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Renegociar a Centralidade do Estado em Moçambique

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Egídio Guambe

Prefácio

José Jaime Macuane

Texte intégral

1Eis que nos chega às mãos este livro, que se propõe analisar, de forma combinada, o trinómio construção do Estado moçambicano, reformas administrativas e a organização da sociedade. O objectivo central é estudar as relações entre o Estado e a sociedade a partir das reformas da descentralização, tendo como base a administração pública como a arena onde confluem os ajustes mútuos (do Estado e da sociedade) gerados pelas reformas. Conforme o seu autor indica, o livro analisa os fundamentos da sociologia das reformas da administração. Neste âmbito, busca entender o Estado através da administração e particularmente a partir das reformas da descentralização e, com estas, das novas dinâmicas que se criam nos municípios como novas formas de materialização da dominação estatal, mesmo no contexto das dificuldades existentes.

2Para o leitor atento à realidade moçambicana, este tema é muito actual, principalmente tendo em conta as mudanças em curso na área de descentralização, sobre as quais repousam muitas esperanças e ambições, entre elas a paz sustentável, nem sempre antecedidas da profunda reflexão que se impõe.

3Um elemento estruturante do livro é a ideia de conflito entre tendências centralizadoras e forças locais, uma dialéctica típica do processo de descentralização. A definição da lógica centralizadora das reformas é apontada como proveniente de dois tipos de influência (i) dos movimentos globais de reformas do sector público e a sua transposição ao contexto nacional, como ditame da inserção do país na economia política internacional; (ii) no contexto nacional, uma definição centralizada das reformas no período pós-independência e o desafio de sua implementação num espaço de aprendizado de práticas administrativas diferenciadas, influenciado pela forma como a administração colonial se foi construindo nas diferentes regiões do país.

4No debate público sobre a construção do Estado pós-independência, a Administração Pública tem a marca indelével da Frelimo, consubstanciada na ideia de partido-Estado e partidarização da administração pública, apresentada como resultante das dinâmicas de libertação nacional e do período socialista, vistas como as mais importantes na definição da dinâmica estatal. Este livro não rejeita, mas desafia esta visão e nos traz uma abordagem original que recorre a elementos pouco explorados na compreensão do Estado pela Administração Pública, dentre os quais a história (pré, colonial e pós-colonial), a geopolítica da colonização da região Austral da África, a ocupação de Moçambique por uma potência colonial periférica que é Portugal. Estes elementos abriram espaço para formas diferenciadas de ocupação e administração do território moçambicano, com as suas inerentes práticas administrativas. Dentre estes elementos, de destacar o papel das companhias majestáticas nas regiões centro e norte do país e a administração directa no Sul (esta subsidiária à economia sul-africana), cujas nuances determinaram a criação de uma Administração Pública com práticas nuançadas, e que fazem parte da complexa equação e dinâmica da dominação. A partir do escorço histórico e das práticas administrativas daí decorrentes nos três casos estudados mais a fundo e representativos das regiões centro, sul e norte, respectivamente – Beira, Quissico e Mueda – o livro apresenta uma leitura interessante sobre a municipalização e de como esta se constitui numa forma de reconfiguração do Estado na busca da sua legitimação e das elites que o controlam ou buscam controlá-lo. Por exemplo, são interessantes, para não dizer surpreendentes, os insights sobre os elementos históricos e particularmente a influência da Companhia de Moçambique na mítica “rebeldia da Beira”, aqui denominada, de forma mais austera e menos valorativa, de “cultura administrativa autonomista”. De igual modo, é interessante a reflexão sobre a influência da Companhia do Niassa nas bases para o posicionamento de Mueda como “berço da luta armada” e de como o alinhamento das elites de Cabo Delgado com a Frelimo é menos linear do que se pensa, no que concerne à construção do Estado e da Administração Pública no período pós-independência. Também é interessante a análise de como a “diplomacia chope” é parte da explicação de como Quissico teve uma municipalização tardia e de como esta é controlada por grupos que surgem como fruto das complexas relações entre o Estado colonial e pós-colonial com as gentes do sul do país, produtoras de um tipo peculiar de actores políticos e administrativos.

5Os três municípios aqui indicados oferecem uma interessante ecologia regional da administração pública moçambicana. Isto é interessante como contraponto à parte do pensamento sobre o Estado Moçambicano em que impera o mito de domínio e omnipresença da Frelimo e suas elites encasteladas em Maputo, na determinação da dinâmica estatal centralizada e uniformizadora que se impõe sobre a administração pública a nível local, supostamente lhe dando forma. Este livro desafia estas perspectivas e mostra que, apesar da assimetria de poder entre o central (como Estado e como grupos políticos de elite) e o local, o jogo de dominação e legitimação do Estado é mais complexo e nuançado, e que actores e contextos a nível local se contrapõem à essa perspectiva uniformizadora do Estado central, conferindo diferentes formas de apropriação ou resistência às reformas vindas do centro. Nesta perspectiva, embora o autor descarte a discussão sobre as causas do sucesso das reformas administrativas e apenas à ela se refira au passant e por “cortesia académica”, a favor de uma discussão mais ampla sobre a construção do Estado, o livro dialoga com o debate teórico mais amplo sobre esses assuntos, do qual se pode destacar três eixos:

6O primeiro é o debate sobre as reformas gerenciais, apresentadas como uma onda global (Kettl 2005), em certa medida na linha centralizadora definida pelo autor. Esta perspectiva suscitou críticas de autores como Lynn Jr. (2006), que sugere que há um equívoco nesta visão da aplicação das reformas gerenciais à escala global, o que leva ao exagero das similaridades e à subestimação das suas variações e de como as estruturas e processos, as práticas gerenciais e os valores institucionalizados influenciam como as reformas são implementadas e têm sucesso nos diferentes contextos nacionais. O livro também subsidia a discussão sobre o hibridismo institucional que caracteriza as reformas da administração pública contemporânea, incluindo no contexto africano, onde podem conviver diferentes formas construídas ao longo da história, dentre as quais o (neo)patrimonialismo, a administração clássica weberiana, o modelo neo-Weberiano e a perspectiva gerencial (Pollitt & Bouckaert 2017; Ayee 2008).

7O segundo eixo é relativo à discussão sobre escolha, finalidade e desempenho das instituições, cara ao debate (neo) institucionalista sobre as reformas. Neste contexto, ao analisar como as práticas administrativas nos diferentes contextos regionais do País são influenciadas por práticas e escolhas do passado e por relações de poder entre diferentes actores, o livro apresenta uma contribuição pertinente sobre a importância de olhar para a dependência da trajectória e da assimetria de poder como elementos importantes para a compreensão das reformas e construção do Estado. Numa outra vertente do debate institucionalista, o livro analisa as implicações do isomorfismo mimético (a tendência de imitar e reproduzir instituições de outros contextos), mostrando como a adopção de reformas muitas vezes segue uma lógica de adequação do que necessariamente pelos potenciais ganhos de eficiência e eficácia que daí possam advir, o que nos remete às suas possibilidades de sucesso.

8O terceiro elemento, ligado ao anterior, é sobre as dificuldades de as reformas conciliarem os projectos nacionais e a heterogeneidade das realidades onde devem ser aplicados. Neste contexto, o livro discute a realidade comum a muitos países africanos, a chamada “agonia de legitimidade”, resultante do divórcio entre o Estado como uma abstracção e as realidades nacionais, e vê em Moçambique um exemplo radical de uma administração pública esvaziada da realidade social onde se insere.

9O debate apresentado no livro também contribui para a discussão de alguns aspectos específicos da construção do Estado em Moçambique, com destaque para dois elementos.

10O primeiro é a relação entre o alinhamento político étnico e regional à Frelimo e a adesão ao projecto nacional desta. Neste ponto, o livro analisa como a falta de compreensão mais profunda e menos ideologizada das razões que levaram à adesão da população à luta de libertação nacional limita o conhecimento sobre a aceitação do projecto nacional da Frelimo no período posterior à independência. Neste âmbito, a reprodução das lealdades históricas secundarizou o projecto de construção de instituições de Administração Pública capazes de intermediar os interesses, o que, no limite, coloca em perigo o projecto de dominação aí subjacente, seja do Estado central sobre as estruturas administrativas locais, assim como das elites centrais sobre as elites e populações a nível local.

11O segundo elemento é a visão corrente de se atribuir o modelo híbrido de descentralização híbrida (a combinação entre descentralização política [autarquias locais] e desconcentração [órgãos locais do Estado]) do país ao legado centralizador do Estado pós-independência, principalmente derivando dos receios fragmentadores presentes na gênese da Frelimo, composta por movimentos originalmente de forte cariz regional. De forma similar e mais recentemente, coloca-se o projecto de descentralização em curso como fruto das pressões mais incisivas da relação historicamente conturbada entre a Frelimo e a Renamo. Este livro explora mais a fundo as origens do hibridismo institucional (no sentido formal e informal) e revela que os seus fundamentos são mais antigos do que se pode pensar. Também vasculha a história e nos fornece uma visão mais elaborada de como a descentralização é um projecto de construção do Estado e da nação muito mais amplo, sob o qual subjazem interesses de elites regionais, que perpassam linhas partidárias. Deste modo, as reformas da descentralização também constituem um projecto compartilhado de legitimação do Estado e de dominação das elites centrais e locais, potencialmente de diferentes partidos. Neste sentido, o livro relança o debate sobre a construção do Estado e da ordem política, e nestas do papel da administração pública em Moçambique.

12No momento em que o País se prepara para discutir a operacionalização do seu pacote de descentralização, recentemente aprovado como expediente de solução do conflito entre a Renamo e o Governo da Frelimo, embora não o faça de forma explícita, o livro é um alerta para a necessidade de se olhar à reforma do Estado moçambicano e da construção da nação de forma mais profunda, o que inclui recorrer à história e de como ela foi produtora de instituições e práticas administrativas, num misto de rupturas e continuidade. Olhar à essas dinâmicas do processo de transformação do Estado e de como a administração pública e suas práticas constituem um elemento importante para entender as relações daquele com a sociedade é, indubitavelmente, uma visão inovadora de como se pode e deve entender as reformas e os seus resultados em Moçambique.

13Sem dúvida, estamos diante de uma contribuição valiosa para a o debate e compreensão da construção do Estado Moçambicano e, particularmente, da administração pública do País.

14Maputo, 20 de Fevereiro de 2019

Bibliographie

Pollitt, Chistopher & Bouckaert, Geert (2017). Public Management Reform: a comparative analysis, into the Age of Austerity. Nova Iorque: Oxford University Press, 2017. Fourth Edition.

Lynn Jr., Laurence (2006). Public Management: old and New. Nova Iorque: Routledge.

Kettl, Donald (2005). The Global Public Management Revolution. Washington: Brookings Institution Press. Second edition.

Ayee, Joseph (2008). Reforming the African Public Sector: Retrospect and Prospects. Dakar: CODESRIA Green Book.

Auteur

Professor Associado de Administração Pública e Ciência Política, Universidade Eduardo Mondlane.

© Africae, 2019

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