Carta pedagógica às Freireanas e aos Freireanos que insistem em se manter vivos

Márcia Terra Ferreira

p. 120-122


Texte intégral

Provocada por Liana Borges, resolvi compartilhar essa história

1Em 1995, eu era uma professora de 36 anos com 17 anos de trabalho, lecionava a disciplina de Geografia, nas Totalidades Finais no SEJA (Serviço de Educação de Jovens e Adultos), da rede municipal de ensino na cidade de Porto Alegre, há seis anos. Nessa época, estavam à frente da coordenação do SEJA as colegas Liana Borges e Odete Bresolin. Nosso planejamento construído coletivamente nas inúmeras reuniões de formação anunciava intensas atividades. Aquele seria o ano em que o Mestre Paulo Freire estaria conosco. Decidimos então estudar suas obras com todos os alunos e professores da Educação de Jovens e Adultos, que lindo! Nosso entusiasmo era muito grande e eu vi ali uma grande oportunidade de refletir sobre minha docência e entender um pouco mais sobre a obra de Freire.

2Pois bem, chegamos ao final daquele ano, nos primeiros dias de dezembro, e aguardávamos a chegada de Freire e sua esposa, professora Nita. Viveríamos o grande momento em que as turmas iriam expor os trabalhos desenvolvidos no decorrer daquele ano e ainda assistiriam à aula magna do Mestre. Dois dias antes, no entanto, a equipe de coordenação, junto ao secretário da época, ofereceria um jantar aos convidados e fui surpreendida com um recado de que deveria comparecer. Fiquei eufórica, é claro, com a possibilidade de estar diante de um dos maiores pensadores mundiais da educação, ouví-lo tão de perto seria uma honra.

3Eis que no meio do jantar a colega Liana pediu a palavra e solicitou ao professor Freire que a ajudasse a resolver um problema que a coordenação do SEJA tinha até aquele momento.

Havia uma professora que já havia sido convidada mais de uma vez para compor a equipe de coordenação e sempre declinava o convite e assim, esperavam nas suas palavras, o convencimento desejado.

4Confesso, fui tomada de surpresa e ao mesmo tempo emoção, pois sabia que ela estava se referindo a mim. Foi então que ele olhando muito firmemente perguntou o porquê da minha negativa ao convite recebido. Eu prontamente lhe disse que a experiência docente que até então eu experimentara era tão intensa, com retornos tão exitosos, que me fazia crer ser aquele o melhor lugar de contribuição para o momento. Paulo ouviu atentamente e, em seguida, lançou um questionamento a todos os presentes naquele encontro tão importante, e com sabor de uma aula à sombra desta mangueira. Dissera ele: Quem e o quê determina que nossa contribuição é mais ou menos importante? A experiência dos saberes feitos tem hierarquia? As nossas aprendizagens têm um melhor lugar para ocorrerem em detrimento de outras? Qual é o medo em assumirmos os espaços de gestão? Anunciando as suas preocupações em também assumi-las quando estive à frente da direção da Secretaria da Educação de São Paulo (1989- 1991), no Governo Luiza Erundina.

5Naquele momento a colega Odete comentou que eu nem poderia alegar desconhecimento técnico, visto que além de ser especialista em administração escolar já havia sido diretora de escola e isso seria uma enriquecedora contribuição à experiência da coordenação. Paulo Freire nos dizia então que a escola pública e popular precisa do sucesso em várias dimensões: na organização política das classes populares, na formação metodológica dos educadores, no espaço de ensino-aprendizagem como um centro de debates de ideias, soluções, reflexões, onde a estrutura organizacional popular vai sistematizando sua própria experiência, e acima de tudo, democratizando o poder pedagógico e educativo para todos os sujeitos estudantes, funcionários, professores, técnicos educativos, famílias. Reconhecendo, ainda, a possibilidade de haver contradições e tensões e a necessidade de educadores dispostos a experimentar na administração/gestão da educação uma perspectiva democrática na política pedagógica, marcas tão importantes nas Administrações Populares, municipais e estaduais aqui no Brasil.

6Diante dessa aula que já dava início ao maravilhoso trabalho atento e importante que Paulo Freire viera ter conosco, me restava aceitar, sim, o convite e compor a equipe de coordenação do Serviço de Educação de Jovens e Adultos na Secretaria de Municipal de Educação de Porto Alegre SEJA-SMED/POA (1997-1999) e com igual competência na Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul SEDUC-RS (2000-2003). Segui lecionando, atuando na equipe de coordenação e percebi que o meu lugar era a formação de professores, atividade que desenvolvi por mais de 25 anos.

7Essa passagem, com certeza, mudou os rumos teórico-práticos da minha vida. E hoje, como professora, aposentada há 43 anos, ainda continuo ouvindo as aulas de Paulo Freire com seu sotaque nordestino tão emblemático e comovente.

8Agora, me encontro encharcada na vida e na luta pedagógica dentro do Movimento em Rede, chamado Café com Paulo Freire. Onde educadoras e educadores como eu discutem, (re) leem, (re) escrevem e (re) inventam Freire. E, isso nos serve de ferramentas metodológicas para enfrentar tristes tempos de pandemia/pandemônio, onde nossas incertezas utópicas são negadas e colocadas em xeque a cada dia.

9Mas me provocam a refletir sobre olhar com amorosidade àqueles e àquelas que pensam diferente de mim, de viver com a minha justa raiva frente aos desmontes que vejo na cultura, na educação, na natureza, na fome, nos preconceitos, na aversão ao diverso e diferente, na dominação implacável à liberdade em ação, à libertação em defender a ética em todas as relações com diálogo, ao respeito e à curiosidade de ouvir e aprender com as outras pessoas.

10O jeito é continuar te ouvindo Paulo mesmo quando tua fala parece soar tão baixinho aos meus ouvidos, porque o barulho lá fora pretende (sem sucesso) nos calar.

Bibliographie

Referências

Freire, P. (1995). À Sombra desta Mangueira. 2ª ed. Olho d’água. São Paulo. Freire, P. (1999). A Educação na Cidade. 3ª ed. Cortez. São Paulo.


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