para vocês Sem Terrinhas do MST, escrita com minhas mãos, selada com saudades e gratidão por vocês existiram. Temos que nos conhecer melhor. Vamos nos escrever cartas.

14Como vos contei acima, eu estou aqui num outro lugar, de onde eu posso ver vocês. Acompanho a organização dos Sem Terrinha em nível nacional, estadual e regional. Estive invisivelmente no Encontro de vocês lá em Brasília no ano de 2018. Quanta coisa bonita eu vi lá. Era tarde da noite e vocês não queriam dormir. Quanto aprendizado foi construído naquele encontro. Soube que deram muito trabalho aos educadores e pais que os acompanhavam. Nos ônibus fizeram muitas brincadeiras, cantaram, partilharam os alimentos, se divertiram bastante. Vocês são formidáveis, lutadores. Quantas crianças gostariam de estar no lugar de vocês!

15Ainda nesta carta, tenho recomendações a vos fazer e espero que aceitem de coração: O exemplo dos pais de vocês precisa ser seguido. Fico comovido ao ver o MST plantando árvores, recuperando o meio ambiente. Quando vejo o MST levar alimentos e livros para quem tem fome durante a pandemia, me dá vontade de estar junto. E quando estão plantando hortas orgânicas, tenho vontade de sentar-me à mesa e provar aquelas delícias. Hoje, a condição de vocês é muito mais favorável, mas também terão muitos problemas a enfrentar, para os quais terão que estudar e se preparar bem. Vejam o que está ocorrendo com a Amazônia: roubo de madeiras, queimadas, morte dos animais selvagens, invasão às terras indígenas.

16Eu sei que os avós e pais de vocês lutaram, marcharam e sofreram muito. Viveram dias difíceis, viram companheiros assassinados, e tiveram que enterrar seus corpos, chorando. Com seus olhos, viram acampamentos serem destruídos, Escolas Itinerantes serem queimadas e a merenda escolar ser jogada aos cães, pela repressão do Estado. Eles nunca baixaram a cabeça. Em nenhum momento os encontrei acabrunhados. O despontar e o pôr do sol os pegaram em muitas jornadas na luta pela terra e pela escola que vocês têm hoje. Nas madrugadas foram guardiões dos acampamentos, deixando vocês dormir o sono da infância, sem serem perturbadas. Cedo, vocês acordaram, passaram uma água nos olhos e foram para a escola, e eles permaneceram em silêncio, sem demonstração alguma de que haviam passado a noite guardando a segurança dos companheiros.

17Nesta singela carta, quero vos lembrar que os pais e avós de vocês vem lutando desde a Encruzilhada Natalino, na década de 1980. Lá eles estiveram acampados, sofreram forte repressão dos Coronel Curió, um homem muito maldoso, cheio de ódio no coração, um opressor de primeira linha. A força e a coragem deles o expulsaram de lá, derrotado, sem conseguir iludir as crianças com doces, e convencer as famílias a abandonar aquela região, apostando nas mentiras de uma vida abundante em terras distantes, na Amazônia. Eles resistiram, lutaram, foram assentados, encontraram-se homens e mulheres, e vocês nasceram deste encontro. Por isso a identidade Sem Terrinha. Uma identidade da qual temos orgulho e precisa ser cultivada, bem regada.

18Naquela época, eu ainda estava com saúde, alguns pais de vocês me descobriram através de dois livros: Comunicação ou Extensão e Pedagogia do Oprimido. Debaixo de lonas pretas eles começaram a ler o que eu havia escrito longe do Brasil, porque a ditadura militar não aceitou as minhas ideias de alfabetizar as pessoas para que compreendessem o seu mundo, buscando libertar-se do opressor. Soube também que na mudança do acampamento para outra área em Nova Ronda Alta, foi organizada uma escola, porque havia muitas crianças e adultos para serem alfabetizados. E certa vez me convidaram para ir até lá. Eu fiquei entusiasmado com aquele convite, mas não podendo ir pessoalmente, sugeri que fosse a um casal de educadores que trabalhavam comigo, para conversar com as professoras da primeira escola de acampamento/assentamento do MST. Desde aquele momento as palavras: terra, barraco, fome, luta, repressão e resistência uniram a Pedagogia do Movimento à Pedagogia do Oprimido. Foi assim que vocês me conheceram e eu conheci o trabalho de vocês. Portanto, somos velhos e bons amigos, já faz tempo!

19Mais tarde, em 1991, recebi outro convite. Desta vez não resisti, sem pensar duas vezes, antecipei que iria. E logo fui pensando: Quero encontrar os Sem Terra onde estiverem, porque encontrá-los será um reencontro com os camponeses de Angicos e do Continente Africano, pelos quais guardo boas lembranças e saudades.

20Animado e pensando nos Sem Terra, na companhia de Nita, minha mulher, no dia 24 de maio deste ano, embarquei num voo para Porto Alegre. No aeroporto fui bem recebido, por gente simpática, divertida e bem informada. Viajamos até Pelotas onde pernoitamos. No dia 25, início da manhã, rumamos para Hulha Negra, em um território de assentamentos do MST. O motorista Severiano bem humorado, junto com Frei Sérgio, foram contanto causos até lá, nos fazendo rir muito, a mim, a Nita e a Ester Grossi, secretária de Educação do PT de Porto Alegre. Nos contaram que na região havia muitos assentamentos da Reforma Agrária e produção farta de alimentos, mas que os rigorosos invernos, passados nos acampamentos, ainda lhes doíam nos ossos. Sem a intenção de nos entristecer, nos contaram que alguns companheiros/as haviam sido assassinados, lutando, e seus restos mortais estavam enterrados perto dali. Se me lembro bem, citaram o nome de Joceli Correa e Roseli Correia da Silva. Vocês já ouviram falar deles? Se não me falha a memória há escolas de assentamentos que levam o seu nome. Vocês podem verificar isso para mim?

21Mas como naquela madrugada havia chovido muito, Nita e eu, desconfiávamos de que as condições das estradas não seriam das melhores. Na bem verdade, não foi fácil chegar onde estavam os jovens adultos alfabetizadores, que ansiosamente e ardentemente eu desejava encontrá-los e ouvi-los. Sem arrependimento e nenhum temor, enfrentaríamos qualquer situação para encontrar quem estava escrevendo a sua pedagogia, porque havia estudado o Pedagogia do Oprimido. As péssimas estradas, a lama, o carro pouco confortável, a coluna que doía ao ver o trator puxando o carro atolado na lama, nada nos moveu do desejo de chegar ao encontro dos que estavam escrevendo a sua história, ligada por um fio de esperança, àquela história que eu escrevia em 1964, preso e exilado por conta dela. Tudo valeu a pena.

22Meus queridos amigos sem terrinhas, essa carta está ficando longa, espero não os aborrecer. Mas aquele encontro foi maravilhoso, marcou minha vida com a cor vermelha da bandeira dos Sem Terra. Foi um dia em que nem fome e sede eu senti. A lama não sujou minhas sandálias. As minhas costas pararam de doer de tanto ficar sentando naquele carro pouco confortável. O tempo passou como o vento passa em dia de tempestade. Naquele dia vi com meus próprios olhos, um sonho ser realizado. A um fôlego eu estava no hotel em Pelotas para descansar, e no outro dia, no avião para retornar a São Paulo. A minha cabeça ficou pequena para guardar todas as imagens, os rostos, os sorrisos, as palavras, os sentidos, a terra, as flores, a lama, os livros, os bonés e as bandeiras, o calor das mãos e os abraços na chegada e na despedia.

23A mística de recepção foi emocionante. As bandeiras do MST se moviam rapidamente se entrelaçando uma com a outra, levadas pelo vento do lado de fora do salão onde se encontravam os jovens alfabetizadores a nos recepcionar. Palavras de Ordem eram pronunciadas com ênfase, em voz alta. Cantaram o hino do Movimento com o braço em punho. Vi livros abertos espalhados pelo chão, uma mesa com flores. Jovens com os olhos brilhando. Uma máquina fotográfica era levada de um lado para o outro para registrar aquele dia. Vocês já devem ter visto alguma fotografia tirada naquela ocasião que marcou profundamente a minha vida. Nestas fotografias talvez encontrem o pai, a mãe de vocês, que lá estiveram se preparando para alfabetizar outros companheiros. Façam algumas perguntas para eles sobre o encontro entre esse que vos escreve e o MST. Tenho certeza que eles guardaram na lembrança o abraço, o aperto de mão que nos damos na chegada e na despedida. Ainda lembro, eram todos jovens, entusiasmados e cheios de vida. Esse fato, o único encontro que ocorreu entre mim e o MST não sairá mais de mim, nem de vocês. Sei que o Movimento prima pela sua história e memória. E é também guardião da história e memória de um menino que lia o mundo, determinado ao inconformismo com a opressão.

24 Vejam, se passaram 31 anos deste fato. Em minha memória guardo o desejo profundo, revelado pelo Movimento, ainda jovem na experiência de organização: alfabetizar o mundo, ver as pessoas nos assentamentos e acampamentos sabendo ler e escrever, fazer contas, entender da conjuntura, continuar estudando. Eu fiquei muito entusiasmado com o que ouvi e vi naquele dia. Eles todos de cabeça erguida, alegres, bem vestidos e entusiasmados. As palavras dos educadores/alfabetizadores Lucas e Benedito, me comoveram e molharam meus olhos, fazendo-me tirar o lenço do bolso e levemente passá-lo no rosto. Tentei não demostrar minha emoção, porque em seguida me passariam a palavra, e deveria ocupar-me de lhes dizer alguma coisa. Escutei-os com tanto interesse, sem dar tempo de pensar o que lhes diria. Para mim, o mais importante era ouvi-los, entender a sua linguagem, e de como estavam escrevendo ali a sua pedagogia. Nita percebeu minha emoção, e depois comentamos várias vezes sobre aquela experiência, tão emocionante.

25Sim, eu continuo a ver as práticas concretas dos Sem Terra no mundo. Vejo as cruzes dos jovens assassinados há 25 anos na Curva do “S”, no Pará. Vejo a Escola Crescendo na Prática naquela região tão violenta, acolhendo centenas de crianças e jovens, colocando na prática a Pedagogia do Movimento. Vejo a solidariedade que se transformou na pedagogia da solidariedade para com quem tem fome. Vejo as brigadas de alfabetização organizadas em vários estados, dispostas a fazer o que Cuba fez em 1961, e que eu desejava fazer no Brasil logo em seguida. Vejo vocês atrás das telinhas ouvindo, estudando e pensando com recriar e reinventar o legado deste amigo de vocês. Vejo que a pandemia assustou a todos nós, que ceifou a vida de mais de cem militantes Sem Terra. É possível que em algum momento os encontre por aqui. Se estiverem com o boné vermelho em sua cabeça, não será difícil encontrá-los. Também vejo vocês lendo o que escrevi e outras literaturas. Consigo de longe, ver vocês escrevendo os seus livros, registrando a história bonita e revolucionária que vem sendo construída há 37 anos pela luta dos Sem Terra do MST.

26Com um abraço saudoso.