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Renegociar a Centralidade do Estado em Moçambique

 | 
Egídio Guambe

Introdução

Texte intégral

“O aparelho do Estado não conseguiu ser instrumento para realização integral das decisões do partido. O aparelho do Estado não conseguiu ser instrumento eficaz de exercício do poder do povo. Quer dizer não está devidamente estruturado, nem organizado para assumir o seu papel histórico [...]. Em resumo, o aparelho do Estado não está em condições de dirigir integralmente o combate contra o subdesenvolvimento. Ele transporta ainda uma carga impura” (Samora Machel, «Escangalhar as estruturas de Estado colonial», Tempo, n.° 488, Maputo, 17 de Fevereiro de 1980: 13).

“O município é o Estado Local que se associa com as populações para juntos pensar os problemas e procurar as soluções […]. O Estado se faz presente a partir dele. É pelo município que o Governo participa na vida das pessoas, nas suas actividades. Ele se associa mesmo com o camponês, com o guarda [...]. Sinto que o município entrou nas casas, ele tem contacto com os problemas. O Governo do distrito via somente de longe, mas o município, é a emanação do quarteirão e está em conexão directa com os problemas” (Mobiro Namiva, antigo presidente do município da vila de Mueda, entrevista, 22 de Abril de 2015).

1Estes excertos têm relação com diversos pontos discutidos neste trabalho. O primeiro faz parte de um discurso do primeiro Presidente de Moçambique independente, Samora Machel, pronunciado durante um Conselho de Ministros em 1980, isto é cinco anos depois da independência. No fundo a sua observação decorria da preocupação em considerar a administração como uma ferramenta de gestão da sociedade. A segunda citação provém de uma entrevista com o presidente do Município de Mueda Mobiro Namiva em 2015 (2008-2013). Sublinhava-se o papel do município como dispositivo concreto da presença do Estado na vida quotidiana das populações. Os dois excertos põem em relevo as dinâmicas de interacção e de construção reflexiva, entre Estado e sociedade, pela via administrativa. Contudo, é necessário considerar que entre os dois discursos existe um intervalo de trinta e cinco anos. O do Presidente Samora Machel foi pronunciado num contexto de construção do Estado, com o objectivo de fazer dele o único centro dominador e integrador da sociedade, numa lógica de modernização autoritária. A administração, instrumento da realização desta visão, era concebida como a ponta de lança que deveria assegurar a base da expansão da autoridade e da dominação sobre o conjunto do território, materializando assim a existência do projecto estatal. Este discurso do Presidente Samora Machel traduzia a preocupação de que esta missão atribuída à administração não estivesse aparentemente a concretizar-se de forma satisfatória.

2Em contrapartida o discurso do antigo presidente do Município de Mueda, Mobiro Namiva foi pronunciado depois de uma série de mudanças político-administrativas, nomeadamente as ligadas à reforma descentralizadora que preconizava autonomia a nível local. Com efeito as administrações municipais oriundas desta reforma datam de 1998, depois da aprovação da lei n.° 2 de 1997, que as definia como instâncias político-administrativas autónomas (autarquias). O discurso enquadra-se no novo contexto de articulação entre as autoridades públicas e os outros actores e de importantes alterações na gestão pública. O discurso do antigo presidente do município traduzia a visão de um Estado que passava a negociar ao nível do quotidiano dos cidadãos um «Estado que se senta com as populações», portanto mais aberto ao seu ambiente.

3Seria inútil procurar uma relação estreita entre os dois discursos. A sua distância no tempo dá, com efeito, lugar a uma forte evolução do papel atribuído à administração na gestão da sociedade. Contudo, permitem-nos uma dupla leitura dos processos de reforma da administração. Por um lado, existe a reforma vista como busca incessante de uma governamentalidade (Foucault 2008) da sociedade. É a preocupação de um Partido-Estado a que o Presidente Samora Machel refere no seu discurso. Por outro lado, existe a reforma no quotidiano das administrações, isto é na interface com os cidadãos comuns no dia-a-dia, articulação entre o Estado e a população por intermédio da administração municipal. Era a isso que o antigo presidente do município se referia. Nesse sentido tanto a intervenção do Presidente Samora Machel como a do presidente do município Mobiro Namiva, mostram as transformações operadas na relação entre Estado e sociedade via administração.

4A reforma da administração concretamente é um dispositivo tendo em vista a (re)organização, por arranjos ou ajustamentos, das relações entre o poder público e a sociedade. Assim, estudar estas reformas no seu funcionamento concreto não tem por único objectivo compreender as preocupações com a gestão da sociedade por parte do Estado, mas medir igualmente os efeitos produzidos nos destinatários e as finalidades da gestão.

5Este livro – oriundo de uma tese de doutoramento em ciências políticas defendida na Universidade de Bordéus a 16 de Novembro de 2016, sob a orientação de Michel Cahen – partindo da reforma descentralizadora, nomeadamente das práticas administrativas de funcionamento de três municípios – cidade da Beira e vilas de Mueda e Quissico procura compreender a materialidade do Estado, o seu modo de agir e os efeitos que produz sobre o destinatário final das suas acções, o cidadão. Este é também um «produtor do Estado» pela sua capacidade de agenciamento das propostas de reforma. O livro tem menos interesse na descentralização em si mesma do que na sua significação governamental. Importa por isso menos descrever e definir essa descentralização do que esboçar uma problemática a partir das acções que desencadeia e de compreender como se enraíza no quotidiano, lá onde está a ser executada. Tudo o que participa na transformação da forma de governar/governance, das modalidades de regulação e da recomposição do Estado. A reforma da administração (também chamada reforma do Estado) é aqui efectivamente considerada como uma negociação da recomposição (e não da centralização) do Estado no sentido em que é realizada por uma intermediação articulada com quem é suposto ser o benificiário, isto é o cidadão. A entrada pelas práticas de funcionamento dos municípios permite conceber o Estado não apenas como entidade de dominação, na sua abstracção oficial, mas também como produto de interacções quotidianas com os cidadãos, por parte da administração.

1. Estado e sociedade na sucessão de reformas administrativas em Moçambique

6Após a independência, a administração moçambicana, à semelhança de outras administrações africanas tem desenvolvido um conjunto de reformas. Estas não só são diferentes e sobrepostas mas por vezes mesmo contraditórias entre si, indo, no que respeita às relações com os administrados, do fechamento à abertura. Também têm tido diversas significações políticas, tais como construção do Estado, modernização, desregulação, racionalização e desenvolvimento institucional. Portadoras de uma diversidade de quadros subjacentes, são de certeza responsáveis pelas mutações nas modalidades de acção e regulação do Estado, assim como pela reactividade relativamente à representação e comportamento da sociedade (administrados/utentes/cidadãos).

7A Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) que dirigiu a luta de libertação anti-colonial de Moçambique e se tornou partido-Estado de orientação marxista-leninista em 1977, aquando do seu terceiro congresso, empenhou-se desde a independência em reformar a administração colonial. Com um discurso de ruptura relativamente tanto às formas de acção coloniais como das tradicionais, a reforma visava conduzir a sociedade para uma organização do Estado moderno. Assim a administração era concebida como uma ferramenta do partido para transformar a sociedade à imagem do Estado.

8Sob a direcção do partido-Estado Frelimo, a administração, com uma organização estritamente burocrática, caracterizava-se pela rigidez e unilateralismo nas relações com os administrados. Ancorada num modelo fechado, simples dispositivo de realização do «interesse geral», as acções unilaterais com a sociedade pretendiam-se irreversíveis. Na prática e mesmo constitucionalmente, a administração estava concebida como a instrumento de transmissão das orientações do partido-Estado. Eram todas definidas de acordo com o modelo do centralismo democrático pós-leninista, isto é, decididas no topo do partido Frelimo, pelo bureau político (Cahen 1985). Estas orientações eram, de seguida, impostas à administração e a seguir aos administrados, como dogmas incontestáveis. A administração estava submetida a uma estrita obediência de execução e os administrados a uma estrita submissão. Estas orientações correspondiam a uma concepção autoritária, sem qualquer possibilidade de discussão com a administração ou com os administrados.

9As margens para adaptações contextuais ficavam muito reduzidas e aceleravam a degradação da organização. O partido-Estado não conseguia fazer aplicar correctamente as suas orientações pela administração. Com efeito, esta estava minada por dificuldades de todo o tipo. Por exemplo, findo o colonialismo muitos funcionários tinham saído ao mesmo tempo que os colonos, os recursos financeiros eram muito reduzidos, etc. Além disso, tendo-se a administração tornado pouco sensível às influências da sociedade, devido ao seu fechamento top down, sem qualquer margem de manobra, os disfuncionamentos eram aí cada vez mais numerosos e o seu poder unilateral menos efectivo para realizar os objectivos impostos. E isto provocava reacções inesperadas.

10As reacções, quer da administração relativamente às ordens do partido-Estado, quer dos administrados face aos actos unilaterais da administração, foram das mais diversas: adesão, desconfiança, medo, hostilidade, revolta. Variavam de acordo com o serviço a que diziam respeito, a categoria social dos indivíduos, a localização geográfica ou a natureza da intervenção administrativa. Uma destas reacções relacionou-se com a criação das aldeias comunais. Tratava-se de uma forma de urbanização das zonas rurais. Em larga medida esta política foi rejeitada pelas populações. Mas os comportamentos e os resultados variaram de acordo com a especificidade e história dos espaços em que era executada. Em determinadas partes da região centro e norte do país a implementação desta política criou condições de acomodação do movimento rebelde Renamo (Resistência Nacional de Moçambique) fomentado pelos regimes minoritários dos países vizinhos Rodésia e África do Sul. Posteriormente, ganhou terreno nas dinâmicas locais, a ponto de se ter transformado em guerra civil (Geffray 1990). No entanto, no sul do país, nomeadamente em Gaza, a mesma política foi relativamente bem aceite, beneficiando de um contexto específico: a aceitação das medidas tomadas pelo Estado como resposta às cheias ou relações mais estreitas com as elites dirigentes da Frelimo, partido-Estado reformador em função da comunidade étnica (O’Laughlin 1992; Roesh 1992).

11Todavia pode dizer-se que, desde o início dos anos 1980, o modelo de reforma pela modernização autoritária, que atingira uma situação de bloqueamento, se ia modificando lentamente, embora o quadro subjacente se sobrepusesse aos novos quadros emergentes. De resto, os escalões centrais do partido-Estado Frelimo mantiveram-se intocáveis aquando das reformas seguintes, convencidos que incarnavam a integração encarregada de produzir o imaginário social e nacional. Contudo, o dispositivo de acção que era a administração continuava a ser percebido como negativo como se pode constatar pelo discurso do presidente Samora Machel supra citado. E foi contra esta administração que se ergueram as críticas e o descontentamento na construção da relação Estado-sociedade. Isto conduziu a que no IV Congresso da Frelimo em 1983, se tivesse aprovado a adesão às instituições financeiras internacionais, FMI e Banco Mundial (efectivada em 1984) e o plano de ajustamento estrutural (efectivado em 1987). O dogma unitário do interesse geral da administração foi completamente derrotado pela emergência de novas orientações de reforma administrativa, primeiro económica e depois política.

12Deste modo, desde 1987, com os programas de ajustamento estrutural a serem postos em prática, assistiu-se a um deslizamento ideológico da acção administrativa, o que modificou consideravelmente o papel da administração face aos administrados e consequentemente o seu papel como incarnação do Estado. A orientação no sentido das «reformas neoliberais» foi na altura apoiada pelas instituições de Bretton Woods. Foi o caso da privatização e dos processos de downsizing (redução do número de funcionários), que produziram a banalização da administração. A partir de então, esta deixava de ser uma entidade distinta, encarregada de satisfazer o interesse geral. Tendia a perder a sua centralidade e a diluir-se nas relações com os actores do terceiro sector e privados emergentes. In fine, os seus actos administrativos tenderam a deixarem de se exprimir como unilaterais. Resumindo tratou-se de pôr em causa um poder administrativo unilateral, modelo clássico da organização burocrática da administração e que se pretendia que fosse a ponta de lança da modernização da sociedade a seguir à independência.

13Acresce que a prestação de serviços deixou de estar centrada na administração. Reestruturou-se tendo como base o modelo Nova gestão pública (New public management – NPM), a saber, grosso modo, a aplicação dos métodos de gestão privada na administração pública (Hood 1995). Como consequência desta orientação, a administração devia autonomizar os diferentes serviços, com descentralização e privatização. Efectivamente em 1990 foi promulgada uma nova Constituição que agrupava um conjunto de reformas administrativas que iam ao encontro das perspectivas neoliberais de «Estado mínimo» (roll back the state) (Alden 2001).

14Estas mutações na própria concepção do Estado andaram a par com a redefinição, na prática, das relações administração-administrados. A rigidez unilateral e irreversível do modelo de planificação centralizada, no pós-colonial era cada vez mais mal suportada pela sociedade. A abertura ao multipartidarismo formalizada pela Constituição de 1990, com consequência nas primeiras eleições gerais em 1994, veio demonstrar de forma manifesta essa contestação do modelo de modernização unilateral. Por exemplo, nas zonas rurais, a Renamo, partido saído do antigo movimento rebelde, obteve 41% contra 40% da Frelimo, que era contudo o «partido de vanguarda» que havia conduzido as reformas de «modernização» (Pereira 2008).

15Por outro lado, até então os ajustamentos nas reformas não tinham conduzido à real emergência de um novo modelo das relações administração-público. O partido-Estado Frelimo tinha conseguido situar-se acima das críticas da modernização unilateral, desresponsabilizando-se e atribuindo os problemas apenas à administração. A elite desta Frelimo tinha também conseguido colocar-se na vanguarda da privatização, assumindo o controlo das novas empresas. Isto produzia um sentimento de êxito, que se limitava no entanto a um êxito no «topo» (Pitcher 2002). Resumindo: em termos práticos, a emergência de um modelo radicalmente novo não era evidente. A elite da Frelimo continuava a acreditar que conduzia, de cima, as reformas da administração.

16As eleições de 1994 possibilitaram um primeiro olhar sobre a reacção dos administrados, a partir daí eleitores e clientes da administração. Na sequência da constatação do poder da oposição, certas reformas de inspiração NPM, iniciadas antes das eleições de 1994 foram mesmo retardadas. Foi o caso da reforma descentralizadora que visava a criação de municípios em todos os distritos. A lei n.° 3 de 1993, aprovando a execução desta política foi anulada. O processo foi portanto retardado nomeadamente pela Lei n.° 2 de Fevereiro de 1997 que redefinia o processo de criação dos municípios como gradual e já não sistemático para todos os distritos. Salvaguardava assim o princípio «The winner takes all», diminuindo fortemente as possibilidades de institucionalização da oposição.

  • 1  Trata-se do clássico debate sobre a separação entre administração pública e administração privada, (...)

17Estes desafios continham em si o desenvolvimento de uma outra visão da administração na sua relação com os administrados. A concepção central do NPM era a de gerir a administração pública como business1 e o utente como cliente. A relação entre administração e administrados era definida pelo grau de satisfação dos segundos relativamente aos serviços fornecidos pela primeira. Salvo que a administração moçambicana, como acontece com outros países africanos, não possuía as capacidades necessárias para tal concepção, tanto mais que tinha limitação de recursos nomeadamente humanos, transferidos para o sector privado. Nesse sentido o fracasso parcial das reformas do NPM foi rapidamente evidente, pelo menos do lado da administração, enquanto prestadora de serviços.

18Nos finais dos anos 1990 e sobretudo princípio dos anos 2000, emergiu ao nível mundial uma outra vaga de reformas ligadas ao desenvolvimento institucional do Estado. Em termos teóricos o acento era em geral posto sobre o reforço do Estado na regulação da acção colectiva. Mas desta vez, diferentemente do modelo de modernização unilateral ou do NPM, tratava-se sobretudo de integrar na administração os mecanismos de concertação com os administrados. A opacidade da administração passava a ser corrigida por mecanismos de participação e de transparência da gestão pública. O novo paradigma era o da nova governança publique (NGP) (Osborne 2010a). A relação entre administração e o meio pretendia-se doravante mais aberta e negociada. O Estado já não era «entidade suprema», mas actor num dos círculos da acção pública. Devia contar com os outros. O administrado já não era um simples utente ou cliente, mas um actor que devia colaborar com a acção pública (OECD 2001). A acção administrativa a partir daí era negociada. Exercia-se menos em termos de autoridade que de influência e de consenso (Pestoff et al. 2011).

19Em Moçambique, este novo paradigma foi acompanhado pela aprovação do documento Estratégia Global da Reforma do Sector Público – EGRSP-2001-2011 (Comissão Interministerial da Reforma do Sector Público 2001), que tentava sintetizar a nova visão da acção administrativa. Posteriormente este novo processo foi institucionalizado por uma reforma constitucional que culminou com a aprovação de uma nova Constituição da República em 2004. No entanto a vontade de associar o público ao funcionamento da administração não implicou o abandono da ideologia do interesse geral expresso pelo partido no poder, a Frelimo, mas a sua reformulação. A partir daí o papel do Estado era menos o de impor o bem comum ao conjunto da sociedade do que obter consensos com a concertação entre a administração e o seu meio (cidadãos, utentes privados, ONG, etc.).

20As acções dos administrados, de outros colaboradores da administração, tornam-se dispositivos essenciais da difusão e legitimação do Estado. Bastava procurá-las encorajá-las, desenvolvê-las e estabilizá-las. Em resumo, a centralidade do Estado, na procura do interesse público, tornou-se um desafio quotidiano de negociação. Já não era um dado adquirido em termos autoritários.

21É neste contexto que é estudado o funcionamento das administrações municipais da cidade da Beira e as vilas de Mueda e de Quissico. A criação e funcionamento destes municípios são indissociáveis da estratégia de sedução e de manipulação do comportamento dos cidadãos a fim de reforçar a empresa de gestão da sociedade, o Estado. Este livro mostrará que as práticas administrativas dos municípios são uma síntese de osmose e de imbricação entre Estado e sociedade.

22Não existem estudos suficientes sobre as reformas administrativas africanas e ainda menos sobre as moçambicanas. Acresce que, em vários deles, o Estado é estudado sob o ângulo do poder e das relações de força (Bayart 2006; Chabal & Daloz 1999; Darbon 1990; Médard 1992; etc.). O estudo a partir das dinâmicas das reformas da administração mostra que o Estado se tornou repartido, a sua força só se exerce com arranjos de circunstância, por recuperação das acções dos seus parceiros, com negociações permanentes.

23Mais modestamente, este estudo a partir da administração pode, pois, contribuir para apreender o Estado nas e pelas suas «migalhas repartidas» e em reconstituição. Contribui também para os debates sobre o Estado e as suas administrações, onde a antropologia da administração se resume, grosso modo, às descrições quotidianas das suas actividades (Bierschenk & Olivier de Sardan 1998, 2014; Blundo & Sardan 2007; Herdt & Olivier de Sardan 2015). Infelizmente estes estudos mostram pouco interesse na experiência de novos modos de intervenção política na/da sociedade.

24É por essa razão que este livro combinará o estudo das práticas de funcionamento quotidiano das administrações municipais, os quadros subjacentes às reformas da administração, assim como as redefinições e procura incessante de formas de gestão da sociedade pelo Estado. Pretende ser uma contribuição para a crítica interpretativa das formas de exercício do poder, das formas de gestão pública e dos pares dominação/submissão e ordem/obediência.

25Os municípios em Moçambique constituem uma experiência ainda recente. O processo foi posto em prática em 1998. Desde então, 53 cidades e vilas foram elevados de forma gradual ao nível de município. Este foi o caso em 1998, para as 23 cidades do país assim como para 10 vilas. Em 2008, foram acrescentadas 10 vilas e finalmente ainda outras 10 em 2013. Os diversos estudos sobre o processo de municipalização em Moçambique não deixam de sublinhar o apertado controlo político pelo partido no poder, a Frelimo (Chiziane 2011; Rosário 2009; Weimer 2012; Reaud & Weimer 2014), mas omitem a experiência do próprio processo em si e a reinvenção de novos modos de gestão e acção pública que o acompanham. Incidem no controlo, por parte do nível superior, portanto da Frelimo, enquanto nos espaços locais da sua implementação se pode observar algumas mudanças, muito controladas, certamente, mas bem reais. Estas mudanças variam de acordo com a historicidade das arenas locais, a implicação dos diversos actores (doadores, elites locais, partidos políticos, autoridades comunitárias, etc.), assim como com a natureza do respectivo serviço público: gestão da terra, gestão da água, educação, etc. Este livro pretende pois ser uma contribuição para o debate sobre a construção do Estado moçambicano, as reformas da sua administração, assim como a organização da sociedade. Em resumo é um estudo das mutações da acção pública num contexto de transformações aceleradas da sociedade, de desafios políticos e económicos mundiais que se tornaram desafios locais.

2. Pistas metodológicas da investigação

26Este trabalho insere-se no campo dos estudos que tentam restituir empiricamente a análise do Estado por meio da interrogação sobre o funcionamento da administração. Baseia-se em vários pesquisas realizadas em 2014 e 2015 nos municípios da Beira e vilas de Mueda e Quissico. A observação e as entrevistas foram realizadas em dois períodos, tendo o primeiro ocorrido entre Fevereiro e Junho de 2014 e o segundo entre Fevereiro e Maio de 2015.

27A primeira pesquisa de campo realizou-se em Mueda. O contacto em Mueda foi particularmente facilitado por um conhecimento anterior do terreno, onde se haviam-desenvolvido relações de amizade com o pessoal das estruturas administrativas e comunitárias. Mas a observação foi discreta. Foram realizadas entrevistas pontuais, tendo-se revelado difíceis as entrevistas formais, devido à proximidade com os actores. Privilegiou-se sobretudo o acompanhamento dos funcionários nas suas actividades quotidianas de contacto com os cidadãos, como por exemplo na resolução de conflitos de terrenos de construção, na «recolha de impostos» dos vendedores do mercado. De resto, nos momentos de lazer, a proximidade do autor com actores locais permitiu que fosse convidado para momentos de convívio entre os funcionários, nomeadamente com os técnicos da administração municipal. Isso permitiu que facilmente se integrasse nas acções quotidianas e que pudesse aceder a informações «confidenciais», tendo-lhe sido mesmo proposto fazer parte da equipa de trabalho do município. Esta situação estendeu-se aos parceiros das ONGs que trabalhavam com o município, como Habitat África financiada pela Cooperação Espanhola que propôs ao autor coordenar a elaboração do plano estratégico do município. No processo de elaboração deste plano desempenhou, de resto, um papel de «intermediário» identificando os consultores para elaboração do plano, pondo-os em contacto com a ONG e a administração municipal. Esse papel permitiu-lhe aceder mais facilmente a toda a documentação do município assim como à observação de algumas sessões da Assembleia Municipal.

28No que respeita os partidos políticos, se era fácil aceder à Frelimo, dada a implicação na elaboração do plano estratégico do município, era preciso encontrar uma estratégia que permitisse encontrar os membros do MDM, sem que os membros da Frelimo soubessem. Para isso privilegiou-se a noite, que é de resto a estratégia utilizada pelos jovens do MDM, que também são filhos de membros da Frelimo, num contexto quase impenetrável para a oposição. Todas estas conexões com os actores locais alimentaram os dados do terreno ao mesmo tempo que permitiram uma «leitura local» dos desafios políticos em curso.

29A segunda pesquisa de campo teve lugar em Quissico que tinha sido elevado à categoria de município em 2013. As observações de terreno tiveram o objectivo particular de procurar compreender as dinâmicas de estruturação de uma nova instância político-administrativa – o município. O domínio da língua local, o Txitxopi, permitiu um acesso privilegiado às informações e estabelecer laços íntimos com os actores políticos e administrativos locais. Observou-se igualmente mobilizações da sociedade local em resposta a estas modificações político-administrativas. O autor participou em diferentes reuniões públicas entre a população e autoridades municipais. Realizou entrevistas formais com o administrador do distrito, o presidente do município, os membros da assembleia municipal e vereadores. Com estes últimos passou-se muito rapidamente a conversas mais «informais». De facto, em Quissico, estabeleceu laços de amizade com o pessoal do município que utilizava a viatura do autor. É preciso lembrar que o município de Quissico não possuía no momento da investigação no terreno nem viatura nem computador. O presidente do município utilizava uma viatura e computador particulares. O facto de utilizarem a viatura do autor de forma «oficial» permitiu observar várias acções fora do «campo burocrático municipal» nomeadamente os trabalhos nos bairros do município.

30A terceira pesquisa teve lugar na Beira, um município de cidade. A Beira já era município durante o período colonial (câmara municipal), transformada depois da independência em Conselho Executivo (uma espécie de município, apenas com funções administrativas de gestão da cidade). A nova categoria de município foi-lhe atribuída em 1998, com a organização das primeiras eleições municipais. A Beira dispõe de uma longa experiência de funcionamento como município gerido por diferentes partidos. Em 1998 as eleições foram ganhas pela Frelimo, em 2003 pela Renamo. Em 2008, uma situação complexa caracterizou o município. A presidência foi ganha por um candidato que se apresentou sob a etiqueta de independente, Daviz Simango. Este já era presidente do município desde 2003, pela Renamo. Devido a conflitos internos apresentou-se como independente em 2008 e ganhou a presidência. Contudo, a Assembleia ficou dominada pelo partido Frelimo. Daviz Simango criou então o seu próprio partido, o MDM, em 2009, tendo-se apresentado sob esta etiqueta às eleições municipais em 2013. Ganhou-as, enquanto o seu partido obtinha a maioria dos assentos na Assembleia Municipal. A Renamo não se apresentou a essas eleições. Entrar num terreno como este não é de todo evidente. Tivemos um sucesso extraordinário neste trabalho de campo. Para a primeira ida ao terreno em 2014, Michel Cahen, historiador, especialista em Moçambique, tinha escrito uma carta ao presidente do município, Daviz Simango, que já era seu conhecido. Esta carta permitiu o acesso ao município e aos membros do MDM. Isso deu-nos a possibilidade de os acompanhar nas suas actividades, nomeadamente junto da comunidade, na resolução de pequenos problemas quotidianos, como os conflitos de propriedade de terras, nas deslocações aos postos administrativos e bairros da Beira. Para o acesso à Frelimo o autor beneficiou de recomendações de personalidades de Maputo. Essas referências permitiram o acesso a vários fóruns de discussão do partido, como por exemplo, a eleição dos membros do partido para a candidatura aos lugares de deputado da Assembleia da República. Acompanhou-se mesmo um candidato, durante a sua campanha nos diferentes distritos, como Dondo e Nhamatanda, distritos muito próximos da Beira. Quanto aos actores das ONGs, foi relativamente fácil contactá-los a partir dos respectivos escritórios em Maputo e dos seus representantes a nível local. O trabalho de campo apoiou-se também na interacção com cidadãos «ordinários» nos mercados, ruas, bares, etc., alimentando-se do contacto com a realidade local e das reacções das populações ao objecto de estudo.

31A análise eminentemente qualitativa, os dados cruzados das entrevistas, as observações, assim como os arquivos, permitiu articular as contribuições empíricas e teóricas a fim de bem definir o objecto e testar as hipóteses levantadas. O processo privilegiado para a análise foi fundamentalmente indutivo e qualitativo, o que não excluiu alguns recursos de quantificação para ilustrar a argumentação.

3. Organização do livro

32A primeira parte questiona, sob uma dimensão histórica e sociológica, os desafios e as heranças administrativas, a partir das situações administrativas coloniais. Trata-se, portanto, de estudar a historicidade administrativa. O recuo no tempo permite captar bem a formação das culturas administrativas, factor fundamental para o estudo das mudanças saídas das reformas. Permitiu igualmente perceber as condições de apropriação e de execução de reformas, como resultado das trajectórias de implementação.

33O primeiro capítulo debruça-se sobre as tentativas coloniais de instauração de aparelhos administrativos. A partir de diferenciações tanto no seio da empresa colonial como nos desafios de resistência à ocupação, desenvolveu-se uma certa cultura das relações sociedade-administração. Este capítulo debruça-se sobre esta questão a fim de identificar as diferenças que uma mesma reforma pode produzir em diversos locais, em termos de resultados e efeitos. O capítulo dois insiste também na formação das elites político-administrativas e no seu papel na reforma da administração. De facto, o capítulo parte da Reforma administrativa do ultramar (1933) que visava o reforço dos mecanismos de exploração das colónias mas que assistiu, durante esse período à formação do essencial da elite política moçambicana actual. A reforma actual da administração nomeadamente a descentralização está também inscrita nos desafios políticos destas elites (que nomeadamente compõem a Frelimo). Estas procuram permanentemente legitimar-se através de alianças e de cooptações no território.

34A segunda parte examina a transição da administração colonial para a administração de Moçambique independente. Debruça-se no terceiro capítulo sobre os primeiros momentos após a independência. Durante esse período, o Estado sob a direcção da Frelimo, usou a administração como seu instrumento de transformação da sociedade. Com o objectivo de modernização unilateral e autoritária, a administração deveria converter a sociedade «tradicional» em novas formas de organização estatal moderna. Este projecto suscitou diversas reacções nos respectivos espaços de implementação. E a reforma actual de descentralização apresenta-se como um recurso de (re)negociação desses conflitos oriundos do projecto modernizador pós-independência.

35É precisamente por isso que o capítulo quatro incide sobre as reformas neoliberais que fizeram emergir os municípios na realidade administrativa moçambicana. Estas reformas foram aplicadas num contexto de grandes constrangimentos provindos da administração autoritária. Foram apresentadas como uma obrigação imposta pelos actores internacionais. Contudo, na sua aplicação, correspondiam bastante à preocupação do Estado pós-colonial de procurar novas modalidades, que assegurassem a sua legitimidade no conjunto do território. Domesticada pelas elites do Estado Central, a adaptação destas reformas não deixou de estar investida de riscos/desafios/interesses políticos nacionais, mesmo que a orientação se pretendesse «técnica» e «apolítica».

36A terceira parte do trabalho é consagrada à acção administrativa de facto, dos municípios. Definidos como agentes de prestação de serviços, os municípios moçambicanos confrontam-se com a ausência crónica de diversos recursos para as suas actividades. Assim, o capítulo cinco mostra que os municípios, continuando muito precários em matéria de prestação de serviços, apesar dos mecanismos de participação que utilizam, transformam-se em espaços de aprendizagem de autorrealização, incluindo a reinvenção de mecanismos de sobrevivência. Os cidadãos supostos de serem, até então, utentes ou clientes dos serviços públicos tornam-se seus produtores e os serviços públicos deixam de ser monopólio da administração pública. São fornecidos pelos actores privados, as ONG, etc. Por esta razão no último capítulo pretendeu-se estudar algumas acções de cidadãos, agora parceiros da administração, mais do que simples utentes ou clientes, como mecanismos de coprodução de acção administrativa. Isso permitiu mostrar que os municípios, afectadas por diversas restrições nos recursos, oferecem novas modalidades à empresa de dominação – o Estado.

Notes

1  Trata-se do clássico debate sobre a separação entre administração pública e administração privada, entre administração e política (White 1939; Wilson 1887).

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